4 FUNDAMENTOS DA TEORIA DAS INCAPACIDADES
Toda a teoria moderna da incapacidade tem por parâmetro reconhecer a incapacidade como forma de proteger a pessoa, de tal forma que o procedimento de decretação da incapacidade seria benéfico e não traria prejuízo ao dito incapaz. No entanto, há críticas contundentes sobre esse espectro monocular de proteção sem qualquer consequência negativa ao sujeito.
A primeiras delas tem como norteador o direito romano, em que a incapacidade já foi usada a título de penalização, a exemplo do sujeito a condenação penal, cujo efeito seria ocupar a posição de escravo, assim como aquele que, por determinação da lei (tais como nos casos de descumprimento de serviço militar, inadimplemento de impostos, não pagamento a seus credores etc.), perderiam seu status libertatis[20].
Havia várias outras situações que geravam a incapacidade de fato, como as ditas causas naturais (pelo simples fato de ter nascido mulher, escravos, os menores de idade, anciões), o que revela o núcleo exacerbadamente patriarcal romano[21].
O objetivo de tal citação histórica é atestar que a incapacidade em Roma não era aplicada tendo-se em vista ideais de proteção, eis que “a falta de capacidade jurídica bem como de exercício, relacionava-se em grande número de situações com uma penalidade ou com o reconhecimento do sujeito como sendo de segunda classe”[22].
Outra crítica a ser considerada se baseia no raciocínio de que a liberdade proporcionada pela capacidade plena seria um direito fundamental, ligado à própria dignidade da pessoa humana. Por outro lado, haveria de se reconhecer possibilidade de restrição a essa autonomia diante da não recepção de atos praticados por sujeito que tenha seu discernimento prejudicado, o que, caso contrário, lhe traria prejuízo.
No entanto, essa “fórmula pronta” (que considerada todo ato praticado pelo incapaz suscetível de lhe causar prejuízo) despreza a análise do caso concreto, paradoxalmente ao que ocorre normalmente nos casos em que o operador do direito depara com um conflito de princípios, de maneira que, mesmo estando o incapaz (sem representação ou assistência do curador) de um negócio jurídico que lhe traga excessiva vantagem, será esse ato conduzido ao mesmo destino cabível à situação que lhe cause prejuízo: a nulidade[23].
Nesse ponto, vale notar que a teoria da incapacidade preocupa-se mais com questões patrimoniais do que com a proteção propriamente dita do incapaz (ressalte-se que não se está negando a importância de tal instituto, levando-se em conta a importância do patrimônio na atual sociedade predominantemente capitalista).
Importante mencionar o interesse na declaração de incapacidade de pessoas já falecidas como forma de anular contratos (como doações) alegando que, à época, o sujeito era incapaz – ato que, por si só, revela a total ausência de interesse em se proteger o incapaz (até porque ele já está morto) e a ganância pelo patrimônio.
Não raras vezes, há notícias de pessoas (até mesmo familiares) que se aproveitam da condição de fragilidade da velhice das pessoas para praticarem ilícitos, a exemplo do caso acontecido no Acre, em que a filha de um idoso foi condenada por se apropriar de proventos do pai aposentado[24].
Dessa maneira, há de se concluir, por hora, que o instituto da incapacidade (e suas teorias fundantes), por mais nobres que suas propostas se apresentem (no que se refere à proteção do incapaz diante de situações que lhe ponham em alguma condição de risco, em virtude de sua fragilidade em enxergar a situação enfrentada e, portanto, seguir uma solução que não lhe traga prejuízos), muitas das vezes, é usado com propósitos inescrupulosos.
Entender a questão da incapacidade é fundamental para a ideia de invalidade dos atos jurídicos. De acordo com o grau de incapacidade, caso o incapaz pratique ato sem a presença de seu representante ou assistente, haverá, conforme o caso, nulidade (em se tratando de incapacidade absoluta) ou anulabilidade (caso seja relativa).
A atual ideia da teoria das incapacidades, consolidada pela Lei n.º 13.146/2015, dissocia a incapacidade pelo mero fato de haver presença de alguma deficiência. Dessa maneira,
Não mais há, efetivamente, uma relação implicacional entre a deficiência (física, mental ou intelectual) e a incapacidade para os atos da vida civil. Até porque uma pessoa com deficiência pode não sofrer qualquer restrição à possibilidade de expressar as suas vontades e preferências. E, a outro giro, uma pessoa sem qualquer deficiência pode não ser capaz de exprimir a sua vontade, como nas hipóteses do menor de dezesseis anos de idade[25].
Suscitada a dúvida quanto à incapacidade de alguém (exceto em razão da idade – art. 3º, CC), deve haver um procedimento específico judicial de curatela (art. 757 do CPC), e, uma vez declarada a incapacidade (relativa ou absoluta), a pessoa só irá readquirir a sua plena capacidade por decisão judicial (procedimento de levantamento de curatela).
Dessa maneira, a problemática dos “intervalos lúcidos”, ao contrário do Direito Penal, são irrelevantes para o reconhecimento da capacidade.
5 VULNERABILIDADE
Como visto até aqui, a ideia de incapacidade sempre se baseou num discurso de proteção à pessoa, a qual, inevitavelmente, se situaria numa posição mais fraca em relação a um sujeito considerado “normal” (capaz), de maneira que parte da doutrina chega a afirmar que essa sistemática acaba criando duas categorias de pessoas: “uma dos capazes, que é livre, possuindo plenitude de si e juridicamente igual aos seus pares; e outra, dos incapazes, que está submetida ao poder de outrem, não possuindo o mesmo grau de igualdade jurídica que a primeira”[26].
Justamente por essa inegável situação de inferioridade, não afirmada no plano normativo, mas manifestada no contato social, de maneira que a pessoa incapaz possui maior suscetibilidade a ter seus direitos violados, ser ferido, pode-se afirmar que ele ocupa a condição de pessoa vulnerável.
O conceito de vulnerabilidade, tão plural, a ser interpretado de acordo com o contexto a que se propõe determinada análise (a qual pode, inclusive, escapar à ciência do Direito), é de fundamental importância para a compreensão deste trabalho, uma vez que tal premissa tem íntima relação com a ideia de vulnerabilidade constante no art. 217-A do Código Penal (estupro de vulnerável).
Pode-se encontrar a definição de vulnerabilidade trazida pela Resolução n.º 466/12, do Conselho Nacional de Saúde[27]. Já Maria do Céu Patrão Neves, trabalhando com a etimologia da palavra vulnerabilidade (vulnus = ferida), concebe o significado de susceptibilidade de se ser ferido, de maneira que os indivíduos que portem tal vulnerabilidade estão mais passíveis a sofrerem abusos[28].
Para o Direito, nem sempre a ideia de vulnerabilidade está associada a um aspecto meramente biológico, podendo decorrer de fatores socioeconômicos, pertencimento a uma minoria etc. A partir de tais premissas, podem-se identificar alguns indivíduos vulnerados, tais como integrantes de população LGBT, portadores de deficiência física, bem como portador de transtorno mental[29].
Vale mencionar a vulnerabilidade tratada, também, pelo Código de Defesa do Consumidor, na abordagem da Política Nacional de Relações de Consumo, cujo inciso I, do seu art. 4º, prevê o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo[30].
Nesse prisma, haveria a vulnerabilidade em, pelo menos, três ocasiões: a) vulnerabilidade pela publicidade, decorrente da utilização de técnicas avançadas de marketing, fragilizando a manifestação de vontade do consumidor, o qual se vê diante de uma verdadeira manipulação de seus sentidos; b) vulnerabilidade técnico-profissional, corolário da ausência de conhecimento do consumidor sobre a produção do serviço ou do produto; c) vulnerabilidade jurídica, relacionada aos contratos de massa e adesão, elaborados, muitas das vezes, por um corpo jurídico especializado em enfrentamento de questões judiciais e extrajudiciais[31].
Como forma de não se perder o foco deste trabalho, frise-se a vulnerabilidade do portador de transtorno mental, cujas causas são múltiplas, seja do ponto de vista da saúde (por conta do próprio transtorno mental), pela perspectiva social (estigma carregado no seio da sociedade) e, até há pouco tempo, sob o enfoque da lei, a qual o colocava como um verdadeiro cidadão de segunda classe, dominado pela vontade de um terceiro[32].
Vale lembrar que, a partir da edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, não mais decorrerá a incapacidade pela mera existência de deficiência[33], assunto tratado com mais detalhes no tópico específico sobre a capacidade de fato. Aliás, são considerados pelo Estatuto da pessoa com deficiência (art. 5º, parágrafo único) especialmente vulneráveis a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência[34].
Essas pessoas Já se mostram mais vulneráveis, quando subjetivamente considerados aspectos físicos, psicológicos, sociais. Etc. Essa situação é sensivelmente agravada quando, além dessa condição pessoal, soma-se a deficiência física, surgindo uma dupla condição de vulnerabilidade. Assim, por exemplo, o idoso que, em razão de sua idade, é mais vulnerável, se tem a deficiência física terá sua condição agravada[35].
Ainda sobre o conceito de vulnerabilidade, importante consignar a interpretação do Código Penal. Tal diploma não disse, expressamente, o conceito de vulnerável, mas tornou punível o ato de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso contra menor de 14 anos. Além do mais, equiparou à situação de vulnerabilidade do menor de 14 anos aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer causa, não pode oferecer resistência (CP, art. 217-A, § 1º). Tal ideia será mais detalhada durante o estudo do estupro de vulnerável.
Dessa maneira, há de se concluir pela vasta dimensão do conceito de vulnerabilidade, decorrente da natureza da abordagem com a qual depara o intérprete.
6 O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DE DIREITOS SEXUAIS AOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA
No dia 6 de julho de 2015, foi publicada a Lei n.º 13.146, a qual instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
Tal diploma sofreu forte influência da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ocorrida em Nova York, em 2007, cujos termos foram subscritos pelo Brasil, ingressando no ordenamento pátrio através do Decreto Legislativo n.º 186, de 9 de julho de 2008, e, posteriormente, promulgado pelo Decreto Presidencial n.º 6.949, de 25 de agosto de 2009.
Vale lembrar que os termos da referida convenção ingressaram no ordenamento brasileiro obedecendo ao critério estabelecido pelo art. 5º, § 3º da Constituição Federal. Ou seja, uma vez que a matéria trate de direitos humanos, tenha sido votada por quórum de 3/5 dos respectivos membros das Casas Legislativas, em votação em dois turnos em cada uma delas, alcançará o status de Emenda Constitucional, vindo a pertencer ao topo da pirâmide normativa do Brasil.
A referida lei, ao dar proteção ao deficiente, considerado seu inegável estado de hipossuficiência, consiste num corolário ao fundamento da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, CF/88). “São direitos considerados fundamentais, sem os quais a pessoa humana não pode existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida”[36].
Os professores Chaves, Sanches e Batista ressaltam a preocupação da comunidade internacional decorrente do período pós 2ª guerra mundial, com a ideia dos direitos humanos, consubstanciado na elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e, nas Américas, através o Pacto de San José da Costa Rica (1969). Usualmente, os direitos humanos são tratados sob a perspectiva de gerações (ou dimensões).
Nessa perspectiva, os direitos humanos de primeira geração, surgidos a partir da transição entre o feudalismo e a ascendência da sociedade burguesa, tinham como ideais a se conquistar os direitos civis e políticos, os quais se referem a liberdades individuais, como liberdade de reunião, culto, da livre iniciativa econômica, à inviolabilidade do domicílio etc. Representavam, em verdade, a luta contra o arbítrio dos estados absolutistas e tem forte influência no jusnaturalismo.
Já os direitos humanos de segunda geração (séc. XIX), a burguesia, já em ascensão, tinha duas grandes preocupações: com os anseios da aristocracia de se restabelecer o antigo regime e, de outro, com a massa popular, pobre e insatisfeita, para a qual não havia que se falar em capacidade para usufruir das conquistas da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade). Dessa maneira, passou a se falar em direitos sociais, econômicos e culturais, tais como direito à greve, aposentadoria, férias, serviços públicos básicos (cite-se saúde e educação) etc.
A próxima etapa dos direitos fundamentais seria a terceira geração, inspirada nos horrores vividos na 2ª Guerra Mundial e, a partir da divisão do mundo em dois grandes blocos (capitalista e socialista), surgiram o denominado direitos dos povos, neles compreendidos o direito à paz, ao meio ambiente sadio, à autodeterminação dos povos etc.[37]
A partir de tais premissas, as quais denotam a evolução do pensamento sobre os direitos fundamentais, observa-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência trouxe o esclarecimento (e implemento) de importantes direitos para a esfera individual, preocupando-se não só com o bem estar e autonomia da pessoa com deficiência, mas também com o seu ingresso definitivo no seio social, bem como nos aspectos de preservação da sua privacidade e busca pela sua felicidade.
Nesse diapasão, importante mencionar a expressa previsão de que a pessoa com deficiência tem igualdade de oportunidades com as demais pessoas (art. 4º do referido Estatuto), decorrente do princípio da isonomia, com assento constitucional (art. 5º, caput, CF). Não basta uma igualdade meramente formal (uma letra morta de lei), mas necessário se faz a implementação de tal igualdade, o que pode significar a adoção de medidas (denominadas ações afirmativas) para se colocar em prática tais direitos, visando compensar desequilíbrios, conferindo tratamento diferenciado aos dispostos em condição de hipossuficiência. Exemplo prático disso é o fato de todos possuírem direito de estacionar num shopping center, mas ao deficiente, são destinados os locais mais próximos das entradas, de maneira que não lhes imponham um deslocamento excessivo. O objetivo, ao desigualar, é compensar as desigualdades, visando uma igualdade material[38].
Antes de adentrar a tais direitos (valendo mencionar que não serão tratados de modo exaustivo para não fugir aos propósitos deste trabalho), convém verificar o conceito de pessoa com deficiência, estabelecido pelo art. 2º do referido diploma legal:
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas[39].
A partir de tais premissas, reconhece o art. 6º do Estatuto que a pessoa com deficiência possui plena capacidade para se casar, exercer direitos sexuais, reprodutivos, conservar sua fertilidade, exercer guarda tutela, curatela e adoção, entre outros vários direitos. Dada a sua importância, convém trazê-lo à baila:
Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I – casar-se e constituir união estável;
II – exercer direitos sexuais e reprodutivos; [...][40].
Os professores Chaves, Sanches e Batista esclarecem que, na maioria das vezes, em que pese a existência de uma deficiência física, a pessoa tem preservada sua capacidade de entendimento, não havendo, portanto, vício na manifestação de sua vontade, motivo pelo qual não deve haver qualquer impedimento para contrair núpcias ou mesmo constituir união estável. Reforça essa tese tanto o instituto da curatela, previsto no art. 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência – a qual alcança apenas questões meramente patrimoniais (não alcançando, na forma do § 1º do referido dispositivo, o matrimônio) – quanto a nova redação do art. 3º do CC, que enquadra como relativamente incapazes os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática de certos atos.
Especificamente em relação ao casamento, importante mencionar que houve alteração no sistema de invalidades (arts. 1.548 e 1.550 do CC/2002). O curatelado pode casar, mesmo sem anuência do representante ou assistente, não havendo mais nulidade ou anulabilidade decorrente do desconhecimento da deficiência. Frise-se que a única hipótese de nulidade matrimonial passa a ser a violação de impedimentos matrimoniais.
Quanto ao regime de bens, o curatelado pode escolher o regime de bens do matrimônio. Mas, utilizando a cláusula geral de proibição de abuso de direito, prevista no art. 187 do CC, pode o juiz impor o regime de separação obrigatória, tutelando, dessa maneira, interesses do curatelado[41].
O autor também analisa o inciso II do art. 6º, sob a perspectiva de que nem mesmo o interdito, que observa restrições de caráter patrimonial e negocial, pode ser objeto de restrição ao seu próprio corpo ou à sua sexualidade. Além do mais, em se tratando de direitos sexuais, é direito do deficiente escolher livremente seus parceiros, tendo sua autonomia da vontade respeitada inclusive no aspecto de sua orientação sexual, encerrando-se o mito de que a pessoa deficiente trata-se de ente assexuado, que não conta com as necessidades pertinentes a todo e qualquer ser humano[42].
Ainda no que se refere à sexualidade, há de se consignar que o art. 18, VII, § 4º do Estatuto Protetor, prevê que as ações e os serviços de saúde pública devem assegurar a atenção sexual e reprodutiva, incluindo o direito à fertilização assistida. Já o § 1º do art. 85 assegura o respeito à especificidade, à identidade de gênero e mesmo à orientação sexual da pessoa com deficiência[43].
Desta forma, nota-se que nem mesmo os casos admitidos para a instauração de curatela (expediente invasivo, que tira parcela da liberdade – e, porque não, da privacidade – do indivíduo) não é capaz de restringir a autonomia da vontade da pessoa com deficiência para praticar ou permitir que com ela se pratique conjunção carnal ou atos sexuais diversos dela, além, obviamente, da decorrente liberdade para a escolha de seus parceiros.