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A judicialização das políticas públicas na área da saúde

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A discussão da origem do problema da saúde perpassa pela própria definição dos fins do Estado. Afinal de contas, para que (ou para quem) serve o Estado? Seria a judicialização das políticas públicas, na área da saúde, uma solução viável?

1. Introdução

Este trabalho foi elaborado com o escopo de analisar as raízes principais do problema envolvendo a saúde pública no Brasil, enfrentando a temática da judicialização de políticas públicas na área da saúde, principalmente no tocante à legitimidade da intervenção do Poder Judiciário e às distorções orçamentárias que eventualmente podem decorrer desta atuação.

A preocupação com esta matéria reside na falta de aparelhamento do Estado para o trato deste problema prático. No âmbito jurídico, diversas medidas foram tomadas, ao longo dos últimos trinta anos, para tentar dar solução a essa difícil questão. A Constituição da República de 1988 foi um importante marco neste processo, pois estabeleceu um sistema de saúde dinâmico, complexo e descentralizado, baseado nos princípios da saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado (art. 196 da CR). A Lei 8.080/1990 estruturou esse sistema, e a Emenda Constitucional n. 29/2000 criou uma vinculação de receitas para aplicação em ações e serviços públicos de saúde. A Emenda Constitucional n. 86/2015 alterou o percentual mínimo cabível à União.

Embora se tenha notado alguma melhoria, há muito a ser aperfeiçoado. Diversas crises ainda são vistas diuturnamente nos noticiários, e pouco se tem feito para uma solução definitiva.

No ranking anual de eficiência de sistemas nacionais de saúde, editado pela agência de negócios Bloomberg, o Brasil vem aparecendo entre os últimos colocados desde 2008[1]. No ano de 2015, o Brasil passou a ocupar a última posição do ranking, demonstrando que o gasto com saúde em nosso País não se converte numa entrega efetiva de um serviço público de qualidade para a população[2].

Em razão disso, aumentam as demandas judiciais em prol da concessão de tratamentos médicos e da entrega de medicamentos para pessoas que não obtiveram a prestação voluntária do Estado, o que gera consequências negativas na execução orçamentária, porquanto os provimentos jurisdicionais afetam sensivelmente a efetivação de políticas públicas nesta área, em que os recursos são extremamente escassos.


 2. As origens do problema e o papel do Estado neste contexto

A discussão da origem do problema da saúde perpassa pela própria definição dos fins do Estado. Afinal de contas, para que (ou para quem) serve o Estado?

Nos primórdios da humanidade, as pessoas reuniam-se em tribos, cujo principal objetivo era a proteção e segurança de seus membros. Com o passar dos anos, organizações sociais cada vez mais complexas foram sendo formadas. Pode-se dizer a grande maioria das sociedades antigas que hoje conhecemos tinha um ponto em comum: a centralização de ordens ou comandos.

Nascia daí a noção de Estado, tido hoje como a organização de um poder político delimitado ao âmbito de um território e dirigido ao povo que nele habita. Parte da doutrina sugere um novo elemento: finalidade, que consiste no estabelecimento de um objetivo comum a ser atingido, consubstanciado, em regra, no “bem comum”.

O exercício de um poder político centralizado acarretou desigualdade social, pois a casta ou grupo social que detinha o poder costumava angariar privilégios. As diversas experiências de sistemas sócio-produtivos (baseados em modos de produção comunal, escravista, feudalista, capitalista, socialista, comunista, etc.) e de sistemas políticos (democracia, oligarquia e monarquia) não foram capazes, até o momento, de aproveitar os progressos científicos, tecnológicos e sociais para proporcionar ao povo igualdade e liberdade, permitindo-lhe uma vida feliz e plena, alcançando assim o almejado “bem comum”.

Logo, o fim do Estado, a que se remete parte da doutrina, ainda não foi alcançado. Por conta disso, é preciso se valer de um raciocínio de ordem prática: qual a finalidade do Estado hoje? Prevalece na atualidade, na maioria dos países, o regime democrático. Após a queda do Muro de Berlim, que marcou o fim da Guerra Fria, o capitalismo também passou a prevalecer de forma hegemônica, o que acabou culminando com o fenômeno da globalização. Portanto, vivemos em um regime de democracia, fundado no capitalismo e no Estado Constitucional de Direito.

Não obstante, o Estado, claramente, não serve para atender os interesses legítimos da maioria da população, o que caracterizaria o regime democrático. Há quem se refira a “democracia elitista”, verificando que, em torno do poder político, da burocratização do Estado e dos oligopólios econômicos, forma-se uma elite, com alto poder de influência na tomada de decisões do Estado, sobrepondo-se à vontade da maioria[3].

Dessa forma, em um contexto de capitalismo globalizado, o Estado tem servido para o atendimento dos interesses dessas elites, que apenas buscam o lucro desmesurado, deixando em segundo plano a efetivação de direitos garantidos constitucionalmente. Aliás, a progressiva conquista de direitos ao longo das últimas décadas, o que a doutrina separa em “gerações” ou “dimensões”, tem um lado nefasto, pois garantiu que alguns direitos fossem assegurados no âmbito constitucional, mas não criou condições institucionais para efetivá-los.

Observa-se que a exploração do trabalho humano, as desigualdades sociais e o número de pessoas vivendo em estado de completa miséria têm aumentado com a globalização, de modo que a concessão de diversas gerações de direitos não implicou uma ampliação da qualidade de vida da população.

Um levantamento realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), resultante de dois anos de pesquisas, denominado “Uma Globalização Justa”, apontou que a globalização aumenta a desigualdade, tendo majorado a diferença entre países ricos e pobres. Em 2015, noticiou-se que aquele ano foi o primeiro da série histórica na qual 1% da população mundial alcançou a metade do valor total de ativos. Em outras palavras, 1% da população mundial tem tanto dinheiro líquido e investido quanto os 99% restantes da população[4].

É relevante ressaltar que os empréstimos concedidos aos países subdesenvolvidos por organismos internacionais (como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial) também contribuem para o aumento de desigualdade e para o agravamento desta situação de precariedade. Tal argumento não é meramente retórico.

A título de exemplo, tem-se o “Programa de Ajuste Estrutural”, criado pelo FMI, em que esses países são obrigados a implementar, ou a prometer implementar, as condicionalidades vinculadas para que o empréstimo seja aprovado, tendo de privatizar o setor de serviços, exportar mais e reduzir o papel do governo na economia, o que acaba por produzir devastação para os cidadãos vulneráveis dos países pobres, uma vez que eles perdem mais de suas poucas proteções e serviços.

Com isso, os países subdesenvolvidos tornam-se cada vez mais dependentes, pois precisam demonstrar uma estabilidade econômica para o devido pagamento das dívidas contraídas, sob pena de ver os juros aumentarem progressivamente[5].

Esses efeitos são notáveis, tendo sido referidos no relatório “Socorro Financeiro do FMI e os Fluxos Financeiros Globais” elaborado pelo centro de estudos e debates globalista Foreign Policy in Focus[6], no relatório intitulado “Desenvolvimento e Implementação das Condicionalidades do FMI e do Banco Mundial”, do Instituto de Economia Internacional de Hamburgo[7], e nos livros “O Preço da Desigualdade”[8] e “A Globalização e seus malefícios”[9], de Joseph Stiglitz (ex-primeiro vice-presidente e economista-chefe do Banco Mundial e ganhador do Prêmio Nobel de Economia).

Inclusive, deve-se mencionar que a própria legislação brasileira endossa o que foi acima relatado, uma vez que não há um limite estabelecido para gastos com pagamento de juros da dívida. O que há, isso sim, é uma ampla concessão de privilégios na Lei de Responsabilidade Fiscal para o pagamento desse tipo de despesa, o que parece ser mais relevante do que toda a implementação dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente, que ficam em segundo plano.

Prova disso é que o orçamento federal de 2015 previu um montante de despesas totais no importe de R$ 2,683 trilhões, sendo que R$ 1,356 trilhão (47%) foi destinado ao pagamento de juros e amortização da dívida pública, ou seja, treze vezes mais do que os gastos com educação, treze vezes mais do que os gastos com saúde e cinquenta e quatro vezes mais do que os gastos com transporte público[10].

A dívida pública federal alcançou, em 2015, o montante de R$ 2,79 trilhões[11]. A dívida pública no Brasil é a terceira maior do mundo, conforme dados oficiais do FMI[12]. Os impostos crescem mais do que a economia brasileira, em razão do efeito cascata gerado pelo amplo endividamento, cujas consequências, como visto acima, são nefastas.

Para contornar esse problema, os países subdesenvolvidos tentaram implementar uma política de atrair investimentos externos para os seus territórios, com vistas a desenvolver a sua economia e, por conseguinte, aumentar a arrecadação para quitar a dívida pública. O resultado disso foi ainda mais devastador. Isso por que os países passaram a oferecer incentivos fiscais para grandes grupos empresariais, no afã de que eles se instalassem em seus territórios. Tal fenômeno pode ser verificado facilmente entre os países da América do Sul, nas últimas décadas.

Em um claro sinal de injustiça fiscal, econômica, ambiental e social, essas grandes empresas aproveitam esses incentivos e iniciam suas atividades sem pagar os tributos que seriam devidos, sem contribuir com a redução da pobreza e da marginalização, utilizando mão-de-obra de baixo custo, deteriorando o meio ambiente local e sendo muitas vezes beneficiadas com subvenções econômicas e com a ampliação da infraestrutura local, em conformidade com os seus interesses lucrativos. Tudo isso encampado sob um discurso de que houve a geração de milhares de empregos.

O resultado de tudo isso é visível. As pequenas empresas locais não têm condições de competir com esses grandes grupos beneficiados por incentivos fiscais. Assim, acabam falindo. A redução do empreendedorismo aumenta o desemprego, que muitas vezes não é compensado pelo número de empregos criados com a instalação da empresa.

De outro lado, como a empresa foi beneficiada com esse incentivo fiscal, o Estado acaba aumentando alguns tributos (no Brasil, a LRF determina em seu art. 14, II, que a renúncia de receita deve ser acompanhada de aumento da carga tributária, como forma de compensação pelo gasto indireto), o que acaba prejudicando a população do País como um todo, por haver redução dos gastos com o setor social.

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Destaque-se, ainda, que a maior parte dos incentivos concedidos não é destinada a empresas produtoras de essencialidades, mas sim para aquelas que fabricam produtos supérfluos (como veículos automotores e eletroeletrônicos). Novamente, a população mais pobre é prejudicada e a mais abastada é beneficiada[13].

O preço desses incentivos é alto. Para dimensionar isso, estudo aprovado pelo Tribunal de Contas da União, no âmbito do AC 013.938/2012-6, sinalizou que estavam previstos, para 2014, gastos tributários de R$ 249,76 bilhões, que é equivalente a 20,66% da arrecadação estimada para o período. Em outras palavras, a União deixou de arrecadar o valor acima referido para conceder benefícios fiscais ao setor produtivo, ao invés de utilizar esses recursos para área social.

Outra questão que pode ser destacada, nesse aspecto, é a da Desvinculação das Receitas da União (DRU), criada em 1994 e passando a ter esta denominação desde o ano 2000. O dinheiro resultante da DRU é destinado “(...) para cumprir o superávit primário que o país ficou de entregar ao final de cada ano. Traduzindo em palavras mais simples: servirá para pagamento dos juros da dívida pública (…)[14]”. Logo, o governo restringe os gastos com direitos sociais e demais objetivos constitucionais, os quais possuem receitas vinculadas, para que sobre dinheiro para o pagamento da dívida pública e dos juros[15].

Vê-se, pois, que a problemática acerca do pagamento da dívida pública é que figura no centro das atenções do governo, e não a promoção dos direitos fundamentais. Esse quadro leva a um total descrédito da população em relação às instituições do Estado e ao texto constitucional, o que torna a Constituição uma figura meramente simbólica[16].

A desigualdade social é resultado inexorável deste processo. O Brasil figura entre os dez países com os maiores índices de desigualdade no mundo. Assim, verifica-se que os países subdesenvolvidos que se abrem ao mercado externo, contraindo empréstimos, privatizando suas empresas estatais e reduzindo o papel do Estado na economia tendem a sofrer crises sistêmicas com o passar do tempo, além de acarretar profunda desigualdade social e miséria à população. A par disso, não conseguem quitar suas dívidas públicas, efetuando refinanciamentos que acabam por alongar ao infinito o pagamento, tornando esses países cada vez mais dependentes economicamente e menos preocupados com a proteção social.

É fundamental, nesse caso, que o Estado seja protagonista na condução de programas sociais que garantam o mínimo existencial para uma vida digna a sua população, sendo indispensável também que o Estado intervenha no âmbito econômico, em prol do desenvolvimento humano, controlando gastos com o pagamento de dívida pública e reduzindo as desigualdades regionais e sociais, conforme preconizado no artigo 3º, III, da CR/1988, norma da qual precisamos extrair a máxima efetividade possível, em consagração à força normativa da Constituição[17].

Nesse sentido, é interessante observar que o nível de desigualdade social caiu no Brasil entre os anos de 2001 e 2011, graças aos programas voltados à proteção social, o que comprova a importância da atuação do Estado na garantia dos direitos fundamentais sociais[18].

Essa análise é imprescindível para o presente estudo, porquanto aspectos econômicos e políticos estão diretamente relacionados com os contornos jurídicos que serão conferidos ao tema da saúde pública. Nos dizeres de J. J. Gomes Canotilho, “direito é política, o direito é economia”[19].

Feitas essas considerações, passemos a focar na questão relativa à saúde pública, que está umbilicalmente conectada ao contexto acima relatado. De início, é oportuno mencionar que a indústria farmacêutica é uma das mais lucrativas do mundo e faz parte da elite que determina os rumos das decisões políticas. No ano de 2011, a referida indústria movimentou US$ 950 bilhões[20].

Essa ampla lucratividade remonta ao início do século XX. A sua expressividade tornou-se notável ao longo das décadas de 1930 e 1940, tendo essa indústria participado ativamente dos rumos da Segunda Guerra Mundial, seja financiando o governo nazista de Adolf Hitler, seja testando substâncias farmacêuticas patenteadas nos prisioneiros dos campos de concentração de Auschwitz, Dachau e outros locais. No Tribunal de Nuremberg, vinte e quatro gerentes da Bayer, BASF, Hoechst e outras empresas farmacêuticas do cartel I.G. Farben foram julgados por crimes contra a humanidade. Em acusação final, o Procurador-Chefe dos Estados Unidos da América, Telford Taylor, resumiu os crimes cometidos nos seguintes termos: “sem a I.G. Farben, a Segunda Guerra Mundial não teria sido possível”.

Para impulsionar seus lucros, essa indústria utiliza-se de um subterfúgio conhecido no mundo médico: a atuação de representantes comerciais, que buscam atrair os médicos a prescrever seus produtos, oferecendo diversas vantagens em troca. Isso é tão importante para esta indústria que entre 30 e 40% de tudo o que se ganha com a venda de remédios é reinvestido em ações de marketing, a maioria destinada à classe médica.

Somando ao marketing o aumento do acesso ao sistema de saúde, o resultado obtido nesse processo é o aumento desmesurado no consumo de medicamentos. Isso tem um resultado positivo, que é o prolongamento da vida humana. Porém, grande parte do consumo dos remédios receitados é desnecessário. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que metade do consumo mundial é feito de forma irracional, ou seja, em dose, tempo ou custo maior que o necessário[21]. O Brasil é o sétimo maior consumidor do mundo de medicamentos (IMS Health, 2015).

O comércio de medicamentos sobrevive graças à famigerada “indústria da doença”. Se não houver doenças, esse mercado deixa de ser lucrativo. Por conta disso, a formação médica não é dedicada à cura das causas das doenças, tornando os médicos incapazes, em regra, de tratar com profundidade as patologias que lhes são submetidas, mediante os métodos corretos[22].

Em reportagem veiculada no dia 17/11/2016, no Jornal Folha de São Paulo, na seção “Cotidiano”, noticiou-se que a indústria farmacêutica age como o crime organizado, de acordo com o apontamento do pesquisador e médico dinamarquês Peter Gotzsche (Professor na Universidade de Copenhague e um dos fundadores do Centro Cochrane). Não se deixou de reconhecer os êxitos da indústria no desenvolvimento de drogas para tratar infecções, alguns tipos de câncer, doenças cardíacas e diabetes. Porém, foram expostos em seu recente livro, denominado “Medicamentos mortais e crime organizado – Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica”, dados que demonstram falhas na regulação de medicamentos e os riscos que muitos deles causam à saúde, ou seja, diversos estudos que apontam malefícios e efeitos colaterais irreversíveis causados pelos remédios fabricados por esta indústria são retirados de circulação, sendo forjados outros que apontam para os “inúmeros benefícios” de certas drogas, gerando uma sensação de confiança por parte dos consumidores, o que não chega a ser devidamente analisado pelas agências de regulação[23].

Hoje, a medicina é baseada “em evidências”, de modo que apenas os produtos farmacêuticos patenteados são considerados aptos a curar o paciente. A ênfase é conferida apenas ao setor de pesquisa de remédios químicos. Deixa-se de lado as inter-relações entre a mente, o corpo e o espírito[24], e as múltiplas implicações do estado emocional para a eclosão de doenças diversas. A saúde torna-se mercadoria[25].

Evidentemente, a indústria farmacêutica atua fortemente no setor público. Para alcançar e manter os seus enormes lucros, recorre-se em muitos casos à colocação de pessoas afins aos seus interesses em postos políticos e governamentais, além de haver o financiamento de campanhas eleitorais com objetivo de que sejam asseguradas condições benéficas para a atuação da indústria[26].

A primeira manifestação deste cenário ocorreu, nos Estados Unidos da América, com a criação da lei de extensão de patentes (Lei Hatch-Waxman), aprovada por Ronald Reagar, em 1984. Essa medida foi estendida internacionalmente com a criação da Organização Mundial do Comércio.

Com isso, é dificultado o acesso a medicamentos essenciais, favorecendo-se interesses industriais em detrimento da maioria da população. Ademais, impossibilita-se uma autêntica concorrência, com prejuízo para países em desenvolvimento.

Em uma perspectiva jurídica e sociológica, a temática relativa à saúde pública apresenta um outro viés: em termos clássicos, o Estado tem a opção de prestar ou não o serviço público de saúde. Ou seja, para a definição do Estado e de seu papel, a prestação do serviço público de saúde não seria imprescindível, embora fosse desejável.

Assim, se houver decisão política no sentido de que o Estado institucionalize um sistema de saúde, prestando serviços de saúde básicos para a população, isso demandará dinheiro. Por essa razão, haverá uma série de implicações orçamentárias, devendo-se manter um percentual mínimo de aplicação nesta área. Esse modelo faz-se necessário para países em desenvolvimento, como o Brasil, pois abre o acesso a milhares de pessoas que não teriam condições de arcar com o preço de tratamentos particulares ou de convênios médicos para a recuperação de sua saúde plena.

Por outro lado, caso a decisão política seja inversa, ou seja, deixando exclusivamente à iniciativa privada a prestação desses serviços, muitos ficarão à margem da sociedade e do Estado, por não terem condições econômicas de arcar com os gastos com saúde. É isso que ocorreu durante décadas nos Estados Unidos da América[27], o que só veio a ser amenizado com a instituição do programa Obama Care, que teve o objetivo de democratizar o acesso aos planos de saúde.

Em um contexto de neoconstitucionalismo, o papel do Estado reclama uma redefinição. A promoção dos direitos fundamentais deve estar no centro de sua atuação. Caso não seja, podemos entender que o Estado não atingiu a sua finalidade de atender o bem comum, tornando-se obsoleto e opressor.

A questão da saúde pública é tema central no trato dos direitos fundamentais, e o seu destino não pode ser deixado nas mãos dos que detêm o poder econômico. Nos dizeres de Karl Marx, “o capital não tem, por isso, a menor consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela sociedade a ter consideração”[28]. Se assim o é em relação ao trabalhador, podemos acrescentar que a situação é ainda mais grave com as pessoas que sequer trabalho possuem (segundo dados do IBGE, a população desempregada chegou a 11,8 milhões no Brasil, em julho de 2016).

Logo, uma concepção moderna, crítica e pragmática de Estado deve entendê-lo não somente num sentido clássico, como organização de um povo em determinado território e sob comando de poder político definido, mas além disso, como uma instituição finalística, promotora do bem comum e defensora dos direitos fundamentais, reclamando uma atuação interventiva na medida em que for necessário.

Nesse aspecto, a instituição de um sistema de saúde, a criação de regras de atuação que não sejam advindas de grupos elitizados, a formação profissional de médicos que visem à efetiva recuperação da saúde do paciente e o incentivo à disseminação de informações que proporcionem conhecimentos acerca dos benefícios e males de cada alimento, medicamento e hábito de vida para a saúde humana são atividades imprescindíveis para um Estado que pretenda assumir o controle de sua missão institucional, como mecanismo propulsor da salvaguarda dos direitos fundamentais.

Para tanto, deve-se frear a influência política e econômica nociva que tem a indústria farmacêutica, buscando-se fomentar uma relação de cooperação mútua entre esse setor industrial, o Estado, a classe médica e os cidadãos que necessitam dos serviços de saúde, tendo por foco a concretização dos direitos sociais fundamentais.

Não se pode olvidar, contudo, da importância da preservação do meio ambiente neste contexto, uma vez que a pesquisa de novos medicamentos muitas vezes depende da extração de componentes da natureza e, nesse processo, não se pode tolerar que haja aumento da degradação ao meio ambiente natural, o que reclama a adoção de medidas sustentáveis por parte desta indústria e de todas as outras. A qualidade do meio ambiente e a interação do homem com a natureza tem relação diretamente proporcional com a saúde e com a qualidade de vida[29], o que também deve ser objeto de rigoroso controle estatal (art. 225, “caput” e § 1º da CF).

Nesse sentido, o jornal "Folha de S. Paulo" noticiou, em outubro de 2004, que as enormes quantidades de substâncias químicas encontradas no ar, na água, nos alimentos e nos produtos utilizados rotineiramente estão diretamente relacionadas com uma maior incidência de câncer, distúrbios neurocomportamentais, depressão e perda de memória. Tal reportagem também divulgou dados do Instituto Nacional do Câncer dos EUA, apontando que dois terços dos casos de câncer daquele País tem causas ambientais[30].

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Fernando Henrique Barbosa Borges. A judicialização das políticas públicas na área da saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5219, 15 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59667. Acesso em: 26 abr. 2024.

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