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A judicialização das políticas públicas na área da saúde

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 3. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil

No Brasil, o sistema público de saúde, desde o governo Getúlio Vargas, foi instituído sob a duplicidade de um sistema cindido entre a medicina previdenciária e a saúde pública. A primeira era destinada à saúde individual dos trabalhadores formais, sendo dirigida prioritariamente às zonas urbanas, e estando a cargo dos institutos de pensão. A segunda estava sob o comando do Ministério da Saúde (MS), sendo direcionada principalmente à zona rural e aos setores mais pobres da população, com atividades, majoritariamente, de caráter preventivo.

Durante a ditadura militar, em 1966, foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), passando a se executar uma política setorial de caráter centralizador e privatizante. As políticas de saúde dos governos militares buscaram incentivar a expansão do setor privado, ampliando a compra de serviços pela previdência e facultando incentivos fiscais às empresas, para contratação de companhias privadas ou cooperativas de médicos que prestassem serviços de saúde a seus funcionários. Os definidores dessas políticas objetivavam também proceder à privatização de parte dos serviços médicos estatais, então considerados inadequados, por não serem lucrativos.

Entre o final da década de 1960 e meados da década de 1970, o Brasil passou por um desenvolvimento econômico expressivo, crescendo a índices em torno de 11% ao ano, às custas de um amplo endividamento externo. Porém, esse desenvolvimento não se espalhou para outros setores, como o da saúde pública. Tanto é verdade que houve uma queda da participação da pasta da saúde no orçamento total da União, de 2,21% para 1,40% entre 1968 e 1972[31].

A população do País vivenciava um quadro sanitário alarmante, havendo preocupação com a qualidade de saúde, principalmente em razão de doenças causadas por falta de infraestrutura, como as verminoses e aquelas de veiculação hídrica.

Em meados da década de 70, foi lançado o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, que agregou obras e ações na área da saúde. Em 1975, foi instituído o Sistema Nacional de Saúde, por meio da Lei n. 6.229. Dois anos depois, houve uma profunda reestruturação do Ministério da Previdência e Assistência Social (Sinpas), separando as atividades previdenciárias – que ficaram a cargo do INPS – das de saúde, que foram atribuídas as Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps).

Com isso, a Previdência Social tornou-se a grande compradora e financiadora de serviços médicos da rede privada, com a implementação de um modelo de assistência caracterizado pela tecnificação dos atos médicos, pela ênfase na assistência hospitalar e pelo assalariamento dos profissionais de saúde. As ações de saúde coletiva, por outro lado, foram abandonadas, em vista dos parcos recursos com que era dotado o Ministério da Saúde. Entre 1968 e 1980, a participação da Saúde no Orçamento da União jamais foi superior a 2,5%.

Apenas com a Constituição da República de 1988, houve a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme artigos 196 a 198 da Lei Maior, com as seguintes regras: regionalização; hierarquização; descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e participação da comunidade. A sua regulamentação veio à tona com a Lei n. 8.080/1990, a qual operacionalizou o atendimento público da saúde.

A criação do SUS resultou de um movimento em favor de uma ampla reforma sanitária, iniciado no final da década de 1970, no contexto do processo de redemocratização do País, tendo como escopo fundamental a reversão do quadro inadequado e perverso do sistema de saúde então vigente, constituído ao longo de quase um século e consolidado durante a ditadura militar.

A inadequação advinha de sua inaptidão para atender à crescente e diversificada demanda causada pelo agravamento do quadro de doenças, o que foi proveniente do processo desenvolvimentista. Sua perversidade foi marcada por deixar à sua margem uma grande quantidade de excluídos.

É interessante observar que, nos anos em que o movimento de reforma sanitária ocorreu, o cenário mundial era bem diverso do vivenciado no Brasil. O Estado de Bem-Estar Social passou a se expandir no mundo desde o término da Segunda Guerra Mundial, com o intuito de salvaguardar direitos sociais tidos como fundamentais, por meio de prestações positivas do Estado. Tal modelo não chegou a ser estabelecido no Brasil nesse período.

Durante os anos de ditadura militar, em que o modelo de Estado de Bem-Estar Social atingiu o seu apogeu no mundo, o Brasil vivia um regime de exceção, com grande restrição aos direitos fundamentais, indo, portanto, na contramão do mundo ocidental. Em 1988, momento em que foi consolidada a redemocratização, o sistema do Welfare State já estava em declínio no mundo. Os governos neoliberais estavam, à época, em franco desenvolvimento, tanto é que esta ideologia permeou a política dos governos do pós-1988.

A Constituição da República trouxe uma série de avanços na área social, inclusive no âmbito da saúde pública, demonstrando o sucesso do movimento sanitário que havia se iniciado anos antes. Assim, algumas melhorias, de fato, foram verificadas neste setor. Porém, a mera criação de regras jurídicas que imponham um “dever-ser” não necessariamente traduz-se em efetividade. O Sistema Único de Saúde (SUS) passou, em seus primeiros anos, por crises sistêmicas e estruturais, advindas da falta de recursos suficientes para a construção de hospitais, aquisição de aparelhos e pagamento de despesas correntes imprescindíveis para o funcionamento do sistema como um todo.

O resultado disso foi o sucateamento de todo o SUS. Apesar do crescimento observado na arrecadação de contribuições sociais, a participação da saúde no montante destes recursos caiu progressivamente. Ou seja, ao mesmo tempo que a Constituição de 1988 universalizava o direito à saúde e responsabilizava o Poder Público por garanti-lo, a participação proporcional do Ministério da Saúde no orçamento da seguridade social e o percentual do PIB destinado ao setor diminuíram nos anos seguintes a 1989. Esse quadro apenas foi regularizado com a promulgação da Emenda Constitucional n. 29/2000, que estabeleceu a vinculação de receitas de impostos para o setor da saúde.

A referida Emenda Constitucional incluiu um § 2º ao artigo 198 da Constituição Federal de 1988, determinando que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, recursos mínimos em ações e serviços públicos de saúde, nos seguintes termos: I - no caso da União, na forma definida em lei complementar, que previu a correção do valor empenhado nos anos anteriores nesta área pela variação nominal do PIB (LC nº 141/2012); II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, pelo menos 12% sobre o produto da arrecadação dos impostos estaduais (ICMS, ITCD e IPVA) e dos recursos derivados de transferências constitucionais feitas pela União, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos municipais (ITBI, ISS e IPTU) e das transferências constitucionais feitas pela União e Estados aos Municípios (art. 77 do ADCT e LC nº 141/2012).

Essa sistemática conferiu certa estabilidade ao financiamento do SUS, porquanto houve uma estipulação de gastos mínimos e obrigatórios com saúde, em conformidade com o crescimento econômico experimentado pelo país, tendo em vista que a vinculação referida oscilaria de acordo com o maior ou o menor volume de impostos arrecadados pelos entes federados.

Por fim, em 2015 houve modificação do método de cálculo do mínimo com ações e serviços público de saúde da União, por meio da Emenda Constitucional nº 86, vinculando-se a aplicação mínima a um percentual da receita corrente líquida (RCL), de forma escalonada, sendo 13,2% da RCL em 2016, 13,7% em 2017, 14,2% em 2018, 14,7% em 2019 e 15% em 2020.

Novos problemas poderão advir de uma eventual aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 241/2016, que obteve quórum suficiente de favorabilidade na Câmara do Deputados, sendo remetida ao Senado Federal para uma nova rodada de discussões e votação, onde passou a tramitar sob o número 55/2016. A proposta prevê o congelamento de gastos públicos ao longo dos próximos vinte anos, inclusive na área da saúde, em descompasso com o progressivo aumento da demanda neste setor da vida social. Porém, não há condições para aprofundamento deste tema no âmbito restrito do presente estudo.


 4. A legitimidade da atuação do Poder Judiciário no âmbito das políticas públicas de saúde

À luz do que se expôs em linhas pretéritas, pode-se asseverar que a análise da temática concernente à saúde pública não pode ser puramente jurídica, porquanto questões de ordem política e econômica estão diretamente relacionadas a ela, e acabam por interferir, de modo negativo, para a concretização de políticas públicas nesta área, sendo imprescindível que o Poder Judiciário atue de modo a suprir as omissões e as insuficiências resultantes da precária e distorcida atividade exercida pelos demais Poderes do Estado, notadamente pelo Poder Executivo, que é responsável por executar o orçamento público e por dar efetividade às normas emanadas do Poder Legislativo em matéria de proteção social, e em especial na essencial área da saúde.

Assim, tecidas as considerações acerca dos aspectos políticos e econômicos nos tópicos supra, iremos nos deter doravante a avaliar a questão sob um prisma predominantemente jurídico, buscando avaliar se há legitimidade do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas na área da saúde – as quais exigem, via de regra, gastos públicos para sua efetivação.

O direito à saúde é consagrado pela Constituição da República de 1988, em seus artigos 6º e 196. Esse último preconiza que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, garantindo-se o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

O direito à saúde é fundamental. A ausência de sua menção no artigo 5º da Constituição Federal não lhe retira esta natureza. Inclusive, este direito é uma decorrência inexorável do direito à vida, esse previsto expressamente no “caput” do art. 5º da Lei Maior, como sendo inviolável. Uma vida sem saúde é uma vida violada, e a morte se pode dizer que é a total ausência de saúde, razão pela qual negar esse direito é negar o direito à vida[32]. Nesse sentido, a própria Lei 8.080/90, em seu art. 2º, proclama este direito como fundamental, assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RE 271.286-AgR, 2ª T., Plenário, j. 12.09.2000, rel. Min. Celso de Mello, DJ 24.11.2000).

No âmbito do direito internacional, também vigora a ideia de que o direito à saúde possui elevada carga de fundamentalidade, tendo recebido destacado reconhecimento por parte da comunidade internacional, firmando-se diversos acordos supranacionais nesse sentido.

O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil, prevê, em seu artigo 12, que “os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental”, estabelecendo-se medidas para assegurar a diminuição da mortalidade infantil; a melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; a prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; e a criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade[33].

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O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, denominado “Protocolo de San Salvador”[34], estabeleceu em seu art. 10 que “toda pessoa tem direito à saúde, entendida como o gozo do mais alto nível de bem-estar físico, mental e social”. O item 2 do referido artigo prevê medidas para tornar efetivo o direito à saúde, comprometendo-se os Estados Partes a reconhecer a saúde como bem público e a adotar as seguintes medidas para garantir este direito: a. Atendimento primário de saúde, entendendo-se como tal a assistência médica essencial colocada ao alcance de todas as pessoas e famílias da comunidade; b. Extensão dos benefícios dos serviços de saúde a todas as pessoas sujeitas à jurisdição do Estado; c. Total imunização contra as principais doenças infecciosas; d. Prevenção e tratamento das doenças endêmicas, profissionais e de outra natureza; e. Educação da população sobre prevenção e tratamento dos problemas da saúde; e f. Satisfação das necessidades de saúde dos grupos de mais alto risco e que, por sua situação de pobreza, sejam mais vulneráveis.

Aplica-se-lhe, portanto, a prescrição do § 1º do art. 5º da Constituição da República, que prevê que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”[35].

Porém, como qualquer direito fundamental, o direito à saúde é relativo e deve obedecer a exigências, de forma a não ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.

O direito à saúde possui duas dimensões que se completam: de um lado, é um direito social, conforme previsão do art. 6º da CF; de outro, é um direito de caráter individual, podendo ser judicializado em busca de sua efetivação, em vista do princípio da inafastabilidade da jurisdição e do direito à vida, o que está em consonância com entendimento predominante no âmbito do STF[36].

No aspecto social, o direito à saúde é implementado por meio de políticas públicas, com a atuação marcante do Sistema Único de Saúde (SUS) nesse cenário. A Constituição estabelece, em seu artigo 199, que a iniciativa privada pode prestar assistência à saúde de forma complementar ao SUS, mas o que se vê na prática é o contrário, devido à inaptidão de a rede pública de saúde prestar um serviço abrangente e de qualidade.

Sob o prisma individual, o direito à saúde é um direito público subjetivo, devendo ser realizado na maior medida possível, de forma a se garantir a universalidade de sua fruição básica.

A garantia de serviços de saúde a alguns em detrimento de outros fere o princípio da isonomia (art. 5º, “caput”, CF). Segundo esse princípio, todos devem ser tratados de forma igual, desde que não haja uma razão suficiente que permita a diferenciação.

Nesse sentido, haveria direito subjetivo à isonomia, a ser patrocinado a quem estivesse sendo tratado de forma não isonômica. E isto pode ocorrer das seguintes formas, segundo Alexy[37]: 1. “Se alguém – devido a uma violação da máxima da igualdade – é afetado por uma proibição, pode ter um direito definitivo concreto baseado na máxima da igualdade, à omissão da intervenção, é dizer, a um direito de status negativo. Neste caso, a 'omissão de um tratamento desigual' é uma ação negativa”.

Nessa hipótese, há uma vedação ao exercício de direitos entre iguais, de modo que se deve buscar a cessação de tal proibição. 2. “Se alguém – como consequência de uma violação da máxima da igualdade – não é favorecido, pode ter um direito definitivo concreto baseado na máxima da igualdade a ser favorecido, é dizer, um direito de status positivo. Neste caso, a 'omissão de um tratamento desigual' é uma ação positiva”.

Nesse sentido, existe um direito público subjetivo a quem tiver sido prejudicado pela quebra da isonomia a pedir uma equiparação, com o retorno da isonomia violada, seja através de uma ação negativa, que impeça o tratamento discriminatório, seja por meio de ação positiva, que eleve o grupo prejudicado à situação dos favorecidos.

Dessarte, seja para corrigir a situação anti-isonômica gerada pelo tratamento desigual na concessão do serviço público de saúde, seja para concretizar o próprio direito individual à saúde e garantir o princípio da inafastabilidade da jurisdição, o Poder Judiciário vem atuando com o fito de implementar políticas pública nesta área, com determinação, entre outras medidas, de fornecimento de medicamentos e suplementos alimentares, de imposição de vagas em unidades de tratamento intensivo (UTI) e de aquisição de materiais médicos, laboratoriais e cirúrgicos.

A referida atuação do Poder Judiciário é legitima[38]. De início, cumpre ressaltar que o art. 194 da CF/88 estabelece que a “seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade”, com uma notável inclusão de todos os Poderes do Estado, entre os quais se agrega o Judiciário, nos termos do art. 2º de nossa Carta Magna.

Ademais, este Poder não “inventa” políticas públicas na área da saúde de forma isolada e arbitrária, mas apenas aplica a norma estabelecida pelo poder constituinte, numa postura reverente e respeitosa acerca das normas constitucionais. Isso não o torna um legislador positivo[39].

Por óbvio, a atuação do Judiciário, tanto como legislador positivo quanto negativo, deve ser vista com as devidas cautelas, haja vista que a função de legislar deve ser desenvolvida de forma preponderante pelo Poder Legislativo. Nesse sentido, Ronald Dworkin entende que o juiz nunca deveria agir como legislador, limitando-se a aplicar as leis existentes, pois a comunidade deve ser governada por pessoas eleitas pela maioria, e o juiz não foi eleito e sequer presta contas ao eleitor, além de não ser admissível a criação de norma jurisdicional/concreta a ser aplicada retroativamente. Entretanto, o próprio doutrinador reconhece que, na prática, é impossível que o juiz não acabe se comportando como uma espécie de legislador, em vista da costumeira vagueza e confusão dos textos legais.[40].

Assim, o trato do tema relacionado a políticas públicas pelo Estado-juiz deve sempre ser excepcional e fundada na concretização dos direitos fundamentais, cuja satisfação não pode ficar ao mero alvedrio dos demais Poderes.

Não obstante, o Poder Judiciário tem, historicamente, se imiscuído em matérias muito específicas e, por vezes, interferido de modo indevido na área política, extrapolando os limites de uma atuação restrita à resolução de lides ou à aplicação do direito em casos que lhe são submetidos.

Um exemplo disso foi a forte resistência da Suprema Corte norte-americana quando da instituição do New Deal pelo Presidente Roosevelt, bem como quando da criação do imposto sobre a renda, a qual chegou a ser impedida inicialmente pela Suprema Corte, mas foi institucionalizada com a aprovação da décima sexta emenda à Constituição estadunidense[41]. Exemplo mais recente está contido na suspensão efetuada pela Suprema Corte norte-americana, em fevereiro de 2016, de um programa de reduções de emissões de poluentes pelas centrais térmicas proposto pelo presidente Barack Obama, contrariando compromisso assumido na 21ª Conferência do Clima (COP 21).

No Brasil, quando o STF interfere em política pública na área de saúde, dando aplicação integral ao direito à saúde, como corolário do direito à vida, não se está a interferir indevidamente no campo de atuação restrito de outros Poderes. Está, isso sim, dando efetividade a preceitos fundamentais autoaplicáveis por própria determinação constitucional (art. 5º, § 1º, CF), e impedindo que o direito à saúde sofra embaraços impostos por autoridades administrativas no sentido de reduzi-lo ou de ser dificultado o acesso a ele.

A legitimidade do Poder Judiciário para o trato da matéria decorre do próprio mandato constitucional recebido, de sua função contramajoritária e, especialmente, do caráter preferencial dos direitos fundamentais. O sistema orçamentário autorizativo brasileiro criou uma grave distorção ao deixar as decisões de dispêndio de dinheiro público sob o talante exclusivo da Administração Pública, que é governada pelo princípio majoritário. Dessa forma, o Judiciário deve assumir a tarefa de proteger as minorias na prestação dos serviços públicos, corrigindo a citada inconsistência[42]. Além disso, a legitimação do Judiciário é advinda da fundamentação de suas decisões, ao contrário dos demais Poderes do Estado, em que a legitimidade baseia-se no voto popular.

A tendência das decisões judiciais é de se efetivar a proteção constitucional do direito à saúde. Entretanto, há tendência minoritária que, com fundamento em uma ótica liberal clássica e na cláusula da separação dos poderes, afasta a justiciabilidade do direito à saúde.

O argumento central é de que não cabe ao Judiciário controlar critérios de conveniência e oportunidade da Administração para atender demanda da população na área da saúde, sob a justificativa da ofensa ao princípio da separação dos poderes, bem como da ofensa a critérios de dotação orçamentária, com base ainda no princípio da “reserva do possível”.

Nesse sentido, o doutrinador português Canotilho referiu-se a um movimento chamado “ecological approach”, que pretende colocar o problema dos pobres no âmago da responsabilidade constitucional e funcional dos juízes. Em razão da inércia dos poderes políticos competentes para implementação de políticas públicas, em manifesta desconformidade com os princípios de justiça, constitucionalmente plasmados, a magistratura assume sua accountability e sua responsiveness  para com os pobres, proferindo sentenças de inequívoca conformação político social. Canotilho discorda deste modelo de atuação, por ser casuísta – sobretudo no âmbito de prestações de saúde - e por faltar legitimidade para apreciação político-judicial das desconformidades constitucionais das políticas públicas. O Poder Judiciário não seria órgão politicamente responsável[43].

Porém, tal entendimento não se sustenta, notadamente em países subdesenvolvidos, nos quais o Estado de Bem-Estar Social foi instituído de forma precária e parcial, sofrendo diversas represálias por parte das grandes potências econômicas e dos setores políticos neoliberais. Ademais, não faz sentido a existência de um Estado que não se preste a garantir a seu povo os direitos sociais mínimos previstos constitucionalmente, ainda que por intermédio da força coativa do Judiciário, em face da inadmissível inércia dos demais Poderes do Estado.

Resta avaliar, no entanto, em que medida a interferência do Poder Judiciário na seara da saúde pública conserva a sua legitimidade constitucional. Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes, do STF, apontou que “na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas”[44]. Isso mostra que as políticas públicas na área da saúde que foram objeto de aprovação pelo Poder Legislativo e de inclusão em programas do Poder Executivo não estão sendo efetivadas a contento, de modo a atender a universalidade da cobertura e do atendimento (art. 194, parágrafo único, I, CF).

Nesse caso, salientou o Ministro Gilmar Mendes que “ao deferir uma prestação de saúde incluída entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento. Nesses casos, a existência de um direito subjetivo público a determinada política pública parece ser evidente”[45].

Logo, se existe uma política pública na área de saúde aprovada por Lei e incluída em programas governamentais, por óbvio houve anterior inclusão das despesas decorrentes no âmbito do orçamento (art. 167, I e II, da CF/88 e art. 16 da LRF), sendo perfeitamente válida a interferência do Judiciário ao determinar sua efetivação. Entretanto, os provimentos jurisdicionais poderão gerar dois efeitos: a) o aumento dos gastos totais na área da saúde, o que deverá advir do remanejamento de recursos de outras áreas ou da criação de créditos adicionais, com prévia edição de lei (art. 167, V e VI da CF/88); ou b) a alteração do destino dos recursos alocados para o setor da saúde, retirando-se dinheiro de certos programas sociais para o atendimento de causas judiciais específicas.

Evidentemente, o primeiro efeito apontado é preferível ao segundo, tendo em vista que o tema da saúde pública teve peculiar atenção do poder constituinte, sendo criado todo um sistema voltado a conferir concretização a este direito, o qual se revela de essencial fundamentalidade no âmbito de um Estado Social e Democrático de Direito. Tanto a omissão no implemento das políticas públicas estabelecidas em lei ou previstas em programas governamentais quanto no cumprimento de decisões judiciais relacionadas à saúde pública são igualmente inconstitucionais, por violação ao princípio da dignidade da humana, à vedação de ferimento do núcleo essencial dos direitos fundamentais, à garantia do mínimo existencial e aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. O tema específico da repercussão orçamentária será analisado no tópico a seguir.

Para efetivação do direito à saúde pelo Judiciário, pressupõe-se que prestações estatais básicas destinadas à garantia de uma vida digna para cada pessoa constituem parâmetro necessário para a justiciabilidade dos direitos sociais prestacionais, no sentido de direitos subjetivos definitivos que prevalecem até mesmo em face de outros princípios constitucionais (como é o caso da reserva do possível, da reserva parlamentar em matéria orçamentária e da separação dos poderes)[46].

Ou seja, a legitimação do Judiciário para efetivação dessas políticas públicas deve estar pautada na garantia do mínimo existencial, em respeito à dignidade humana. A extrapolação deste critério, com a inovação de políticas públicas que desbordam o mínimo necessário para uma vida humana digna, seria afrontosa ao princípio da separação dos poderes e, portanto, ilegítima.

Na esfera da garantia do mínimo existencial, há um direito subjetivo definitivo às prestações que lhe são inerentes, ou seja, que eventual obstáculo de ordem financeira e orçamentária deverá ceder ou ser removido, inclusive mediante a realocação de recursos, fixação de prioridades, ou mesmo outras medidas. Outrossim, não se poderá pretender suprimir ou esvaziar, pelo menos não aquém do mínimo existencial, a concretização já levada a efeito dos direitos sociais[47].

Em suma, cabe ao Poder Judiciário universalizar as políticas públicas na área da saúde, concedendo prestações materiais a quem não possui outro meio de obtê-las e não teve acesso a elas no âmbito das políticas públicas de caráter mais abrangente. Contudo, o alcance de suas decisões restringir-se-á ao mínimo necessário à existência digna do ser humano – sob pena de converter-se em legislador positivo e de afrontar a separação de poderes. Assim, haverá um equilíbrio na atuação deste Poder, que não chegará a ser abusivo e tampouco omissivo.

Nesse sentido, o Tribunal Constitucional português, no Acórdão n.º 509/2002, reiterou pronunciamentos anteriores, reconhecendo que, no âmbito da concretização dos direitos sociais, o legislador dispõe de ampla liberdade de conformação, podendo decidir a respeito dos instrumentos e sobre o montante dos benefícios sociais a serem prestados, sob o pressuposto de que, em qualquer caso, a escolha legislativa assegura, com um mínimo de eficácia jurídica, a garantia do direito a um mínimo de existência condigna para todos os casos. Ou seja, deve-se resguardar o respeito ao princípio da universalidade no que diz com a titularidade dos direitos fundamentais, pelo menos daqueles que possuem um conteúdo em dignidade da pessoa humana.

Na maioria dos casos, na judicialização dos direitos à saúde não se discute a qualidade dos serviços prestados, mas sobretudo o acesso a esses serviços, o seu alcance e a sua cobertura. As demandas são principalmente individuais, especialmente no caso de demandas a respeito do fornecimento de medicamentos para portadores de vírus HIV, o que inclusive estimulou a aprovação da Lei 9.313/96, que determinou o fornecimento obrigatório e gratuito, pelo SUS, de medicamentos a todos os portadores do vírus HIV.

O movimento de defesa dos direitos das pessoas portadoras do vírus HIV ecoou no plano internacional, destacando-se o protagonismo do Brasil quanto à iniciativa, na Comissão de Direitos Humanos da ONU, de propor uma resolução considerando o acesso a medicamento para os portadores de AIDS, malária e tuberculose como um direito humano fundamental, o que acabou por contribuir para o pleito da quebra de patentes de medicamentos para a AIDS, no âmbito da OMC.

Apesar de o licenciamento compulsório previsto na legislação brasileira ter sido alvo de contestação por parte dos Estados Unidos da América, onde se concentra a maior parte dos laboratórios que detêm as patentes dos medicamentos anti-AIDS, a resolução acabou sendo aprovada, representando um avanço histórico no trato da questão.

Portanto, observa-se que a atuação do Poder Judiciário no trato desta matéria tem ímpar relevância, inclusive estimulando a criação e o aprimoramento de políticas pública no setor, em prol da melhoria de todo o sistema de saúde e de seus usuários. Em monografia a respeito do tema, foi verificado que, no Município de Vitória da Conquista – BA, a concessão de liminares determinando a entrega de medicamentos fez com que o ente instituísse um programa farmacêutico, facilitando o acesso da população e, por conseguinte, reduzindo o número de liminares em determinado período.

Além disso, o Município decidiu realizar licitações prévias, na modalidade registro de preços, para a aquisição dos medicamentos mais demandados judicialmente, gerando uma redução no custo de aquisição[48]. O mesmo fenômeno ocorreu no Município de São Paulo – SP, em que passaram a ser realizadas “licitações preventivas”[49].

Interessante mencionar, nesse aspecto, a criação do Núcleo da Apoio Técnico (NAT) pelo Município de Araguaína – TO, com funções consultivas (subsidiar o Judiciário de informações relativas ao tema), preventivas (estimulando a resolução administrativa de conflitos) e de gestão[50], o que tem permitido maior diálogo institucional e redução da demanda judicial. No Distrito Federal, foi criada a Câmara Permanente Distrital de Mediação em Saúde, além de serem elaboradas certas estratégias formais e informais para lidar com o problema[51].

No Estado de São Paulo, cumpre mencionar a parceria havida entre Secretaria de Saúde e Defensoria Pública do Estado (maior demandante no Estado em ações desta natureza), reduzindo a quantidade de ajuizamentos por parte desta em 90% em determinado período[52]. Outra iniciativa do Governo do Estado de São Paulo foi a implementação, em 2009, do serviço denominado “pedido administrativo”, criando instância administrativa para fornecimento espontâneo de medicamentos não padronizados pelo SUS, com o fito de conter a crescente judicialização em matéria de saúde.

É evidente que o assunto não se esgota apenas com os aspectos positivos desta atuação. Por vezes, são lançados argumentos no sentido de que a interferência do Judiciário quebra a ordem de preferência (fila) nos hospitais, com reserva de escassos leitos médicos para pacientes que muitas vezes encontram-se em estado menos grave do que diversos outros.

Noticiaram-se casos em que se decretou a prisão de médicos que não atenderam decisão judicial determinando a disponibilização de vagas em UTI, por falta de leitos desocupados. O Conselho Regional de Medicina repudiou tal procedimento, alegando que caberia ao médico avaliar a gravidade e a prioridade de pacientes nas UTIs, e que aquele não poderia ser penalizado pelo problema na saúde pública e pela falta de leitos.

Com efeito, situações deste jaez reclamam uma medida de cooperação entre médicos e o Poder Judiciário, com o escopo de se encontrar um caminho do meio na resolução do assunto, que definitivamente não perpassa por uma disputa entre essas instâncias, mas sim por uma avaliação conjunta da demanda por serviços médicos (notadamente os de urgência) e da disponibilidade de leitos médicos, tanto na rede pública quanto na particular, dando-se prioridade para as situações mais graves, já que se entremostra inviável o atendimento de todos os casos a priori, sem que haja uma estruturação de todo o sistema. Nesse ponto, o exemplo de Araguaína – TO, citado acima, é paradigmático e inspirador, podendo servir de parâmetro para outros entes públicos.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Fernando Henrique Barbosa Borges. A judicialização das políticas públicas na área da saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5219, 15 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59667. Acesso em: 2 nov. 2024.

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