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A judicialização das políticas públicas na área da saúde

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 5. O impacto orçamentário decorrente do ativismo judicial no cenário da saúde pública

De início, sobreleva assinalar que todos os direitos fundamentais têm um custo[53]. Tanto os direitos de primeira geração, associados à ideia de liberdade, quanto os de segunda dimensão – que realçam o princípio da igualdade, e inclusive os de terceira geração, consagradores do princípio da solidariedade, demandam dinheiro para a sua efetivação.

No primeiro caso, por exemplo, a liberdade individual depende da manutenção de um aparato policial e jurisdicional para garanti-la. No segundo e no terceiro, de prestações materiais e de instituições que assegurem a sua fruição.

Em matéria de concretização de direitos sociais, aqui enfocando a seara da saúde, deve-se atentar para o fato de que a lei orçamentária brasileira, atendendo aos princípios da especificação e da legalidade, estabelece o montante de recursos destinados à saúde pública.

Com esse montante de recursos, busca-se dar eficácia ao princípio da universalidade da cobertura e do atendimento, com respeito à ordem de apresentação de demandas, de gravidade das doenças e de hipossuficiência dos requerentes, e aos princípios da seletividade e da distributividade na prestação dos benefícios e serviços (art. 194, parágrafo único, I e III, da Constituição da República de 1988), tendo por escopo conferir atendimento integral e com prioridade para atividades preventivas (art. 198, II, da CF).

Entretanto, os recursos destinados a esta área nunca são suficientes para o atendimento da crescente demanda, máxime considerando o impacto das decisões judiciais neste aspecto.

Quando da elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA), não há conhecimento acerca das ações judiciais em tramitação ou que tramitarão em matéria de saúde pública, de modo a se inviabilizar um exato dimensionamento do montante a ser gasto pelo ente a este título.

Uma alternativa que se mostra possível é a utilização de reserva de contingência (art. 5º, III, da LRF), que não se submete aos rigores do princípio da especificação, e poderia ser utilizada livremente para o pagamento de gastos imprevistos em virtude da judicialização em comento.

Sabe-se que, na prática, a maior parte dos entes públicos destina somente o mínimo estabelecido constitucionalmente para a área da saúde (art. 198, § 2º, da CF), fazendo vistas grossas em relação à problemática da judicialidade. Assim, se há determinação judicial que demande gasto público, efetuam-se cortes de recursos que seriam utilizados no atendimento de programas de saúde para o atendimento do provimento jurisdicional. Ou seja, o que se dá a um, de outro se tira.

Por conta dessa escassez de recursos públicos a serem usados nesta área, e da necessária ocorrência de “escolhas trágicas”, tem-se buscado uma limitação no âmbito das decisões judiciais exaradas, o que se deu com a importação da teoria alemã da “reserva do possível”.

Segundo esta teoria, “todo orçamento possui um limite que deve ser utilizado de acordo com exigências de harmonização econômica”[54]. A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas[55]. No direito brasileiro, tal teoria passou a ser usada como reserva do financeiramente possível, justificando existência de limitações à efetivação dos direitos sociais[56].

O primeiro órgão a quem compete fazer minuciosa análise dos limites fáticos do orçamento seria o legislador, ao elaborar a LOA. O Poder Executivo, num segundo momento, daria concretude ao disposto em lei, efetivando a execução orçamentária com a eleição de prioridades a serem atendidas. O Judiciário não poderia interferir nesta seara.

Contra a judicialização de demandas na área da saúde, argumenta-se, ainda, que a LRF limita a liberdade de utilização de verbas orçamentárias, fazendo com que o gestor considere as prioridades impostas, engessando assim as possibilidades de atuação deste diante das demandas que são apresentadas por meio de ordens judiciais, conforme arts. 16 e 17 da LRF.

Afirma-se, outrossim, que a Constituição Federal de 1988 instituiu o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual, dando ênfase ao planejamento estatal, ao equilíbrio orçamentário e ao princípio da programação, no afã de concretizar políticas públicas de alcance coletivo, impedindo a interferência do Judiciário nesta seara[57].

Esses argumentos têm sido bastante utilizados pela Fazenda para demonstrar a sua impossibilidade de cumprir decisões judiciais em matéria de saúde. Porém, são afirmações falsas, as quais guardam uma ideologia de negação dos direitos sociais. Inclusive, a jurisprudência vem se manifestando no sentido de que a Fazenda deve provar, no caso concreto, a inviabilidade econômica do atendimento do pedido, não bastando a mera alegação, como costumeiramente se vê[58].

Uma pergunta deve ser feita, neste ponto: reserva do possível revela-se um argumento sustentável? Para respondê-la, será necessária uma digressão. A doutrina majoritária entende que a limitação da reserva do possível existe e é uma contingência que não se pode ignorar. A finalidade do Estado, ao obter recursos para depois gastá-los com obras e políticas públicas, seria exatamente a de realizar os objetivos da Constituição, encerrados em seu art. 3º.

Assim, o ente público realizaria uma apuração dos elementos fundamentais da dignidade da pessoa humana preconizada na CF/88, estabelecendo os alvos prioritários e, só depois de atingi-los, é que se discutiria em quais outros projetos deveria investir os recursos remanescentes[59].

Entretanto, a concretização dos direitos fundamentais sociais está longe de ser o alvo prioritário dos governos. O argumento da doutrina brasileira é falacioso, e baseado numa estrita e deturpada leitura jurídica. Foi possível extrair essa conclusão inclusive na audiência pública sobre saúde realizada pelo STF, tendo o Defensor Público da União André da Silva Ordacy comparado os gastos com atendimento a decisões judiciais e com propaganda governamental, chegando a concluir que esses foram quase dez vezes maiores que aqueles. Ademais, o Ministério da Saúde noticiou que treze Estados-membros aplicaram menos que o mínimo estabelecido pela CF em saúde.

Por óbvio, a Constituição da República representou um grande avanço para a defesa dos direitos sociais. Contudo, a simples criação normativa não implica, necessariamente, uma melhoria da realidade social. Nesse aspecto, a Lei Maior brasileira classifica-se, de acordo os com critérios propostos por Karl Loewenstein[60], como nominalista, sem expressar a normatividade esperada.

Consoante apontado no tópico 2, supra, o sistema econômico hoje vigente impõe um crescente endividamento aos países subdesenvolvidos, como forma de mantê-los dependentes das nações mais poderosas economicamente. Em vista disso, ocorre um fenômeno cíclico, que se inicia com a aquisição de empréstimos de organismos internacionais, com o suposto fundamento de que o dinheiro será usado para a promoção dos direitos fundamentais, sendo criada uma dívida pelo país.

Para pagar essa dívida, aumentam-se os tributos, tornando a população mais carente de recursos, o que acaba por aumentar as desigualdades sociais e a necessidade de prestações estatais. As pressões dos setores econômicos impedem, porém, que o Estado preste serviços públicos de qualidade, uma vez que o dinheiro passa a ser canalizado para o pagamento da dívida pública, no afã de se manter um certo equilíbrio econômico.

Neste contexto, orçamento federal de 2015 previu um montante de despesas totais no importe de R$ 2,683 trilhões, sendo que R$ 1,356 trilhão (47%) foi destinado ao pagamento de juros e amortização da dívida pública. A prorrogação da vigência da DRU até 2023, com ampliação de seu percentual de 20% para 30%, vem permitindo que o governo retire recursos da seguridade social para pagar a dívida pública, estimando que esse desvirtuamento alcance em 2016 o montante estimado de R$ 117,7 bilhões, conforme divulgado no sítio eletrônico do Senado Federal[61].

A par disso, os gastos com publicidade no País somaram R$ 60,7 bilhões no 1º semestre de 2016, segundo dados divulgados pelo Ibope Media[62]. Em 2014, foram previstos gastos tributários federais de R$ 249,76 bilhões com incentivos fiscais, equivalente a 20,66% da arrecadação estimada para o ano. Fazendo-se um contraponto, os gastos estimados com saúde no orçamento federal de 2015 foram de R$ 109,2 bilhões, sendo treze vezes inferior ao gasto com dívida pública.

Assim, o que se observa é que a eleição das políticas públicas volta-se mais para o atendimento dos interesses dos setores econômicos e governamentais do que da população pobre e necessitada, que deveria ser o alvo principal das políticas estatais. Isso nos remete à teoria do elitismo, abordada no item 2, acima, de modo que o controle dos rumos assumidos pelo Estado está submetido a um restrito ciclo de pessoas, que pouco se importam com os interesses gerais, e muito se atentam para os seus próprios interesses, notadamente os de cunho econômico.

É nesse aspecto que se coloca a relevante e necessária função do Poder Judiciário, no afã de equalizar as disparidades sentidas no aspecto econômico e político, exercendo o seu papel de órgão de atuação contramajoritária, protegendo os interesses dos hipossuficientes, que efetivamente estão morrendo nas filas de espera dos hospitais e sofrendo com a ausência de cuidados médicos. A Constituição não pode ser uma mera folha de papel, sendo imperiosa a existência de instituições fortes para conter a avareza dos famigerados “fatores reais de poder”, contrariando o preconizado por Ferdinand Lassale ao lançar sua concepção sociológica de Constituição[63].

Assim, não se sustenta, em regra, a utilização retórica da “reserva do possível” como forma de retirar a possibilidade do Judiciário atuar de forma enérgica na proteção de direitos sociais plasmados na Constituição Federal. A competência atribuída aos Poderes Executivo e Legislativo de decidir acerca dos gastos públicos não pode se converter em promessa constitucional inconsequente de defesa dos direitos fundamentais, e tampouco confere àqueles Poderes ampla discricionariedade para aplicar recursos onde bem entenderem.

Outrossim, a previsão contida nos arts. 16 e 17 da LRF não engessam o gestor público a ponto de impedir que ele atenda os provimentos jurisdicionais. Lei infraconstitucional não pode se sobrepor aos mandamentos constitucionais autoaplicáveis de garantia dos direitos fundamentais de cunho social, ainda que em sua dimensão individual.

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A par disso, não há se falar em punição do administrador público por crime tipificado na Lei de Crimes Fiscais, bem como por crime de responsabilidade fiscal, pois estará em cumprimento de uma ordem judicial. Consoante afirmado pelo ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, é um erro tratar a saúde como gasto, pois se trata de investimento, fundamental para o desenvolvimento econômico e humano.

A concessão de incentivos fiscais, a realização de gastos com publicidade e o excessivo dispêndio de recursos com o pagamento da dívida pública deixam em segundo plano o trato da questão social. O que sobra, destinam à proteção dos direitos previstos constitucionalmente. Deve haver uma inversão desta realidade perversa, e o direito é o instrumento hábil a concretizá-la. O Judiciário é um dos órgãos por onde tal discussão deve ser levada adiante.

Nesse contexto, o Tribunal Constitucional da Colômbia[64] entendeu que a decisão de reduzir os recursos destinados a subsidiar habitações para a população de baixa renda, em abstrato justificada pela necessidade de contenção de despesas (pela carência de recursos) e atendimento a outras demandas de cunho social, não resultou convincente no caso concreto, especialmente quando as dificuldades financeiras apontadas podem ser atribuídas à falta de planejamento e gestão deficiente do próprio Poder Público.

Conquanto não seja específica em torno da temática da saúde pública, a decisão mostra que a reserva do possível só pode ser invocada como argumento válido em hipóteses excepcionais, pois a sua análise pressupõe a averiguação de uma série de questões de cunho econômico, orçamentário, político e social. Imprescindível é a garantia ao mínimo existencial como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Disso não se pode abrir mão.

A crescente judicialização na área da saúde pública demonstra que a população tem se mostrado descontente com as políticas públicas no setor. Um levantamento do Ministério da Saúde mostra que desde 2010 houve um aumento de 727% nos gastos da União com ações judiciais para aquisição de medicamentos, equipamentos, insumos, realização de cirurgias e depósitos judiciais[65].

Os órgãos governamentais brasileiros têm uma despesa com medicamentos considerada elevada e crescente. Levando-se em conta que 72% da população utiliza o SUS (de acordo com dados da Fundação Getúlio Vargas), e que muitas vezes os programas de Assistência Farmacêutica constituem a única fonte de aquisição de medicamentos possível para essas pessoas, esse aumento era de se esperar. O acesso aos medicamentos está presente nas agendas internacional e nacional como um importante tema, estando incluído nas Metas do Milênio (ONU, 2001).

Porém, mesmo com o aumento das ações judiciais nesta área, estima-se que apenas 30% dos indivíduos envolvidos em disputas procuram a Justiça no Brasil, existindo uma clara relação entre índice de desenvolvimento humano e litigância, ou seja, é bastante maior a utilização do Judiciário nas regiões que apresentam índices mais altos de desenvolvimento humano[66].

Os que defendem as Fazendas Públicas têm o hábito de afirmar que as determinações judiciais reduzem o valor reservado à saúde no orçamento, o que não é fato. Não há regra nesse sentido. O gestor do orçamento pode lançar mão de outros recursos para executar o orçamento sem tal dano. A lei orçamentária é meramente autorizativa, não impositiva. Aliás, o que se faz necessário é a previsão de verbas no orçamento para atender essas demandas judiciais, consubstanciando o princípio da programação, que exige o imprescindível planejamento para uma boa gestão pública. A par disso, poder-se-ia utilizar as reservas de contingência, conforme já se apontou[67].

Os gastos advindos da judicialização de políticas públicas na área da saúde ainda não se mostra com uma expressividade preocupante, se comparados com os gastos gerais do orçamento na área da saúde. No caso específico do Município de Vitória da Conquista – BA, as despesas com liminares judiciais comparadas com as despesas gerais da saúde alcançaram o percentual de 0,24% em 2011 e 0,36% em 2014[68]. No âmbito da União, os gastos com liminares judiciais representaram o percentual de 1,09% em relação às despesas gerais de saúde, no ano de 2015[69].

Considerando que a Constituição da República foi incisiva na proteção deste direito, bem como que houve desvirtuação de gastos para diversas áreas menos relevantes, o percentual não se mostra exagerado, ainda mais se passarmos a considerar que a parte da saúde no orçamento da seguridade social vem sofrendo uma gradual redução nos últimos anos, conforme foi revelado pelo ex-ministro Adib Jatene, no âmbito da audiência pública sobre saúde realizada pelo STF.

Passa-se, por fim, a expor alguns limitadores mínimos que as decisões judiciais devem observar para sua plena eficácia e legitimidade, tendo em vista que a questão é bastante delicada.

Por ser clara a tendência de aumento da demanda judicial, torna-se necessária a criação de critérios seguros, transparentes e uniformes para que essa atuação não se torne negativa a ponto de prejudicar a independência e a harmonia entre os Poderes, a execução orçamentária e os programas governamentais voltados à proteção da saúde pública.

Nesse aspecto, cumpre mencionar que muitos gastos com saúde são desnecessários. De acordo com pesquisa divulgada na Revista Superinteressante, 70% das despesas do SUS decorrem da assistência a doenças que poderiam ser tratadas com mudança de comportamento[70]. Acrescente-se que OMS estima que metade do consumo mundial de medicamentos é feito de forma irracional, ou seja, em dose, tempo ou custo maior que o necessário, conforme enfatizado no tópico 2, supra.

Por conta disso, no âmbito de um processo judicial, o perito médico estatal deve ser incisivo, dizendo se há doença e se o que é prescrito é o adequado ou não, além de ter de esclarecer se não há como substituir tal tratamento ou remédio por algo já fornecido pelo Poder Público ou de menor custo, mas com o mesmo benefício. Também se deve contar com a contribuição do indivíduo contemplado pelo provimento jurisdicional, de modo que ele mude hábitos de vida, como forma de tornar eficaz o tratamento médico e reduzir o risco de reincidências.

A saúde não depende apenas de remédios, programas sociais e decisões judiciais, mas da colaboração da comunidade, já que o tema não pode ser enfrentado apenas com a consideração de aspectos peculiares de cada indivíduo, mas com foco no mecanismo de funcionamento de todo o sistema de saúde, buscando maximizar a abrangência de suas atividades e o benefício propiciado.

Para que os provimentos jurisdicionais sejam válidos, deve-se fundamentá-los de modo bastante aprofundado, porquanto a própria legitimidade da atuação do Poder Judiciário nesta seara exige uma consistente argumentação por parte do magistrado.

O pleito formulado na peça inicial pode consistir no recebimento de medicamento ou tratamento, a ser necessariamente especificado, conforme decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (AgReg na STA 59/SC, j.25.10.2004, rel. Min. Edson Vidigal, Corte Especial, DJ 28.2.2005, p. 171). A decisão pode ser flexibilizada com vistas a possibilitar adequações ao tratamento, desde que não haja substancial alteração, pois o quadro do paciente pode se alterar naturalmente.

Atestados são inaceitáveis devido a sua precariedade. O autor deve trazer laudo médico constando, com detalhes, qual a doença, o seu enquadramento (Código Internacional de Doenças — CID), o modo de obtenção do diagnóstico, juntando os exames feitos, seu prognóstico, o tratamento ou medicamento recomendado.

O deferimento de pedido depende, em regra, do registro do medicamento ou tratamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), não se admitindo a concessão de remédios experimentais não aprovados, em respeito aos princípios da precaução e da prevenção, que aqui se aplicam. Porém, deve-se ressaltar que não se restringe a concessão somente ao que consta da lista do SUS, pois essa pode estar desatualizada ou pode conter remédio que desencadeie reação alérgica no requerente. O STJ, inclusive, tem precedente admitindo entrega de medicamento não registrado no Brasil (REsp 684.646/RS).

Deve-se frisar, contudo, que há interesse da indústria farmacêutica de inclusão de medicamentos de sua fabricação na lista do SUS. Conforme descrito pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde, “muitos dos lançamentos no mercado são de medicamentos com pequenas alterações ou adições nas moléculas já disponíveis […] com custo/tratamento significativamente superiores ao seu antecessor e desproporcionais em relação à resposta obtida”.

Acrescentou, ainda, que as indústrias investem em estratégias de marketing para apresentar tais medicamentos como a última geração no tratamento de certa enfermidade, persuadindo classe médica e grupos específicos de usuários de suas características inovadoras e “ressaltando-se de forma desproporcional suas vantagens em relação à terapêutica instituída ou a produto já ofertado pelo SUS”[71].

Prova disso é que um monitoramento acerca de ações de saúde no Estado de São Paulo permitiu identificar atuações orquestradas que enxergam na judicialização das ações e serviços de saúde fonte infinita de obtenção de lucros, em detrimento do erário e da saúde da população, o que resultou na operação policial “Garra Rufa” que no início de 2008 identificou três organizações criminosas, integrada por médicos, advogados, organização não-governamental e representantes de laboratórios, que atuavam na região de Marília – SP[72].

De acordo com as investigações, o objetivo do bando era obter lucro fácil mediante ajuizamento de ações contra o poder público, requerendo fármacos que não constam dos programas oficiais de saúde e são fabricados pelos três laboratórios farmacêuticos envolvidos.

Nesse sentido, Peter C. Gotzsche revelou que:

“em 2012, a Dinamarca decidiu pagar para um paciente um medicamento contra o melanoma metastático, que custava cerca de 100 mil dólares e que prolonga a vida em 3,5 meses. Os oncologistas venderam a ideia ao público ao declararem que 10% dos pacientes seriam curados, embora os ensaios não justificassem de maneira alguma essa interpretação generosa. […] O campeão de futilidade que vi até agora é o erlotinibe para tratamento de câncer pancreático. Tanto a FDA como a European Medicines Agency (EMA) aprovaram-no, embora prologue a vida em apenas 10 dias, seja tóxico e custe quase 500 mil dólares por 1 ano de vida ganho (10 dias para cada 1 de 36 pacientes que não ficam nem mesmo satisfeitos. […] Alguma coisa está terrivelmente errada na maneira como priorizamos. A terapia mais intensiva e cara muitas vezes é fornecida nos últimos dias ou semanas de vida. Seria muito melhor se usássemos esse tempo precioso de forma construtiva com nossos entes queridos, em vez de sermos importunados pelos efeitos tóxicos da quimioterapia em uma luta que não podemos vencer.  Ideias simples como essa têm inimigos poderosos em grupos de interesses. […] O que é ainda mais notável é que aquilo que a atitude conservadora das sociedades de câncer não gostam pode, em alguns casos, não apenas melhorar a qualidade de vida dos pacientes, mas também deixá-los viver por mais tempo. Um ensaio randomizado em pacientes com câncer metastático de pulmão de células não pequenas recentemente diagnosticado mostrou que aqueles designados para cuidados paliativos precoces receberam tratamento menos agressivo e viveram três meses mais. Os medicamentos podem matá-lo quando sua vida está quase terminando”[73] 

Em razão disso, deve-se ter a máxima cautela na concessão de medicamentos que não se incluem na lista do SUS, sendo imposto ao administrador público alta dose de discernimento e estudo, para que a atualização da lista produza maior custo-benefício para o cidadão.

Nesse aspecto, também se deve ressaltar a extrema excepcionalidade no fornecimento de remédios de alto custo, pois em muitos casos não há, como se viu acima, vantagens significativas para o paciente, o que apenas seria admissível em casos graves, específicos, reversíveis e em que haja comprovação robusta dos benefícios do medicamento em comparação com outros métodos de tratamento.

Luís Roberto Barroso entende que a alteração das listas pode ser objeto de discussão no âmbito de ações coletivas, o que parece ser adequado e necessário, haja vista a possibilidade de que essas listas encontrem-se desatualizadas, devendo-se coibir abusos para mais ou para menos[74].

Tratamentos médicos no exterior não são admitidos, em vista do art. 1º da Lei 8.080/90, que restringe o âmbito de atuação do SUS ao território nacional, e Portaria 763/1994 do Ministério da Saúde, considerada legítima pelo STJ (REsp 616.460/DF e MS 8.895/DF).

É imprescindível que haja perícia médica judicial para que se avalie a situação de forma pormenorizada, com a fundamental indicação, se for o caso, de possíveis mudanças de hábitos de vida (como alimentação mais saudável, prática de esportes, exercícios de relaxamento e contato com a natureza), as quais podem conduzir o tratamento a um sucesso mais duradouro e eficaz.

É importante que haja implementação de políticas públicas para reduzir a ocorrência de doenças, principalmente as que assolam as populações mais pobres. Nesse diapasão, deve ser dada prioridade aos programas de saneamento básico, de proteção e recuperação ambiental e de criação de infraestrutura mínima em bairros desprovidos de serviços e equipamentos públicos. Todas essas medidas permitirão que haja redução do índice de doenças e, por conseguinte, desafogará o Estado de demandas judiciais.

Por fim, deve-se dar preferência aos hipossuficientes. Embora haja previsão de que o acesso à saúde, no âmbito do SUS, seja universal, não há de se admitir gastos com aqueles que têm condições de pagar os seus tratamentos, sob pena de tornar o Estado um garantidor e financiador universal da saúde de todos, ricos e pobres, o que não está em conformidade com a ideia plasmada no princípio da solidariedade (art. 3º, I, da CF).

A hipossuficiência não deve ter um sentido absoluto, mas sim relativo, ou seja, o custo do medicamento ou tratamento deve ser exacerbado para aquela pessoa, mesmo que em relação a outros critérios ela não seja considerada carente. Por exemplo, uma pessoa que tenha uma renda liquida de dez mil reais, mas tenha que todo mês gastar treze mil reais com um medicamento é uma pessoa hipossuficiente[75].

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Fernando Henrique Barbosa Borges. A judicialização das políticas públicas na área da saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5219, 15 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59667. Acesso em: 21 nov. 2024.

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