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Direito sucessório na união estável e a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002

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18/09/2017 às 10:55
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5. A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Em maio de 2017, transcorridos mais de quatorze anos de vigência do Código Civil Brasileiro de 2002 (Lei nº 10.406/2002) e de intensas discussões acerca da desigualdade dos direitos sucessórios se comparados com os estabelecidos aos cônjuges, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o artigo 1.790 da legislação em comento. Isso ao apreciar os Recursos Extraordinários números 646721/RS (que trata da união de casal homoafetivo) e 878694/MG (que aborda a sucessão em determinada relação heteroafetiva), sob relatoria dos Ministros Marco Aurélio e Roberto Barroso, respectivamente.

Dessa forma, ficou estabelecida a tese de que “no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil de 2002”. Ou seja, a união estável deve receber o mesmo tratamento conferido ao casamento, em caso de sucessão “causa mortis”.

A maior parte da doutrina se mostrou satisfeita diante da declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil. A título de exemplo, colaciona-se o que leciona Elpídio Donizetti:

Ao estudar o Direito de Família, vimos que a equiparação do casamento à união estável como núcleo familiar constitui mandamento constitucional, devendo ser varrida do ordenamento qualquer norma que coloque o companheiro em situação inferior à do cônjuge. Segundo sempre nos pareceu, por interpretação sistemática, não haveria sequer necessidade de disciplina legal da sucessão do companheiro, desde que se interpretasse que este se inclui em toda menção ao direito sucessório do cônjuge, em tudo o que couber. Aliás, sempre defendemos a possibilidade de aplicação dessa interpretação. Vale destacar que, conforme afirmado, felizmente, esse posicionamento foi acolhido pelo STF, que reconheceu a inconstitucionalidade do tratamento desigual dado à sucessão do companheiro pelo Código Civil.24

Em comentários ao informativo 864 do STF, especificamente no que tange aos julgados que declararam a inconstitucionalidade de tratamento diferenciado para companheiros e cônjuges, Márcio André Lopes Cavalcante salienta que o artigo 1.790 do Código Civil de 2002 é inconstitucional porque viola: os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade (na modalidade de proibição à proteção deficiente) e o princípio da vedação ao retrocesso.25

Juntamente com o da igualdade (no caso, entre companheiros e cônjuges), o último princípio é um dos que mais foi violado na constância do CCB/2002, relativamente ao direito sucessório, por toda aquela questão de que, precedentemente à vigência desse, a união estável tinha tanto amparo quanto o casamento. No sentido da relevância da vedação ao retrocesso, Pedro Lenza refere que “uma vez concretizado o direito, ele não poderia ser diminuído ou esvaziado, consagrando aquilo que a doutrina francesa chamou de effet cliquet.26.

Como se extrai da tese firmada em sede de repercussão geral, o Ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, seguiu as linhas de estudo e defesa dos doutrinadores Zeno Veloso e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, que sustentavam serem inconstitucionais o artigo 1.790 e respectivos incisos do CCB/200227. Referida doutrinadora defendeu a inconstitucionalidade em razão do desprezo à equalização do companheiro ao cônjuge, constante do artigo 226, § 3º, da CF/198828. Já aquele, lecionou que:

As famílias são iguais, dotadas da mesma dignidade e respeito. Não há, em nosso país, família de primeira, segunda ou terceira classe. Qualquer discriminação, neste campo, é nitidamente inconstitucional. O art. 1.790 do Código Civil desiguala as famílias. É dispositivo passadista, retrógrado, perverso. Deve ser eliminado o quanto antes. O Código ficaria melhor – e muito melhor – sem essa excrescência.29

Maria Berenice Dias, comentando a decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CCB/2002, discorre o seguinte:

A alegação de que deve ser assegurada a liberdade de as pessoas escolherem a forma de como querem viver não convence. [...] O grande questionamento que surgiu no âmbito doutrinário diz sobre a repercussão da tese firmada. Restringe-se à diferenciação em sede de concorrência sucessória? Contamina as demais distinções estabelecidas quando da morte do cônjuge ou do companheiro? E mais. Conceder tratamento igual ao casamento e à união estável não afronta o princípio da autonomia da vontade? Será que não mais existe casamento, ou foi a união estável que desapareceu? Agora casamento e união estável são a mesma coisa?

Ora, de todo descabido tentar limitar a decisão à questão da concorrência sucessória. O STF limitou-se a apreciar o objeto da ação. Não poderia transbordar dos limites da demanda. No entanto, como o fundamento foi a afronta ao princípio da igualdade, não tem aplicação somente quanto à forma de divisão do patrimônio quando da morte de um dos parceiros. Espraia-se para toda e qualquer diferenciação tanto no âmbito do Direito de Sucessões como no Direito de Família e em todas as distinções estabelecidas na legislação infraconstitucional. Diante do atual conceito de família — “vínculo de afeto que gera responsabilidades” —, os direitos e os deveres são os mesmos. Quer o par resolva casar ou viver em união estável. Quem decide constituir uma família assume os mesmos e iguais encargos. É indiferente se forem ao registro civil ou ao tabelionado, ou simplesmente tenham o propósito de viverem juntos. A pessoa é livre para permanecer sozinha ou ter alguém para chamar de seu. Ao optar por uma vida a dois, as consequências de ordem patrimonial e sucessória precisam ser iguais. Se toda a forma de amor vale a pena, deve gerar as mesmas e iguais consequências. […] Da total invisibilidade, as uniões afetivas passaram a gozar da absoluta igualdade, sem qualquer distinção com a “sagrada instituição do matrimônio”.30

Para o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Rodrigo Cunha Pereira, o assunto da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro de 2002 é tão polêmico que suscitou divergências inclusive dentro da instituição supra e no Supremo Tribunal Federal, que teve três votos divergentes. No seu entendimento, a suprema corte teria acabado com a liberdade de não casar ao igualar união estável a casamento. Leciona que:

O problema dessa igualização in totum, e que vem em nome do discurso da igualdade, é que ela provoca uma interferência excessiva do Estado na vida privada do cidadão. A partir desse julgamento, acabou a liberdade de não casar. Se estou vivendo com alguém, quero fugir das regras rígidas do casamento, busco uma alternativa a ele para constituir minha família e quero escolher que minha herança não vá para minha companheira, não posso mais escolher outro caminho. Com essa decisão, as uniões estáveis tornaram-se um casamento forçado. Esse é o paradoxo desta importante e bem intencionada decisão. Aliás, a regulamentação de união estável é mesmo paradoxal: quanto mais é regulamentada, para aproximá-la do casamento, mais se afasta de sua ideia original, que é exatamente não se submeter a determinadas regras.

A união estável, que era também chamada de união livre, perdeu sua total liberdade com o referido julgamento do STF, ao equiparar todos os direitos entre as duas formas de família. Isso significa o fim da união estável, já que dela decorrem exatamente todos os direitos do casamento. A partir de agora, quando duas pessoas passarem a viver juntas, talvez elas não saibam, mas terão que se submeter às idênticas regras do casamento, exceto em relação às formalidades de sua constituição.31

E segue em defesa de seu posicionamento com mais ênfase:

Apesar da posição oficial do IBDFAM, inclusive participando como amicus curiae, em favor da equiparação, continuo me perguntando: Será mesmo bom estabelecer as regras para as uniões estáveis em similitude com o casamento? Ora, se as pessoas não se casam no civil, é porque não querem fazê-lo, ainda mais com as facilidades do divórcio pós EC 66/2010. Com o estabelecimento da equiparação entre união estável e casamento, qual alternativa restará à pessoa que não quiser se casar e preferir viver em regime de união estável? Certamente nenhuma, pois se estaria em um instituto idêntico ao do casamento, embora com outro nome.

[...] Não podemos confundir, entretanto, a não equiparação das uniões estáveis com o casamento com a não proteção do Estado a este tipo de união, seu reconhecimento enquanto forma de família e como instituto que tem consequências jurídicas. União estável, ou união livre, como o próprio nome indica, é aquela livre de regulamentação, registros e controles oficiais. Equipará-las ao casamento significa interferir na liberdade de escolher a forma de se constituir família. Essa tendência é, na verdade, uma posição moralista e equivocada, pois seria o mesmo que não aceitá-la como uma forma de família diferente do casamento.

[…] O Estado não pode e não deve interferir na liberdade dos sujeitos de viver relações de natureza diferente daquelas por ele instituídas e desejadas. Se em tudo se equipara união estável e casamento, significa que não teremos mais duas formas de constituição de família, mas apenas uma, já que não há mais diferenças.32

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O Código Civil de 2002 desequiparou o que estava equiparado, conforme o Professor Simão. Isso porque, antes da vigência da Lei em tela, a união estável era amparada, no Brasil, pelas Leis números 8.971/94 e 9.278/96, que surgiram para regulamentar o artigo 226, parágrafo 3º da CF/1988. Entretanto, com a vigência do CCB/2002, a igualdade sucessória teria sido perdida, por força do seu respectivo artigo 1.790. O sistema harmônico e socialmente aceito teria passado por um abalo que gerou desconforto ao julgador e à sociedade, e, assim deu ensejo à batalha pela declaração da inconstitucionalidade do último dispositivo citado, o que se concretizou em 10 de maio de 2017.33

Felipe Quintella, a despeito de comemorar a equiparação dos efeitos sucessórios do casamento e da união estável, faz duas ressalvas à tese aprovada, conforme se percebe a seguir:

Primeiramente, nem toda a disciplina da sucessão do cônjuge se encontra no art. 1.829, que apenas estabelece a ordem de vocação hereditária, cuidando, pois, de todos os herdeiros legítimos. É o art. 1.830, por exemplo, que trata do direito sucessório do cônjuge; o art. 1.831, por sua vez, cuida do direito real de habitação; o 1.832, do quinhão mínimo do cônjuge, quando concorre com descendentes seus; já o art. 1.837 estabelece o modo de partilhar a herança entre o cônjuge e os ascendentes; o 1.845, a seu turno, considera o cônjuge herdeiro necessário. Logo, mandar aplicar “o regime estabelecido no artigo 1829 do Código Civil” à sucessão do companheiro poderia dar uma falsa impressão, ao leitor mais literal e menos atento, de que apenas se devem aplicar ao companheiro as posições do cônjuge na ordem de vocação hereditária, pois, destas sim, cuida o art. 1.829. O que, obviamente, não é o caso, devendo ser aplicada ao companheiro toda a disciplina da sucessão do cônjuge.

Em segundo lugar, não podemos perder de vista que a sucessão do cônjuge no Código Civil de 2002 é extremamente controvertida, repleta de falhas legislativas, e sujeita às mais diferentes divergências interpretativas [...]. Destarte, se, por um lado, a partir de agora a sucessão do companheiro não se sujeita mais às falhas legislativas, e, na minha opinião, aos absurdos do art. 1.790 — como, por exemplo, dividir herança, limitada aos aquestos, com tia-avó, e ainda na proporção de dois terços para esta e um terço para aquele (inc. III) —, passa a estar sujeita às extremamente controvertidas regras sobre a sucessão do cônjuge. […]

Depois de muito matutar, cheguei à conclusão de que a distinção entre o casamento e a união estável está apenas na forma; quanto mais reflito, mais fico convencido de que se trata apenas de duas formas distintas para o mesmo negócio jurídico, que é a constituição da família. E, independentemente da forma de sua constituição, a família deve se submeter à mesma disciplina, com a mesma atribuição de efeitos jurídicos.

[...]

Enfim. Sei que minha visão do casamento e da união estável é, no mínimo, peculiar, e que se choca com séculos de história do casamento. Não obstante, pelo menos por enquanto estou convencido de que ela encontra respaldo na ordem constitucional. E o método de interpretação histórica é apenas um dentre os existentes.34

Durante a pesquisa para o trabalho em tela notou-se que, apesar do posicionamento pessoal do presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Rodrigo Cunha Pereira, bem como de outros juristas de renome, tais como Christiano Cassetari, ambos em sentido contrário à declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro, atualmente, a grande maioria dos doutrinadores aprovou tal decisão do Supremo Tribunal Federal, vendo-a como necessária e justa ao tratamento igualitário entre cônjuges e companheiros no que tange à matéria direito sucessório.

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Sobre o autor
Jorge Adrovaldo Maciel

Especialista em Direito Público e em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Educacional Dom Alberto. Bacharel em Direito pelo IESA (Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo/RS). Servidor Público no Estado do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACIEL, Jorge Adrovaldo. Direito sucessório na união estável e a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5192, 18 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60480. Acesso em: 25 nov. 2024.

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