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Poderá o Judiciário modificar norma orçamentária sobre despesas com a saúde?

31/10/2017 às 15:00
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Está em questão uma cláusula pétrea da Constituição, referente ao pacto federativo (CF, art. 60, § 4º, I), cujo pressuposto é a capacidade de cada ente financiar seus encargos.

I - O ORÇAMENTO E O RESPEITO À CLÁUSULA PÉTREA  ENVOLVENDO UM DIREITO FUNDAMENTAL  

O Supremo Tribunal Federal apreciou, no dia 19 de outubro do corrente ano, liminar concedida pelo  ministro Ricardo Lewandowski, que suspendeu a eficácia dos artigos 2º e 3º da Emenda Constitucional (EC) 86/2015, remetendo a matéria ao plenário. Foi julgada inconstitucional a redução do financiamento da saúde, decorrente dos subpisos e da inclusão dos royalties do pré-sal —até então considerados receitas adicionais— no piso orçamentário específico, para driblar as vinculações reforçadas pela EC 29/2000. 

Para alguns, trata-se de medida indevida do Poder Judiciário, substituindo ao Executivo e Legislativo e frustrando os arranjos políticos do governo, promovidos inclusive em nome da contenção da crise fiscal. Outros entendem que tal decisão em sede cautelar, proferida em liminar, está inserida  nos compromissos assumidos pelo Brasil no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que integra nossa legislação desde o Decreto 591/92. Aliás, as Convenções Internacionais de Direitos Humanos têm a natureza de normas materialmente constitucionais e se constituem, formalmente, em emendas constitucionais. 

A cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.595 entende que os direitos fundamentais na Constituição Federal são acompanhados de garantias de efetivação. 

 Está em questão uma cláusula pétrea da Constituição, referente ao pacto federativo (CF, art. 60, § 4º, I), cujo pressuposto é a capacidade de cada ente financiar seus encargos. Nota dos secretários de Saúde de Estados e Municípios (set. 2017) denunciava o "desfinanciamento progressivo do SUS".

A garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais, providos de um componente institucional que os caracteriza.

Temos uma garantia contra o Estado e não através do Estado. Estamos diante de uma garantia especial a determinadas instituições, como dizia Karl Schmitt.

Ora, se assim é a garantia institucional na medida em que assegura a permanência da instituição, embaraçando a eventual supressão ou mutilação, preservando um mínimo de essencialidade, um cerne que não deve ser atingido ou violado, não se pode conceber o perecimento desse ente protegido. J.H. Meirelles Teixeira( Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Forense Universitária, 1ª edição, 1991, pág. 696) prefere chamar de direitos subjetivos, uma vez que eles configuram verdadeiros direitos subjetivos.

Tais direitos se materializam quando a Constituição garante a existência de instituições, de institutos, de princípios jurídicos, a permanência de certas situações de fato.

São características desses princípios, consoante apontados por Karl Schmitt:

a) são, por sua essência, limitados, somente existem dentro do Estado, afetando uma instituição juridicamente reconhecida;

b) a proteção jurídico-constitucional visa justamente esse círculo de relações, ou de fins;

c) existem dentro do Estado, não antes ou acima dele;

d) o seu conteúdo lhe é dado pela Constituição. 


II - A NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO  

Há, pois, duas visões opostas: uma, de cunho eminentemente jurídico que busca a melhor visão de uma Constituição cidadã, que procurou zelar pela melhoria dos serviços de saúde  em respeito a direitos verdadeiramente impositivos; outra, de cunho meramente neoliberal, distante da Constituição, que vê a questão como meramente orçamentária, restrita a números, nada mais. Fala-se no corte de despesas obrigatórias para cumprir a meta do superávit primário para o ano de 2016. Mas há imposições constitucionais.

Discute-se a natureza jurídica do orçamento. 

A primeira corrente nasceu do jurista alemão Hoennel, o qual entende que o orçamento é sempre uma lei, na medida em que emana de um órgão legiferante, isto é, o Poder Legislativo. Por tal razão, afirma Hoennel que tudo aquilo que é revestido sob a forma de lei constitui-se em preceito jurídico, pois a forma de lei traz em si mesma o conteúdo jurídico. Nesse aspecto, qualquer lei traria inserta um comando normativo. Esta tese sofreu críticas porque classificava as normas jurídicas segundo a origem, não levando em conta o conteúdo jurídico.

A segunda corrente veio a partir de Paul Laband como resistência à anterior, entendendo que o aspecto formal não poderia, por si só, fazer do orçamento uma lei, tomando esta palavra em seu sentido material. Nesse sentido, afirma que a utilização da forma legal em nada altera o conteúdo do orçamento, não suprindo a ausência do preceito jurídico. Assim, entende que o orçamento apresenta extrinsecamente a forma de uma lei, mas seu conteúdo é de mero ato administrativo. Logo, o orçamento seria, então, apenas lei em sentido formal, materialmente não constituindo regra de direito.

A terceira corrente é liderada por Léon Duguit, o qual identifica na peça orçamentária uma mescla de lei em sentido formal e material, considerando o orçamento, em relação às despesas e às receitas originárias, um mero ato administrativo e, em relação à receita tributária, lei em sentido material, já que a arrecadação tributária dependeria de autorização orçamentária. Pelo que se observa, Duguit analisou ordenamentos jurídicos em que a autorização para a cobrança de tributos obedece ao princípio da anualidade tributária, que exige a prévia inclusão de autorização no orçamento como condição à cobrança de tributo.

A quarta corrente, por sua vez, originou-se de Gaston Jèze criador do conceito do ato-condição, defendendo a tese que o orçamento não é lei em sentido material em nenhuma de suas partes, embora tenha o aspecto formal e a aparência de lei. Afirma que tanto em relação às despesas quanto no que concerne às receitas, seria o orçamento apenas lei formal, mas com o conteúdo de mero ato-condição, sendo a lei orçamentária, em qualquer caso, o implemento de uma condição para a cobrança e para o gasto.

Como modelo autorizativo, tem-se o orçamento como lei formal, daí as ideias trazidas por Ricardo Lobo Torres(Curso de direito financeiro e tributário, 2011

Hoje o modelo orçamentário é impositivo, mas não perde a natureza de lei formal. 

Mas o orçamento é uma peça que é formalmente instrumentalizada por meio de lei, mas, que, materialmente, se traduz em ato politico-administrativo. Tem-se a posição do Supremo Tribunal Federal já delineada:

“EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PROVISÓRIA SOBRE MOVIMENTAÇÃO FINANCEIRA - C.P.M.F. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE "DA UTILIZAÇÃO DE RECURSOS DA C.P.M.F." COMO PREVISTA NA LEI Nº 9.438/97. LEI ORÇAMENTÁRIA: ATO POLÍTICO-ADMINISTRATIVO - E NÃO NORMATIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: ART. 102, I, "A", DA C.F. 1. Não há, na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, a impugnação de um ato normativo. Não se pretende a suspensão cautelar nem a declaração final de inconstitucionalidade de uma norma, e sim de uma destinação de recursos, prevista em lei formal, mas de natureza e efeitos político-administrativos concretos, hipótese em que, na conformidade dos precedentes da Corte, descabe o controle concentrado de constitucionalidade como previsto no art. 102, I, "a", da Constituição Federal, pois ali se exige que se trate de ato normativo. Precedentes (...)”. (ADI 1640 / DF, Relator(a):  Min. Sydney Sanches, Julgamento:  12/02/1998).

Como lei, o orçamento se submete ao controle abstrato de constitucionalidade(ADI 4048 MC/DF, Relator Ministro Gilmar Mendes, 14 de maio de 2008).


III - PODE O JUDICIÁRIO IMPLEMENTAR POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE?

Discute-se se o Judiciário tem poderes para fazer implementar politicas públicas no sentido de que há omissão por parte dos outros poderes.

Em 1993, a União respondia por 72% dos gastos públicos em saúde, o que foi reduzido, em 2015, a apenas 43%, obrigando os demais entes a cobrir a diferença, a despeito de ser a União quem mais arrecada. Além disso, com a edição da EC 95/2016 (teto de gastos), estima-se uma perda para a saúde, em termos globais anuais, de R$ 2,8 bilhões em 2017, que se elevará a R$ 58,8 bilhões em 2036. 

Em decisão que honra o Poder Judiciário, o Supremo Tribunal federal decidiu, na sessão do dia 13 de agosto de 2015, que o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública realize obras ou reformas emergenciais em presídios para garantir os direitos fundamentais dos presos, como sua integridade física ou moral.

A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário 592.581, com repercussão geral que foi interposto no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Na origem, o Ministério Público gaúcho ajuizou ação civil pública contra o Estado do Rio Grande do Sul para que promovesse uma reforma geral no Albergue Estadual de Uruguaiana. O juízo de primeira instância determinou a reforma do estabelecimento, no prazo de seis meses. O estado recorreu ao TJ-RS, que reformou a sentença por considerar que não cabe ao Judiciário determinar que o Poder Executivo realize obras em estabelecimento prisional, “sob pena de ingerência indevida em seara reservada à Administração”.

O MPF recorreu ao STF, alegando que os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata, e que questões de ordem orçamentária não podem impedir a implementação de políticas públicas que visem garanti-los. De acordo com o MP, a proteção e a promoção da dignidade do ser humano norteiam todo ordenamento constitucional, e o estado tem obrigação de conferir eficácia e efetividade ao artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, para dar condições minimamente dignas a quem se encontra privado de liberdade.

Realmente o Poder Judiciário não pode se omitir quando os órgãos competentes comprometerem a eficácia dos direitos fundamentais individuais e coletivos.

Há uma situação de calamidade que faz com que as penitenciárias brasileiras se transformassem em “verdadeiros depósitos de pessoas”.

Não há que falar em princípio da separação de poderes uma vez que deve ser levado em conta o principio da inafastabilidade da jurisdição, a teor do que se expressa no artigo 5, XXXV, da Constituição.

De há muito, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo que, reconhecendo um direito subjetivo á saúde, deve-se impor ao Estado o dever de prestar tratamento médico adequado. Cito decisões no Recurso Extraordinário 195.192 – 3, Relator Ministro Marco Aurélio, DJU de 31 de março de 2000, pág. 266; no AgRg 238.328-0, Relator Ministro Marco Aurélio, DJU de 18 de fevereiro de 2000.

O Superior Tribunal de Justiça, em diversos julgamentos, como no Recurso Especial 127.604 – RS, Relator Ministro Garcia Vieira, DJU de 16 de março de 1998, pág. 43, dentre outras decisões, impôs ao Estado o dever de prestar tratamento médico adequado, fornecer remédios e aparelhos médicos a quem deles precise.

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No mesmo sentido, recentemente, tem-se decisão no RMS 24197/PR, Relator Ministro Luiz Fux, DJe de 24 de agosto de 2010, onde ainda foi abordada a questão da responsabilidade solidária dos entes públicos.

Da mesma forma, no julgamento do AgRg no Recurso Especial 1.028.835, Relator Ministro Luiz Fux, DJe de 15 de dezembro de 2008, foi realçado que o direito à saúde é assegurado a todos e é dever do Estado, e que, ainda, a União Federal, o Estado-Membro, o Distrito Federal e o Município são partes legítimas para figurar no polo passivo nas demandas cuja pretensão é o fornecimento de medicamentos imprescindíveis à saúde de pessoa carente, podendo a ação ser proposta contra qualquer um deles. Nesse sentido: Recurso Especial 878.080/SC, DJ de 20 de novembro de 2006, pág. 296 e Recurso Especial 656.979/RS, DJ de 7 de março de 2005.

Bem situa Carvalho Filho(Ação civil pública: comentários por artigos. Lei 7.347, de 24.07.1985, 2ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Iuris, pág. 71 e 72)quando disse:

¨Apesar da inegável dificuldade na demarcação, temos entendido que o pedido, principalmente no caso de se tratar de cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, é juridicamente possível quando estiver preordenado a determinada situação concreta, comissiva ou omissiva, causada pelo Estado, da qual se origine a violação dos interesses coletivos ou difusos. Em contraposição, não se pode considerar possível juridicamente o objeto da ação se o autor postula que a decisão judicial, acolhendo sua pretensão, condene o Poder Público ao cumprimento, de forma genérica, abstrata, inespecífica, e indiscriminada, de obrigação de fazer ou de não fazer.¨

Para Luiza Cristina Frischeinsen (A responsabilidade do administrador e do Ministério Púbico, São Paulo, Max Limonad, pág. 146 a 150) as normas da ordem social constitucional delimitam políticas públicas, vinculantes para o administrador, que visam o efetivo exercício dos direitos sociais e a realização dos objetivos daquela.

Realmente não cabe ao Judiciário formular políticas públicas. Cabe, sim, o dever de  implementar políticas públicas, pois o administrador não pode se omitir em prejuízo da sociedade, descumprindo a Constituição e leis na matéria.

Citam-se os seguintes casos, onde seria permitido ao Judiciário apresentar prestação jurisdicional em ação coletiva: fornecimento de ensino fundamental obrigatório; transporte escolar; aplicação do mínimo de 25% das receitas dos impostos municipais em educação.

É certo que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 169.876/SP, Relator Ministro José Delgado, DJU de 21 de setembro de 1998, pág. 70, já decidiu que as atividades de realização dos fatos concretos pela Administração depende de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades estabelecido pelos governantes.

Assim, a realização de políticas públicas ficaria dependente de recursos orçamentários, matéria que não caberia do Judiciário entrar. É a reserva do possível.

Ouso discordar, apontando as lições de Andreas Krell(Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha, Porto Alegre, Fabris, 2002, pag. 22 e 23), quando disse que a Constituição confere ao legislador uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado e que a eficácia dos direitos fundamentais sociais depende dos recursos públicos disponíveis.  No entanto, a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como consequência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos, de modo a permitir a intervenção do Judiciário em caso dessas omissões. 

O certo é que não há discricionariedade na adoção de políticas públicas, pois a Constituição já determina sua realização.

Há casos em que há normas impositivas de ação governamental que são acompanhados de parâmetros de concretização e sanções por sua inobservância.

Mais uma vez, trago exemplos: quando são previstos limites mínimos de destinação de recursos públicos para manutenção e desenvolvimento do ensino(artigo 212 da Constituição); o não oferecimento ou a oferta irregular de ensino obrigatório. Por certo, a não observância desses parâmetros deve e pode ser avaliada pelo Judiciário.

O princípio da separação de poderes, como bem explicita Eduardo Talamini (Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer, São Paulo, editora Revista dos Tribunais, 2001, pág. 145) não pode ser usado para descumprimento de deveres públicos em caso de grave epidemia, quando se exige da Administração uma obrigação de fazer.

Aqui,  aplica-se o princípio da proporcionalidade.

Disse bem Maria Paula Dallari Bucci (O STF pode controlar o orçamento público, in Folha de São Paulo, artigo publicado no dia 19 de outubro de 2017) que "a  escolha política fundamental contida na Constituição depende da construção de políticas públicas "de Estado" — tecido jurídico, político, social e econômico urdido a muitas mãos, ao longo de sucessivas governos — e da proteção do STF."

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Poderá o Judiciário modificar norma orçamentária sobre despesas com a saúde?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5235, 31 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61276. Acesso em: 2 nov. 2024.

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