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O princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento para o livre exercício da personalidade humana e a autonomia da vontade do paciente

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Os direitos fundamentais devem ser entendidos com base no princípio da dignidade da pessoa humana, princípio esse que se irradia no âmbito da autonomia da vontade do paciente em tratamento médico.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, marcada pelas atrocidades cometidas, notou-se uma tendência mundial à reconstrução do respeito à dignidade humana, sendo essa a grande marca de uma série de Constituições, documentos e decisões judiciais a partir de então.

Sem dúvida, em consequência disso, a Constituição Brasileira de 1988 foi marcada, também, por uma forte carga axiológica, isto é, valorativa e principiológica. 

Nesse sentido, Luís Roberto Barroso, em seu Parecer Jurídico “Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais” de 2010, página 8, salienta:

 “Na Constituição brasileira, a dignidade da pessoa humana vem inscrita como um dos fundamentos da República (art. 1º, III)¹. Funciona, assim, como fator de legitimação das ações estatais e vetor de interpretação da legislação em geral. Tais considerações não minimizam a circunstância de que se trata de uma ideia polissêmica, que funciona, de certa maneira, como um espelho: cada um nela projeta a sua própria imagem de dignidade. E, muito embora não seja possível nem desejável reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado, não se pode escapar da necessidade de lhe atribuir sentidos mínimos. Onde não há consenso, impõem-se escolhas justificadas e convenções terminológicas.”.

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (MORAES, Alexandre de., 2011, página 61).

Desse modo, por estar relacionada com a própria existência humana e exigir que cada ser humano seja visto como um fim em si mesmo, a dignidade é a origem de todos os direitos fundamentais, conforme conclui  Álvaro Villaça de Azevedo (Parecer Jurídico “Autonomia do Paciente e Direito de Escolha de Tratamento Médico sem transfusão de Sangue mediante os atuais preceitos civis e constitucionais brasileiros”, 2010, pág.13).

Neste cenário, tem-se que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana orienta todos os Direitos Fundamentais da Constituição Brasileira, pois este se consagra como fonte primária por excelência do Direito. É como assevera a citação de Celso Antônio Bandeira de Mello (1996, p.545) por Piovesan (2012 p.424):

Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que presidem a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.

Partilhando também da ideia de dignidade como fundamento, Álvaro Villaça Azevedo expõe:

Esta concepção demonstra que a autonomia e a liberdade integram a dignidade. Assim, cada direito fundamental contém uma expressão da dignidade, isto é, de autonomia e de liberdade. O direito à vida garantido constitucionalmente no art. 5º, caput, CF/88, por conseguinte, pressupõe não apenas o direito de existir biologicamente. Se o direito à vida é um direito fundamental alicerçado na dignidade humana, a vida assegurada pela Constituição é a vida com autonomia e liberdade. (2010, p. 13)

Por fim, conforme salienta Álvaro Villaça de Azevedo, a dignidade da pessoa humana insere-se no texto constitucional como uma cláusula geral a que se subordinam todos os outros direitos da personalidade, quer sejam típicos como os previstos expressamente no texto da Constituição, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (artigo 5º, caput), à liberdade de consciência e de crença (artigo 5º, inciso VI), entre outros; quer sejam atípicos não previstos no ordenamento jurídico (2010, página 17).

Sendo a dignidade da pessoa humana considerada um preceito constitucional, seu valor torna-se explicitamente, um princípio, uma norma de dever ser, com caráter jurídico e vinculante, cuja carga axiológica tem caráter obrigatório e, por estar no topo do ordenamento jurídico como princípio fundamental, vincula todas as esferas jurídicas, informando, em especial, os direitos de personalidade, salientando a necessidade de se fazer uma interpretação civil-constitucional das normas presentes no Código. (Roxana Cardoso Brasileiro Borges, Dos Direitos da Personalidade, in Teoria Geral do Direito Civil, Ed. Atlas, São Paulo, 2008, cap. 9, p.248, item 4).

Ao tratar de direitos da personalidade, Rubens Limongi França, em sua obra Manual de Direito Civil, 1975, 3ª edição, 1º volume, p.403, define: “Os direitos da personalidade são as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos”.

Desse modo, considerando o texto de nossa Constituição, pode-se afirmar que os direitos da personalidade encontram-se reconhecidos nela e regulados nos artigos 11 a 21 do Código Civil de 2002, embora não se trate de um rol taxativo, mas amplo. É o que aduz o artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Nesse sentido, os direitos da personalidade são garantidos pela dignidade humana e consagrados pela tutela e promoção da pessoa humana. Isso porque, como fonte primária por excelência do Direito, preceito constitucional e princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana está presente na Constituição como uma cláusula geral, subordinando todos os direitos da personalidade, sendo fundamental o respeito à dignidade para a garantia do livre exercício da personalidade humana.

Sem dúvida, o respeito ao livre desenvolvimento da personalidade humana implica de forma direta no desenvolvimento das faculdades físicas, psicológicas e morais do indivíduo e, assim, violar a integridade mental ou desrespeitar as decisões que envolvem a dignidade dos indivíduos nos remete, analogicamente, à escravidão. Os escravos, por não serem considerados pessoas, tinham seus sentimentos e valores desprezados e eram vistos como desprovidos de qualquer tipo de dignidade.

Logo, numa sociedade em que não se respeita as decisões pessoais dos indivíduos e a sua liberdade de decidir sobre sua própria vida, carece de dignidade, semelhante às sociedades ultrapassadas em que prevalecia o escravagismo.

Assim, os Direitos Fundamentais elencados na CF/88 devem ser entendidos tendo como base o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois o mesmo contribui para a efetividade da Constituição. Dessa forma, ao se falar em direito à vida, entende-se vida digna; ao se mencionar direito à liberdade de crença, fala-se em exercício digno desse direito. É como se estes só pudessem ser exercidos na sua completude, entendidos e construídos sob a base do referido princípio.

Portanto, a CF/88, ao assegurar o direito à vida, o faz à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, considerando a vida em todos os seus desdobramentos. Respeitar o indivíduo vivo não seria apenas assegurar-lhe meios de proteger apenas a sua estrutura física, pois a vida é considerada em seus aspectos biológicos, psíquicos e sociais, advindo daí o conceito de vida digna: aquela em que o indivíduo é assegurado de que suas convicções serão respeitadas.

Quanto ao direito à crença exercido com dignidade, permite-se ao indivíduo viver em consonância com suas convicções religiosas, exercendo autonomia e liberdade, aspectos intrínsecos ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Até meados do século XX, as relações entre médicos e pacientes eram fundadas no princípio da beneficência, o qual determinava que o médico assumisse a postura de “protetor do paciente”, sendo plenamente justificável qualquer medida tomada por tal profissional da saúde destinada a restaurar sua saúde ou prolongar a vida do enfermo. 

Assim, o paternalismo médico legitimava a intervenção do profissional segundo seus próprios critérios e escolhas, ainda que sem a aquiescência do paciente ou de encontro com sua vontade expressa. 

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, inicia-se a superação de tal paradigma. O Código de Nuremberg, de 1947, o qual objetivava regular as pesquisas com seres humanos, tornou-se o marco de tal superação. Isso porque, tendo como base o princípio da autodeterminação da pessoa, o Código firmou que o consentimento informado era requisito imprescindível para que as experiências médicas fossem consideradas eticamente válidas. 

A partir de então, houve grande mudança nos paradigmas da ética médica: a autonomia do paciente como fundamento da bioética substituiu o paternalismo de outrora. Com isso, o paciente passa a ser reconhecido como sujeito de direitos, deixando de ser um simples objeto de experiências médicas, podendo realizar suas escolhas existenciais de forma autônoma. 

De acordo com Luís Roberto Barroso, dentre os muitos aspectos envolvidos na noção de autonomia, dois deles, mutuamente implicados, são especialmente interessantes. O primeiro é a capacidade de autodeterminação, que constitui o próprio núcleo da autonomia. O segundo é a exigência de que haja condições adequadas para o exercício da autodeterminação, de modo a evitar que ela se converta em mero formalismo ou em justificativa para a violação de direitos fundamentais do próprio indivíduo. (Luís Roberto Barroso, página 10)

Assim, a autonomia da vontade possui uma estreita relação com o direito que o indivíduo possui de realizar suas próprias escolhas existenciais e morais, traçando os rumos de sua vida, possibilitando o livre desenvolvimento de sua personalidade e assumindo os riscos das decisões tomadas. Para isso, é preciso que sejam asseguradas as mínimas condições para que a possibilidade de se autodeterminar, por fazer escolhas livres, seja real.

Conforme demonstrado por Álvaro Villaça de Azevedo, a autonomia e liberdade integram a dignidade. Assim, cada direito fundamental contém uma expressão de dignidade, isto é, de autonomia e de liberdade. (2010, página 13)

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O Princípio da Autonomia da Vontade é decorrente do da Dignidade da Pessoa Humana e especifica uma das maneiras de seu exercício ou exteriorização. 

Pode-se perceber claramente a presença explícita do princípio da autonomia da vontade a partir da análise do artigo 15 do Código Civil de 2002: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”. 

Não há dúvidas de que tal dispositivo é uma manifestação da dignidade da pessoa humana, porquanto prima pela autonomia da vontade. O texto é claro em respeitar a oposição do paciente frente a um tratamento médico, principalmente se este apresentar risco à sua saúde ou à sua vida. (AZEVEDO, 2010, pág.22)

Segundo o princípio da autonomia da vontade, uma pessoa tem o direito de determinar-se quanto ao seu corpo, preservando-lhe a integridade física e mental, quaisquer que sejam suas motivações. Ademais, ao exercitar o direito à liberdade de crença, o indivíduo também invoca o princípio da autonomia, pois este também lhe proporciona dignidade ao possibilitar usar sua vida e seus recursos para exercitar suas crenças. 

O artigo 15 do Código Civil de 2002 contém uma regra que, conforme preceitua Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra “Direito Civil Brasileiro”, Parte Geral, Ed. Saraiva, São Paulo, 2003, vol. I, pág. 165, obriga os médicos, nos casos mais graves, a não atuarem sem prévia autorização do paciente, que tem a prerrogativa de recusar a sua submissão a um tratamento perigoso. A sua finalidade é proteger a inviolabilidade do corpo humano. Vale ressaltar, in casu, a necessidade e a importância do fornecimento de informação detalhada ao paciente sobre seu estado de saúde e o tratamento a ser observado para que a autorização possa ser concedida com pleno conhecimento dos riscos existentes.

Desse modo, a autonomia do paciente possui uma relação íntima com a obrigação que o médico tem de fornecer informações, as quais devem ser prestadas de forma clara. Isso porque, caso o paciente não tenha acesso a todas as informações necessárias, sua autonomia será restrita e, em consequência, o seu poder de escolha será limitado. Portanto, além de todos os esclarecimentos acerca do procedimento proposto pelo médico, o paciente precisar estar ciente, inclusive, da existência ou não de tratamentos alternativos.

Importante ressaltar que o referido artigo 15, CC/2002, não trouxe nenhuma exceção ao consentimento do paciente. Assim, sua vontade não pode ser desconsiderada pelo médico quando o paciente estiver em estado de inconsciência ou nas hipóteses de iminente perigo de vida. Em outras palavras, conforme sugere Álvaro Villaça de Azevedo, a enfermidade do paciente, por mais grave que seja, não lhe retira o status de ser humano e, consequentemente, sua autonomia para agir com dignidade. (2010, pág.24)

O que se nota é que a autonomia da vontade do paciente vem sendo amplamente enaltecida na legislação infraconstitucional de nosso país, como é o caso, por exemplo, do Estatuto do Idoso (Lei 10741/03).

O artigo 17 da referida lei aduz:

Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.

        Parágrafo único. Não estando o idoso em condições de proceder à opção, esta será feita:

        I – pelo curador, quando o idoso for interditado;

        II – pelos familiares, quando o idoso não tiver curador ou este não puder ser contactado em tempo hábil;

        III – pelo médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para consulta a curador ou familiar;

        IV – pelo próprio médico, quando não houver curador ou familiar conhecido, caso em que deverá comunicar o fato ao Ministério Público.

 Assim, depois de amplamente informado e consciente dos tratamentos disponíveis, o paciente idoso, com domínio de suas faculdades mentais, possui o direito de optar pelo tratamento que reputar mais favorável, independentemente do estado clínico que se encontre, haja vista que o artigo não fez exceção alguma nesse sentido.

Por outro lado, caso ele não tenha condições de fazer sua escolha, a regra do parágrafo único desse artigo é a representação. O paciente será representado por seu curador ou familiares, no caso dos incisos I e II.

O médico só realizará a escolha pelo paciente quando, não havendo as duas representações anteriores, o idoso se encontrar em iminente risco de vida e não houver condições de o profissional de saúde manter contato com o curador ou familiar.

Desse modo, ainda que em iminente perigo de vida, se o paciente estiver assistido por familiares ou estiver cercado de documentos de identificação e de mensagens escritas previamente, informando os médicos do tratamento escolhido, sua escolha deve ser respeitada em nome da autonomia da vontade do paciente.

Diante do exposto, entende-se que a autonomia do paciente é princípio que emana do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, no qual se abrigam e encontram sentido os demais direitos e princípios relacionados à personalidade humana.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Parecer Jurídico Autonomia do paciente e Direito de Escolha de Tratamento médico sem transfusão de sangue mediante o novo código de ética médica- resolução CFM 1931/09. São Paulo 8 de Fevereiro de 2010.

BARROSO, Luís Roberto. Parecer Jurídico Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunha de Jeová. Dignidade Humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Rio de Janeiro, 5 de abril de 2010.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo:Malheiros, 2007.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

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Sobre a autora
Niderlee e Silva Souza de Moura

Especialista em Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Niderlee Silva Souza. O princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento para o livre exercício da personalidade humana e a autonomia da vontade do paciente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5893, 20 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61417. Acesso em: 21 nov. 2024.

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