4 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
4 1 Pessoa jurídica
Apesar do conceito de pessoa jurídica parecer ser bastante sedimentado, é bom frisarmos para que não haja distinção com a pessoa física. Fábio Ulhoa Coelho (2008, p. 9), alega que “pessoa jurídica não preexiste ao direito; é apenas uma ficção, conhecida dos advogados, juízes e demais membros da comunidade jurídica, que auxilia a composição de interesses ou a solução de conflitos”.
Portanto, pessoa jurídica é aquela que é substanciada por uma entidade coletiva ou artificialmente criada e legalmente organizada. Normalmente, a pessoa jurídica se caracteriza por seus fins sociais, econômicos, políticos, dentre outros. Destaca-se a existência de autonomia entre a pessoa jurídica e os seus eventuais membros, que compõem essa pessoa jurídica.
Pode se caracterizar em relação aos seus direitos e obrigações, de modo ativo ou passivo, ao modo que se classificam através de sua natureza, contrato social, constituição.
Podemos diferenciar as pessoas jurídicas de direito público das pessoas jurídicas de direito privado, tal qual explicita o art. 40 do Código Civil.
As de direito público são caracterizadas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 41 do Código Civil).
As de direito privado são:
Art. 44 do Código Civil de 2002: São pessoas jurídicas de Direito privado: I - associações, II – as sociedades; III – as fundações; IV – as organizações religiosas; V – os partidos políticos ; VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada.
Sílvio de Salvo Venosa (2008, p.224) nos alerta a questão sobre a nomenclatura sobre pessoa jurídica:
Não é unânime na doutrina e nas várias legislações a denominação pessoa jurídica. Essa é a denominação de nosso Código e também do Código alemão. Na França, usa-se da expressão “pessoas morais”. Na verdade, a denominação por nós utilizada tem a vantagem de realçar o aspecto jurídico, o que nos interessa.
Por sua vez, César Fiuza (2014, p. 176) define pessoa jurídica em um breve conceito que “são entidades criadas para a realização de um fim e reconhecidas pela ordem jurídica como pessoas, sujeitos de direitos e deveres. São conhecidas como pessoas morais, no Direito Francês, e como pessoas coletivas, no Direito Português”.
Caio Mário da Silva Pereira (2001, p. 247), em seu entendimento, engloba seu conceito em um caráter de universalismo dizendo que “toda pessoa é dotada de capacidade jurídica, que a habilita a adquirir direitos. Todo ser humano é sujeito da relação jurídica. Mas não é somente a ele que o ordenamento legal reconhece esta faculdade”. Reconhece-se igual direito às pessoas jurídicas.
Maria Helena Diniz (2010, p. 116) entende como “sendo a pessoa natural (ser humano) ou jurídica (agrupamentos humanos) sujeito das relações jurídicas e a personalidade a possibilidade de ser sujeito, ou seja, uma aptidão a ele reconhecida, toda pessoa é dotada de personalidade”.
4 2 Personalidade Jurídica
Ao adquirir personalidade jurídica, passa então a própria sociedade ser responsável por seus direitos e obrigações, de modo a gerar consequências legais esse entendimento.
Fábio Ulhoa (2008, p. 14), relaciona essas consequências da personalização da sociedade empresária: a titularidade obrigacional, a titularidade processual e a responsabilidade patrimonial.
A titularidade obrigacional é em relação à pessoa jurídica e terceiros. É a pessoa jurídica que realiza contratos e não os sócios.
Já na segunda, a titularidade processual, quem se apresenta em juízo para oferecer ou responder determinado processo em que se é parte, é a pessoa jurídica e não os sócios ou administradores.
A terceira conseqüência da personalização é a responsabilidade patrimonial. Os bens patrimoniais da pessoa física e da pessoa jurídica que não se confundem. Os bens de uma não são os bens de outra e vice versa.
Os artigos 967 e 45 do Código Civil de 2002 nos direcionam sobre o procedimento para investidura da personalidade jurídica. Dispõe o art. 967 que é obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade.
O art. 45 dispõe:
Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com inscrição do ato constitutivo no respectivo registo, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
Em outro artigo que estabelece, também, informação sobre a inscrição é o art. 985 do Código Civil “a sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, de seus atos constitutivos”.
Se por acaso, determinados sócios que tenham intenção de iniciar uma empresa societária, e esta não passar a observar estes requisitos, será, portanto, uma sociedade irregular, também conhecida como Sociedade em Comum. É o que nos apresenta os arts. 986 a 990 do Código Civil de 2002:
Art. 986. Enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatíveis, as normas da sociedade simples.
Art. 987. Os sócios, nas relações entre si ou com terceiros, somente por escrito podem provar a existência da sociedade, mas os terceiros podem prova-la de qualquer modo.
Art. 988. Os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial do qual os sócios são titulares em comum.
Art. 989. Os bens sociais respondem pelos atos de gestão praticados por qualquer dos sócios, salvo pacto expresso limitativo de poderes, que somente terá eficácia contra o terceiro que o conheça ou deva conhecer.
Art. 990. Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluindo do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que contratou pela sociedade.
Quando a sociedade arquiva seu ato constitutivo, quando ela registra seu contrato social ou seu próprio estatuto no órgão competente, ela adquire personalidade jurídica. Passa a ser pessoa com existência própria. Passa a ter personalidade própria sendo que esta é distinta da personalidade de seus sócios, além de ter direitos e obrigações próprias.
Devidamente registrada tem autonomia patrimonial.
4 3 Aspectos Históricos da Desconsideração da Personalidade Jurídica
Luiz Antônio de Souza (2013, p. 67), em um breve e direto conceito, nos retrata o início e a precisão da necessidade da desconsideração da personalidade jurídica:
A razão do surgimento e da existência da pessoa jurídica residiu na necessidade da separação entre o ente moral e as pessoas que a constituem, bem como do patrimônio de ambas. E a finalidade que se buscava era estimular o desenvolvimento da atividade econômica, pela limitação dos riscos no empreender, o que se logrou atingir. Todavia, por força dos inúmeros abusos que ocorreram, em razão de abuso, fraude e desvio no exercício da atividade da pessoa moral, houve a necessidade de se desconsiderar a personalidade jurídica da pessoa jurídica para se buscar a pessoa dos sócios e seus patrimônios.
Aos registros que se preze, a partir de meados do século XIX, teve início as gritantes preocupações acerca da má gestão, má funcionamento, má utilização da pessoa jurídica. Fraudes eram praticadas por meio da personalidade jurídica. Assim, passa a se buscar meios lícitos para coibir esses atos, com até mesmo mediante represálias.
A desconsideração teve origem iniciada nos países da Common Law. Há registros de que o primeiro caso em que se foi aplicado a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, foi na Inglaterra, com o Caso Salomon v. Salomon CO. Ltda., em meados de 1897. Diante de vários fatos que se pode considerar como a origem da desconsideração, registra que foi desde a jurisprudência anglo-saxônica que se desenvolveu determinada teoria, que se ressalte a jurisprudência norte americana.
Diante de varias doutrinas, há que se citar a obra Disregard of corporate fiction and allied corporation problems de Wormser, que originariamente foi publicada em 1927. Destaca-se também a obra Aparencia y realidad em las sociedades mercantiles de Rolf Serick, que foi publicada no idioma alemão nos anos de 1953. Por fim, a obra ll superamento della personalitá giuridica delle societá di capitalli nella “common law” e nella “civil law” de Piero Verrucolo, publicada em 1964 também contribuiu para a criação da teoria. Inclusive nesta ultima obra citada, Sebastião José Roque (1997, p.323) acredita que o direito brasileiro, de tal modo foi influenciado por ela. Para ele, “essa obra foi considerada a sistematização da doutrina da superação da personalidade jurídica, dando esse nome a ela, nome também adotado no direito brasileiro, apenas mudando o termo superação por desconsideração”.
Um pouco mais tardia em relação às outras obras apresentadas, aqui no Brasil, esse assunto chegou em meados de 1969, como o tíitulo de Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica, em forma de um artigo, pelo grande autor, Rubens Requião. Foi esse autor que sedimentou no Brasil a teoria que já era aplicada na Inglaterra e Estados Unidos.
Posteriormente, tivemos a inclusão da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em nossa legislação. Primeiramente, o CDC (Lei 8078/90), art. 28: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social (...)”.
Depois, o Código Civil de 2002, art. 50 também tratou do tema, como veremos mais a frente.
4 4 O Abuso do Uso da Personalidade Jurídica
Ainda que tardiamente, surge em nosso ordenamento a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Teoria que é também conhecida como teoria da superação ou teoria da penetração. Tomando por base a regra da autonomia patrimonial, combinada com a limitação da responsabilidade, deixa de certa forma uma lacuna, uma brecha, a prática de atos fraudulentos. Imaginamos e tomamos como exemplo que certo administrador de uma determinada sociedade, agindo de má-fé, pare para pensar que se na sua sociedade o total subscrito foi totalmente integralizado, suponhamos que o patrimônio dessa pessoa jurídica gira em torno de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).
Portanto, desse valor, o administrador aplica boa parte do patrimônio da pessoa jurídica ao patrimônio pessoal dos sócios, sendo em seu próprio patrimônio e nos dos demais sócios. Ele está pensando em formalizar um negócio jurídico com um determinado fornecedor, que, diga-se de passagem, é um fornecedor antigo que logo ele, por ser antigo para a sociedade, acredita no pagamento que ocorrerá perfeitamente. Acredita na solvência da sociedade. Formaliza-se então o acordo jurídico empresarial. E é feito o negócio jurídico no montante de R$ 2.000.000,00 (dois milhão de reais).
O administrador, agindo de má-fé, resolve não realizar o pagamento conforme combinado, pois os recursos da sociedade foram indevidamente direcionados para o patrimônio pessoal dos sócios, em prejuízo desse credor. Quando este fornecedor for executar o valor de seu crédito, via de regra ele, vai acionar apenas o patrimônio da pessoa jurídica, e irá conseguir obter até R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) no máximo. Consequentemente, o administrador juntamente com os sócios sai totalmente no lucro. Tomemos como alerta que isso pode acontecer sem dúvidas.
Tomando como outro exemplo, Fábio Ulhoa Coelho (2008, p. 35) cria uma hipótese, inclusive com nome ficto, Antônio como sendo uma pessoa física, que através de seu nome, inicia atividades empresaria:
Como se trata de sociedade limitada, esses credores também não poderão, em principio, responsabilizar o sócio pela obrigação social. Sofre, assim, prejuízo, enquanto Antonio, a despeito da falência da sociedade empresaria que controla, não perde nada, continuando com a mesma condição patrimonial que possuía antes do inicio da exploração da indústria. Verifica-se, à margem, que a situação seria muito diferente se o estabelecimento empresarial houvesse sido transferido à sociedade a título de integralização do capital social, e não por venda a prazo com reserva de domínio.
Então nesse, e em outros casos, conforme citado como um exemplo, é que não podemos permitir o abuso da personalidade jurídica seja cometido. Na verdade o direito não pode tolerar que a autonomia patrimonial seja utilizada com objetivo de praticar esses atos fraudulentos. O remédio jurídico para esse tipo de procedimento, é um remédio que surge inicialmente na doutrina, conforme vimos anteriormente, qual seja a desconsideração da personalidade jurídica para atingir o sócio por dívidas da sociedade.
4 5 Fundamentos Legais
O objetivo do direito, em linhas gerais, é permitir a convivência humana, mediante disciplina das atitudes no âmbito social. Nesse sentido, esclarece José Jairo Gomes (2006, p. 1): o “direito manifesta-se em forma de racionalidade objetiva, a qual se reflete em normas abstratas de caráter geral que organizam e estruturam as instituições político-sociais, disciplinando o comportamento e, portanto, a convivência humana”.
Com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é diferente. A aplicação dessa teoria não ocorrerá de forma aleatória, baseada apenas na mera analogia. É preciso observar os institutos legais que servem de amparo para que se possa concretizar a desconsideração. A desconsideração irá ocorrer toda vez que a ilicitude vier à tona. Quando a pessoa jurídica, melhor dizendo, a personalidade jurídica, for utilizada para outros fins que não seja da sua própria e especifica competência, ocorrendo lesão a terceiros credores, deve ser aplicada a desconsideração. Fazendo com que assim, o sócio, administrador, ou diretor, responda, pela dívida, que via de regra pertence à pessoa jurídica.
A respeito do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) anteriormente citado, o professor Fran Martins (2011, p. 165), de acordo com as prerrogativas de liberação da desconsideração da personalidade jurídica, entende que:
Entendemos que, em certas hipóteses, poderá o juiz decretar a descaracterização da personalidade jurídica, no propósito de comprovar sua fraude, abuso, desvio, e confusão patrimonial, a fim de se proteger interesse coletivo, do consumidor ou indeterminado.
Nas situações de crise da empresa, vindo à quebrar, pode acontecer a confusão patrimonial e o uso abusivo da personalidade; assim, ainda que o credor, não peça, ou se trate de simples pedido de recuperação, convolado em falência, ao juiz se lhe permite, descrevendo pormenorizadamente os fatos, apontando os atos, desestimar a pessoa jurídica, com intuito de alcançar bens particulares dos sócios.
Dessa forma, temos uma norma legislativa aplicável ao caso concreto da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, para os casos que forem referentes ao direito do consumidor, nas relações consumeristas. São aplicáveis às empresas que queriam de certa forma, de certo modo, a atingir os sócios, que lesam o consumidor seja intencionalmente ou não, o juiz, está autorizado a desconsiderar a personalidade.
Já no Código Civil no art. 50, temos premissas que também autorizam a aplicação desse instituto. Vejamos:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Se formos levar em conta, apenas a prévia leitura do artigo acima, a responsabilidade dos sócios ocorrerá no caso de desvio de finalidade e na hipótese de confusão patrimonial. Claro que isso se dá em relação à característica principal que está relacionada ao abuso de personalidade.
Outro ramo onde se prevê a desconsideração da personalidade jurídica é no direito ambiental, na Lei nº 9.605 de 1998, em seu art. 4º. Dispõe ele: “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.
O direito é bastante vasto. Percebemos que requisitos que autorizam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não estão apenas em conceitos do Código Civil. Sendo assim, é possível percebê-los em outros ramos do direito que também trazem artigos de lei, que demonstram primícias que autorizam e levam a desconsiderar determinada personalidade jurídica para atingir o patrimônio particular dos sócios.
Outra área é a trabalhista. O art. 2º, §2º da Consolidação das Leis do Trabalho, apresenta informações acerca de responsabilidade solidária nos casos de relação de emprego:
Art. 2º Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal do serviço.
§ 2º Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos de relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.
O Código Tributário Nacional, em seu artigo 124, diz sobre a obrigação solidária. O art. 135 desse Código traz de forma mais explicativa o porquê da responsabilidade solidária, demonstrando no artigo de lei, o uso dos atos praticados com excesso de poder ou até mesmo diante de infrações cometidas. Sendo assim, diante da legislação, e das premissas que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica, Waldo Fazzio (2008, p. 114-115) fazendo relação com Fábio Konder Comparato, contribui para o tema:
Embora o desfalque do patrimônio social por sócios inescrupulosos quase sempre se apresente como geratriz de situação ensejadora da desconsideração, não basta a simples impotência patrimonial da sociedade; reclama-se seja derivada de fraude. [...]
Com certeza, a desconsideração não é regra. Tratando-se de um mecanismo excepcional, há de ser aplicada com cautela,fundamentadamente, evitando-se o risco de destruir o instituo da pessoa jurídica e lesionar os direitos da pessoa física. Deve ser apoiada em fatos concretos que tornem a medida excepcional inevitável. Não pode ser descuidadamente banalizada.
É de grande importância a posição de Sérgio Campinho (2010, p. 79-80):
De tudo que foi exposto, podemos concluir que a “disregard doutrine” representa uma salvaguarda dos interesses de terceiros contra fraudes e abusos praticados por via da utilização indevida da autonomia de personalidade da sociedade em relação à de seus sócios. Entretanto, sua aplicação exige do magistrado imprescindível zelo e parcimônia, de modo a não vulgarizar sua utilização nos casos concretos que se apresentem, sob pena de impor a destruição do instituto da pessoa jurídica, de construção secular e de reconhecida importância para o desenvolvimento econômico das nações. Somente se verificando a prova cabal e incontroversa da fraude ou do abuso de direito, perpetrado pelo desvio de finalidade da pessoa jurídica ou pela confusão patrimonial é que se admite a sua aplicação, como forma de reprimir o uso indevido e abusivo da entidade jurídica.
4 6 Situação e Efeitos da Sociedade Desconsiderada
Vimos anteriormente alguns requisitos que podem ocasionar a decisão do Judiciário em aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. É necessária à sua aplicação o mau uso da personalidade jurídica, diante de funções e decisões tomadas por sócios ou administradores.
Ao ser desconsiderada a personalidade, qual é a real função da sociedade? Terá, portanto a sociedade validade, e aplicabilidade em suas ações e decisões tomadas, mesmo estando desconsiderada, sejam ou não, desconsiderada pelos motivos e requisitos que legislação permite? E como ficam os colaboradores que a esta sociedade integram, inclusive a dos sócios, administradores? Sofrem estes também algum tipo de punição? Diante destes questionamentos, Daniela Story Lins (2002, p. 42), nos informa sobre a situação de desconsideração em uma sociedade:
Embora a citada regra seja apresentada como toda a clareza, a falta de precisão terminológica muitas vezes cria problemas quanto à sua aplicação, notadamente ao tratarmos de institutos com efeitos similares, tais como o instituto da fraude contra credores e ação revocatória, dentre outros, [...]
Analisando a questão de forma ampla, deduz-se, facilmente, que tais efeitos da desconsideração não se confundem com uma invalidação da personificação societária, com efeitos ex tunc ou ex nunc. Não é definitiva e não retira, por isso, o cunho de pessoa jurídica à sociedade, reconhecendo-se como valida a constituição da sociedade.
Fábio Ulhoa Coelho (2011, p. 154) em uma brilhante explicação, nos alerta, sobre como fica a sociedade empresária diante de um ato de desconsideração:
A desconsideração da pessoa jurídica não atinge a validade do ato constitutivo, mas a sua eficácia episódica. Uma sociedade que tenha a autonomia patrimonial desconsiderada continua valida, assim como válidos são todos os demais atos que praticou. A separação patrimonial em relação aos seus sócios, é que não produzirá nenhum efeito na decisão judicial referente àquele especifico ato objeto da fraude. Esta é, inclusive, a grande vantagem da desconsideração em relação a outros mecanismos de coibição da fraude, tais como a anulação ou dissolução da sociedade.
Maria Gabriela Gonçalves (2011, p. 98), segue em seu posicionamento na mesma linha de raciocínio de Fábio Ulhoa Coelho anteriormente citado:
Veja-se que, se não houve fraude, mais um inadimplemento ou insolvência por parte de empresa que não conseguiu cumprir suas obrigações, não será hipótese de aplicação da teoria. Nesse caso, o credor arcará com eventual saldo devedor, pois não foi transferido a ele um ônus decorrente de má-fé. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica é, portanto, um valioso instrumento de coibição do mau uso da sociedade por atitude fraudulenta dos sócios.
A grande vantagem dessa teoria é que sua aplicação é pontual. Demonstrada a fraude, a desconsideração da personalidade da sociedade ocorrerá apenas sobre os atos ilícitos praticados. Não será dissolvida ou extinta a empresa, nem se declarará invalido seu ato constitutivo. Todos os atos por ela praticados antes e depois dos ilícitos permanecem válidos. A teoria apenas ignora a personalidade da empresa e sua independência patrimonial naquela situação de fraude em particular, atingindo, sem limites, e de forma direta, os bens pessoais dos sócios. Para outros fins, a sociedade continua válida, com personalidade distinta de seus membros, bem como patrimônio próprio, resguardando-se todos os interesses que a circundam, como o dos demais sócios não envolvidos na fraude; dos trabalhadores da empresa; do Fisco, pela arrecadação; e da própria coletividade, pela produção de bens ou prestação de serviços úteis.
Assim, a desconsideração da personalidade jurídica não acarreta o fim da sociedade, devido ao princípio da preservação da empresa. Apenas atinge o ato específico de mau uso da personalidade.
4 7 O Judiciário diante de caso de desconsideração
Diante de fatos e acontecimentos que levam à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, em determinado processo, resta saber a quem cabe impetrar o pedido de desconsideração. Porventura, teria a possibilidade de o próprio judiciário, ao tomar conhecimento do processo, verificar que, naquele caso especifico, existe a possibilidade de que a sociedade seja desconsiderada, tomar de oficio próprio o pedido da desconsideração? Ou necessariamente deve ser provocada, pela parte que se sinta lesada?
Pois bem, fato é que para ocorrer à aplicabilidade da desconsideração, diante da questão acima levantada, é estritamente necessária a provocação da parte interessada, sendo então qualquer credor, ou até mesmo o próprio Ministério Público, que poderá arguir a desconsideração da personalidade jurídica. Isso não necessariamente terá que acontecer a partir de uma ação autônoma. Conforme enunciado anteriormente neste tópico, pode esse requerimento da desconsideração da personalidade jurídica ocorrer dentro do próprio processo de execução.
Sebastião José Roque (1997, p.324) apresenta em poucas palavras o que levou o Judiciário a adotar tal medida:
Foram razões que fundamentaram a jurisprudência em favor da desconsideração da personalidade jurídica. Por isso, já se notava a aceitação de se desconsiderar a pessoa jurídica em relação à pessoa de quem se oculta sob ela e quem a utiliza fraudulentamente.
Maria Helena Diniz (2009, p. 540) nos ensina a respeito da desconsideração ao ser aplicada pelo juízo:
A desconsideração da pessoa jurídica veio a permitir que o juiz não mais considere os efeitos de personificação ou da autonomia jurídica da sociedade para atingir e vincular a responsabilidade dos sócios, com o intuito de impedir a consumação de fraudes e o abuso de direitos cometidos, por meio da personalidade jurídica, que prejudiquem terceiro.
Os tribunais declaram que há diferença de personalidade entre a sociedade e os seus sócios, só que a da pessoa jurídica não constitui um direito absoluto por estar sujeita às teorias da fraude contra credores e do abuso do direito.
4 8 Desconsideração da personalidade jurídica no Novo Código de Processo Civil
O Código de Processo Civil atual e vigente não tem certa procedimentalidade ou abordagem sobre o tema específico da desconsideração, fazendo então com que esse instituto seja basicamente aplicado de acordo com a jurisprudência e até mesmo com o direcionamento da interpretação do juiz.
Recentemente aprovada, a Lei 13.105/2015, também conhecida como Novo Código de Processo Civil, irá (por ainda não estar vigente) suprir essa lacuna, já que vai tratar em tópico e capítulo específico sobre a desconsideração da personalidade jurídica, em seus arts. 133 a 137. Essa norma estabelece métodos e regras para sua aplicação e efetividade.
Denominado então de “incidente de desconsideração da personalidade jurídica”, em seu primeiro artigo, traz a ideia de cessar de uma vez a pretensão de que este instituto jurídico deverá ter origem apenas por ação distinta, já que então, o juiz, estando apto para o processo, poderá, em qualquer momento, na fase do processo de conhecimento, aplicar sua decisão desde que provocado.
Quanto ao seu contraditório, terá o prazo regular de 15 (quinze dias) para a parte se manifestar, a partir da citação do pólo passivo do incidente. Vejamos:
Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1o O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§ 2o Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.
§ 1o A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.
§ 2o Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.
§ 3o A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2o.
§ 4o O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.
Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.
Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.
Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.
Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.
Desse modo, é possível verificar que, neste novo cenário, cabe ao judiciário, um papel de grande importância, que remete a fazer com que a proteção legal não seja um empecilho à desconsideração de uma personalidade jurídica, tomando por base os princípios do contraditório e da ampla defesa. É necessário ser frisado que, em determinadas modificações que o Novo Código de Processo Civil apresenta, de maneira alguma ficará o juiz, de acordo com sua competência e poder de cautela, isento de aplicar o instituto.
A partir desses atos e procedimentos apresentados, no próximo capítulo será tratado outro objeto especifico de nosso trabalho, a desconsideração da personalidade jurídica, em sua modalidade inversa.