RESUMO: Este trabalho tem por objetivo o estudo do problema do crime de estupro de vulnerável, mais especificamente do caso da vulnerabilidade por enfermidade mental, diante das novas normas de capacidade civil apresentadas pelo Estatuto da Pessoa com deficiência. O intuito é obter o máximo de segurança e proteção ao deficiente, sem tolher sua autonomia possível.
PALAVRAS – CHAVE: Dignidade Humana – Autonomia – Capacidade – Vulnerabilidade – Estupro – Estupro de Vulnerável – Deficiência – Pessoa com deficiência – Estatuto da Pessoa com Deficiência – Dignidade Sexual – Liberdade Sexual – Igualdade – Justiça – Sistema Jurídico.
SUMÁRIO: 1- Introdução. 2- Capacidade Civil do Enfermo Mental e Estupro de Vunerável: ente a segurança e a autonomia. 3-Conclusão. 4-Referências.
1-INTRODUÇÃO
O crime de “Estupro de Vulnerável”, previsto no artigo 217 – A do Código Penal Brasileiro, se propõe a tutelar a dignidade e a liberdade sexual de pessoas que não têm o necessário discernimento para o consentimento em atos dessa natureza. Dentre os chamados “vulneráveis”, destacam-se os enfermos mentais sem discernimento.
Acontece que, com o surgimento do denominado “Estatuto da Pessoa com Deficiência” (Lei 13.146/15), os deficientes, inclusive mentais, deixaram, na seara civil, de serem apontados dentre os absolutamente incapazes. Essa alteração legal pode remeter a questionamentos sobre sua eventual repercussão no campo penal, mais especificamente no que se refere ao ilícito de “Estupro de Vulnerável”. Ao menos em tese, é possível questionar a efetiva condição de vulnerabilidade desses deficientes e a legitimidade da repressão penal contra qualquer pessoa que com eles mantenha alguma relação de caráter sexual consentida, ou seja, sem violência ou grave ameaça.
Há uma necessária intersecção entre o Direito Civil e o Direito Penal que deve ser tratada com base na inter, e mesmo na transdisciplinaridade, para chegar a uma conclusão razoável, sem que o enfermo mental sem discernimento seja prejudicado, perdendo a proteção legal que, necessariamente, deve lhe ser conferida, mas também, reconhecendo a autonomia e liberdade inerentes às pessoas deficientes, mesmo mentais, detentoras de capacidade decisória suficiente para dar ou não seu consentimento em atos de natureza sexual. O tormentoso binômio liberdade / segurança será o desafio permanente nas linhas que seguem.
2-CAPACIDADE CIVIL DO ENFERMO MENTAL E ESTUPRO DE VULNERÁVEL: ENTRE A SEGURANÇA E A AUTONOMIA
Seja no estudo das inovações da capacidade civil dos enfermos mentais, seja na investigação do tema do “Estupro de Vulnerável” na seara penal, é possível perceber que a doença mental, por si só, desde sempre, não tem o condão de conferir ao seu portador incapacidade para os atos da vida civil e nem vulnerabilidade como vítima criminal ou mesmo ensejar a ultrapassada “presunção de violência” nos crimes sexuais.
Ademais, a alteração promovida no campo civil não necessariamente tem efeitos transcendentes para o âmbito criminal. Isso, considerando o fato de que os critérios para aferição de capacidade em cada uma das searas em destaque são diversos.
A primeira questão a ser respondida é se necessariamente uma mudança sobre a capacidade civil precisa exercer alterações na seara penal. E a resposta é negativa. Isso porque os campos civil e penal são independentes e mais, os critérios de aferição da capacidade civil e da capacidade penal são completamente diferentes.
O Código Civil adota o critério do “discernimento”, enquanto que no campo penal e processual penal adota-se o critério “político – jurídico”. Com base no critério do discernimento, avalia-se a capacidade civil de acordo com a efetiva demonstração de capacitação de cada pessoa para o exercício dos atos da vida civil. É por isso que o menor casado é considerado capaz; que o menor que se gradua em universidade torna-se capaz; que pode haver o instituto da emancipação.
Já no campo penal e processual penal o critério é estritamente político, ou seja, são adotadas certas idades e certas regras para cada uma delas. Por exemplo, o estabelecimento da inimputabilidade aos 18 anos não comporta alteração, independentemente da capacidade civil da pessoa. A idade limite é estabelecida por força legal e não comporta alteração.
Se um menor de 18 anos emancipado, casado ou com nível superior de ensino, vier a cometer um ato definido como crime ou contravenção, irá responder de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente normalmente (Lei 8069/90), e não como um imputável. Isso ocorre porque os critérios civil e penal são diversos e incomunicáveis, inclusive na esteirado disposto no próprio artigo 2043 do Código Civil.
Nesse diapasão, Torres oferta interessante exemplo de desvinculação entre capacidade civil e penal, lembrando que o maior de 70 anos é dotado de especial tratamento no Código Penal (artigo 115, CP – prazo prescricional contado pela metade). Acrescente-se o especial tratamento dos maiores de 60 anos na seara penal com aumentos de pena quando são vítimas e agravantes especiais, após o advento do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03 – v.g. artigo 61, II, “h”, CP ou artigo 121, § 4º., “in fine”, CP).
Não obstante, não passou pela cabeça de ninguém afirmar que tais dispositivos fariam com que, na seara civil, os maiores de 60 ou 70 anos passassem a ser considerados incapazes ou relativamente capazes por influência do Código Penal ou mesmo do Estatuto do Idoso. Não, a capacidade civil do maior de 60 ou 70 anos é indiscutível, a não ser que sofra de doença mental ou moléstia incapacitante, o que também pode ocorrer com uma pessoa muito jovem de 18, 20 ou 30 anos. [1]
Mais impactante ainda é outra assertiva de Torres, demonstrando que o reverso da moeda, ou seja, a influência do penal no civil também não se pode operar devido à discrepância de critérios e independência de instâncias. Veja-se em suas oportunas palavras:
“Por derradeiro, para colocar uma pá de cal sobre essa questão, lembre-se de que a responsabilidade penal ou a imputabilidade reconhecida pelo sistema penal jamais teve o condão de interferir nos limites da capacidade civil. Com efeito, o artigo 23 da antiga Parte Geral do CP entrou em vigor em 1940, e o artigo 27 da nova Parte Geral do mesmo Código é de 1984, ou seja, esses dois dispositivos penais entraram em vigor depois da edição do Código Civil de 1916, mas isso não autorizou nenhum jurista a afirmar que a responsabilidade ou a imputabilidade penal dos maiores de 18 anos estaria tornando-os plenamente capazes para os atos da vida civil, revogando assim o antigo artigo 9º. do CC, que previa a capacidade civil plena somente a partir dos 21 anos de idade”. E segue afirmando: “Definitivamente, não há confundir ‘menoridade civil’ com ‘menoridade penal’, que são dois institutos distintos e com efeitos absolutamente diferenciados nos respectivos sistemas em que têm aplicabilidade específica”. [2]
Assim sendo, nada mais óbvio do que o fato de que a alteração da capacidade civil dos enfermos mentais levada a termo pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15) não tem, por si só, força para alterar, de qualquer maneira, a aplicação, interpretação e, especialmente, a vigência de normas penais que tratem da matéria.
Uma observação percuciente do tema demonstra que, inclusive o próprio legislador, em momento algum, pretendeu deixar os enfermos mentais desprotegidos. A ideia matriz das alterações foi conferir à pessoa doente ou deficiente mental o reconhecimento de autonomia para os atos da vida civil, desde que não comprovado no caso concreto e de forma concreta, a necessidade de assistência ou até mesmo de representação.
Pensar a alteração legislativa de outra forma seria uma afronta à dignidade humana dessas pessoas e, inclusive, à sua liberdade, integridade física, moral, patrimonial etc. Isso sem falar na flagrante infração ao Princípio da Igualdade sob o prisma material e não somente formal.
E não poderia ser de outra forma, pois
“o reconhecimento da vulnerabilidade da pessoa humana nas suas mais variadas configurações é aspecto a ser destacado na Constituição da República de 1988. Com efeito, ao elevar a dignidade a vértice do ordenamento jurídico, optou o constituinte por se afastar das categorias abstratas e formais em prol de hermenêutica emancipatória. Tal diretriz axiológica tem sido designada como mecanismo de repersonalização promovido pela Constituição da República, que desloca a proteção do sujeito de direito abstrato e neutro para a pessoa concretamente considerada, em atenção aos princípios da solidariedade e da isonomia substancial”. [3]
Como ensina Sen, a salvaguarda dos direitos humanos não se pode dar por uma interpretação fria e inflexível da legislação. Há muitas vias de tutela e promoção dos direitos humanos, afora a legislação e essas vias têm entre si uma “considerável complementaridade”.
“A ética dos direitos humanos pode ser tornar mais efetiva com uma variedade de instrumentos inter-relacionados e uma versatilidade de meios e maneiras. Essa é uma das razões pelas quais é importante reconhecer o estatuto ético geral dos direitos humanos, o que lhe cabe, em vez de encerrar prematuramente o conceito de direitos humanos no quadro estreito da legislação, real ou ideal”. [4]
Essa necessidade de concreção da análise da capacidade para atos é muito bem destacada no Enunciado 138 da III Jornada de Direito Civil, que assim é redigido:
“A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inciso I do artigo 3º., é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto” (grifo nosso).
Assim sendo, “os efeitos da incapacidade devem ser proporcionais à exata medida da ausência do discernimento”, a fim de que não se tolha, sob pretexto protetivo, a autonomia do sujeito, mas também não se o abandone desprotegido quando precisa desse manto protetor da lei. [5]
Neste sentido, a lição de Fiuza é oportuna:
“O objetivo da Lei é, evidentemente, o de preservar, ao máximo, na medida do possível, a autonomia do deficiente, respeitadas as limitações do caso concreto. A regra de que a curatela só atinja relações patrimoniais deve ser interpretada segundo esse contexto, isto é, sempre que possível, o curador não deverá interferir nas relações existenciais, a fim de preservar a autonomia e a dignidade do curatelado. Entretanto, relações existenciais que tenham efeitos patrimoniais estariam dentro do campo de atuação do curador, e, em alguns casos, dependendo da gravidade da deficiência, mesmo as que não tenham efeitos patrimoniais, para se evitar prejuízos materiais, e para que sejam preservados o interesse e a dignidade do deficiente incapaz” (grifos nossos). [6]
É importante destacar que esse “discernimento” do deficiente, a partir do Estatuto, passa a ser visto como a regra. Excepcionalmente não estará presente, ensejando medidas protetivas legais nos mais diversos campos, inclusive o penal. Mas, para isso, como bem observa Rosenvald, trazendo à baila a dicção do artigo 4º., III, do Código Civil, com a nova redação dada pelo artigo 114 da Lei 13.146/15, necessário é compreender “falta de discernimento” como “incapacidade de exprimir a própria vontade”.[7]
Lembremos que essa capacidade de exprimir a vontade própria não é um conceito que se conforme apenas no plano físico, de emissão de palavras, gestos etc., mas que essa vontade exprimida tem de satisfazer um requisito de validade, isso em qualquer área do Direito, estejamos falando de contratos, negócios ou mesmo de atos sexuais.
A vontade exprimida com capacidade é aquela realmente livre e consciente, isenta de fraude, coação, erro, violência, horizonte informativo ilusório ou extremamente limitado etc., ou seja, a liberdade real é qualificada necessariamente por uma ação consciente e informada. Nas palavras do autor acima mencionado:
“Como medida de incapacitação, a Lei 13.146/15 viabiliza a substituição do critério subjetivo do déficit cognitivo, embasado em padrões puramente médicos, por outro objetivo. Em vez de um diagnóstico técnico que aponte um desvio, qualifica-se a situação de uma pessoa e as suas circunstâncias: a absoluta impossibilidade de interação e comunicação por qualquer modo, meio ou formato adequado. A impossibilidade não é qualquer dificuldade ou complexidade, mas um impedimento de caráter absoluto. Não poder exprimir a sua vontade, importa em situação de ausência de consciência de si e do entorno, para a qual todo um sistema de tomada de decisão apoiada seja insuficiente, sendo necessária a escolha de um curador para exercer assistência” (grifo no original). [8]
Nesse passo, na realidade, o trato penal e civil da temática não se afasta tanto, ao reverso, se aproxima bastante. Conforme destacam Silva e Souza, a mais atual jurisprudência do STJ tende a abrandar a importância até mesmo da natureza da sentença de interdição (se declaratória ou constitutiva), optando pela prevalência da “investigação do concreto grau de discernimento da pessoa com deficiência à época da realização do ato”.[9] Assim sendo, asseveram os autores sobreditos:
“O melhor caminho parece consistir na análise do concreto grau de discernimento da pessoa à época da realização do ato, e, ao mesmo tempo, dos valores merecedores de tutela na específica situação. A partir dessa renovada postura metodológica – que corresponde, em verdade, à necessária análise funcional de todos os institutos civilísticos -, será possível concluir se o ordenamento do caso concreto sinaliza para a manutenção dos efeitos do ato ou, diversamente, para o reconhecimento (em certo grau) de sua invalidade”. [10]
É por essa mesma tábua que deve ser medida a capacidade da pessoa com deficiência mental em apresentar seu consentimento válido para a prática de atos sexuais, a afastar a prática do Estupro de Vulnerável.
Em artigo bem fundamentado sobre o tema específico, assim se manifesta Soares:
“Por outro lado, é de conhecimento amplo, também, até para os mais leigos, que existe uma infinidade de anomalias psíquicas catalogadas pela CID – 10 – Classificação Internacional de Doenças - cada qual com o seu respectivo grau de profundidade e de repercussão, variando entre distúrbios de alcance quase inexpressivo, capazes de oportunizar, ao seu detentor, uma vida absolutamente normal, até anormalidades mais sérias, as quais impõem um acompanhamento médico mais rigoroso.
Repare-se, neste sentido, que até o conceito de pessoa maior, absolutamente incapaz, não existe mais, visto que o estatuto trouxe significativa modificação no art. 3º. do Código Civil, que trata da incapacidade absoluta. O próprio Ministério Público, aliás, por intermédio do CNMP, elaborou uma cartilha para tratar, agora, da interdição na modalidade chamada parcial.
Pois bem, a nosso ver, no que diz respeito ao crime de estupro de vulnerável, sem violência real, a leitura correta, à luz do atual cenário normativo, passa, necessariamente, pela análise das condições da pessoa portadora da enfermidade, vale dizer, ter-se-á que averiguar, no caso concreto – valendo-se da expertise de um profissional competente - se o deficiente mental detém, ou não, o necessário discernimento para a prática do ato” (grifo nosso). [11]
Neste ponto, o autor em destaque passa a afirmar que se a conclusão pericial for favorável à capacidade do deficiente para a compreensão do ato, ter-se-ia operado o “fenômeno da abolitio criminis”. [12] Há que discordar nesse aspecto, pois a questão do deficiente sempre foi de natureza relativa, devendo-se apurar concretamente a capacidade ou não de discernimento, aliás, como sempre esteve claro na dicção do § 1º., do artigo 217 – A, CP. O Estatuto somente vem a reforçar essa orientação que já existia na lei. Não se trata de “abolitio criminis”, mas de continuidade normativo – típica com um reforço da orientação interpretativa para a devida aplicação da norma.
Agora, realmente, conforme aduz Soares, se a pessoa, embora deficiente, tem o necessário discernimento para a decisão sobre a prática do ato sexual, o fato é “atípico”, inclusive sob o prisma defendido por Zaffaroni e Pierangeli, da atipicidade “conglobante”, eis que o ordenamento jurídico não se pode contradizer. O Estatuto da Pessoa com Deficiência permite que esta exercite sua sexualidade.
Então, um impedimento absoluto na seara penal de que alguém mantenha relações sexuais com um(a) deficiente, tornaria todo o sistema contraditório e inviável. Analisada a legislação brasileira de forma conglobante, a capacidade de discernimento do deficiente quanto ao ato sexual, descaracteriza, torna conglobantemente atípica, a conduta. [13]
Soares também, ao final e ao cabo, afirma que o Estatuto veio a reforçar a normatização já existente:
“Note-se, aliás, que, nesse aspecto, o estatuto veio apenas para reforçar e esclarecer algo que já era presente em nosso ordenamento, dado que, desde a edição da Lei 12.015/09, em que a presunção de violência foi extirpada do nosso ordenamento jurídico, é necessário apurar se a deficiência mental de que padeça alguém ocasiona a falta de discernimento.
Entendemos, portanto, que só o caso concreto dirá se o deficiente mental reúne, ou não, as condições psíquicas para manter uma relação, como expressão da sua sexualidade, pondo-se por terra, definitivamente, o superado entendimento anterior (art. 224, b, do CP, revogado pela Lei 12.015/09).
Como consectário lógico, ausente o discernimento necessário, devidamente comprovado, caracterizado está o crime do art. 217 – A, § 1º., do Código Penal, em toda a sua plenitude típica. Com efeito, são situações totalmente distintas aquela em que o sujeito faz sexo com um deficiente mental, de forma consentida e discernida, daquela em que esse mesmo sujeito aproveita-se da enfermidade mental, para usar o deficiente, inepto para o ato, apenas como objeto sexual da sua própria lascívia.
Este é, portanto, o ponto nodal a ser enfrentado pelos operadores do direito: saber distinguir o deficiente, enquanto sujeito de direito, e, desse modo, plenamente capaz de manter a sua vida sexual, saudavelmente, daquele enfermo mental, vítima da exploração sexual de outrem, tido como objeto, impondo justa punição àqueles que atentem contra a sua dignidade sexual.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, logo, teve, sim, repercussões na esfera penal, mas apenas para tornar mais sólida e clara a tutela protetiva e garantidora de direitos do deficiente, dando contornos mais precisos a uma realidade normativa que, a despeito de já existir, ainda ensejava inseguranças e incertezas quanto à sua aplicação” (grifo nosso). [14]
Observe-se que, embora a lei civil apresente atualmente a curatela restrita a questões de gestão patrimonial, nada obsta que, excepcionalmente, as condições precárias do indivíduo sob o prisma mental e intelectual, condicionem a validade dos atos civis, à representação por parte de terceiros que devem zelar por sua integridade em sentidos diversos do patrimonial (questões existenciais). De acordo com a lição de Perlingieri:
“Não parece também que se possa compartilhar a interpretação tendente a reduzir o instituto da curatela do inabilitato à assistência do sujeito na administração dos bens e, na espécie, ao controle preventivo em todos os atos de extraordinária administração, com exclusão do tratamento da pessoa. A enfermidade mental, mesmo se menos grave, pode criar ao inabilitato a necessidade de uma assistência que não se restringe ao plano patrimonial”. [15]
Procedendo a uma análise conjuntural dos próprios diplomas que trazem normas penais que versam sobre especiais proteções a pessoas mentalmente incapacitadas, inclusive o próprio Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), torna-se claro e evidente o fato de que jamais pretendeu o legislador descobrir do devido manto protetor especial esses indivíduos, jogando-os na vala comum, o que, aliás, seria inconstitucional, seja pelas determinações de proteção expressas constitucionais e convencionais, seja por violação ao Princípio da Igualdade Material.
Com a devida parcimônia, aduzem Barboza e Almeida:
“O exercício de outros direitos existenciais, como a sexualidade – reprodução e o casamento, também não afetados pela incapacidade, não exige autorização judicial, como indica a redação do § 2º. acrescido ao art. 1.550 do Código Civil, pelo Estatuto, segundo o qual ‘a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador’. Permita-se repetir aqui as ressalvas feitas no sentido de que o respeito a esses direitos não significa o abandono da pessoa a suas próprias decisões, quando se sabe, não haver, evidentemente condições de toma-las por causas físicas ou mentais”. [16]
Alguns exemplos são interessantes e esclarecedores:
O Código Penal prevê o crime de “Abuso de Incapazes” em seu artigo 173, visando à proteção de seu patrimônio. Seria crível que um indivíduo que, a partir da alteração civil, se aproveitasse da inexperiência ou paixão de alienado ou débil mental, causando-lhe prejuízo dolosamente, devesse ficar impune? É claro que não. Isso seria o cúmulo do absurdo. É claro que a incapacidade deverá ser aferida caso a caso, não bastando a mera constatação da debilidade ou alienação, mas a comprovação de que ela afeta consideravelmente o discernimento da vítima. Ora, mas isso sempre foi assim e deve realmente ser.
Também são esclarecedores os artigos 106 e 108 do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), que antecipam a proteção penal quanto a possíveis lesões patrimoniais, transformando aquilo que seria mero ato preparatório de futuros estelionatos em conduta já prevista como crime e passível de reprimenda. Isso quando o idoso for pessoa “sem discernimento”. Esses crimes não tornam todos os idosos indivíduos incapazes. Seria uma aberração. Mas, reconhece que o idoso pode ser acometido de problemas físicos e/ou mentais que lhe retirem o discernimento para a prática de certos atos (v.g. acidente vascular cerebral, demência senil etc.).
Nesses casos, o indivíduo é protegido de forma antecipada. A mera outorga de uma procuração obtida dessa pessoa com má fé já é crime, independente de ocorrência de lesão patrimonial efetiva. A simples lavratura de ato notarial sem representação ou assistência já é crime, também independentemente de ocorrência de efetiva lesão patrimonial. Tudo isso está a indicar que na seara penal não se perdeu de vista o fato de que pessoas podem sim tornarem-se desdotadas de discernimento para atos da vida civil, devendo nestes casos, ser assistidas ou mesmo representadas por quem de direito e devendo haver a escorreita proteção legal especial a que fazem jus.
Em obra especializada, ao tratar do tema do envelhecimento, Gawande expõe o seguinte:
“A veneração aos idosos pode ter desaparecido, mas não porque foi substituída pela veneração aos jovens. Foi substituída pela veneração à independência pessoal.
Resta um problema com esse modo de vida. Nossa reverência pela independência não leva em conta a realidade do que acontece na vida: mais cedo ou mais tarde, a independência se torna impossível. Seremos acometidos por doenças ou limitações sérias. É tão inevitável quanto o por do sol. Surge então uma nova questão: se vivemos pela independência, o que fazer quando ela não pode mais ser sustentada”? [17]
Portanto, se é correto que se deve respeitar a independência e a autonomia dos idosos, estejam eles completamente sãos ou portando alguma deficiência que não lhes tolha de forma extrema a capacidade, também é certo e imprescindível que se não os abandone à própria sorte numa selva de possíveis predadores patrimoniais e de todas as espécies imagináveis, com base em uma ilusão de que todos, a todo tempo são realmente plenamente capazes, autônomos e independentes, sem necessidade de proteção legal, familiar e social.
Não se pode também olvidar o disposto no artigo 91 do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15): “reter ou utilizar cartão magnético, qualquer meio eletrônico ou documento de pessoa com deficiência destinados ao recebimento de benefícios, proventos, pensões ou remuneração ou à realização de operações financeiras, com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem”. Novamente exsurge uma antecipação protetiva, pois que a mera retenção do cartão ou documento com intento lesivo patrimonial já configura crime, transformando o que seriam apenas atos preparatórios em conduta incriminada. E essa deficiência, conforme é trivial, pode ser perfeitamente a deficiência mental.
Este caso é ainda mais emblemático para os fins argumentativos deste trabalho, pois é o próprio Estatuto da Pessoa com Deficiência que confere especial proteção penal aos deficientes, deixando claro que uma igualdade formal obtusa não pode ser o critério para tratar juridicamente tais pessoas na vida em comum. Portanto, não é crível que, ao retirar os deficientes do rol de incapazes, se tenha pretendido levar a termo essa igualdade formal estúpida em prejuízo de uma efetiva igualdade material, obstando qualquer perquirição acerca da efetiva capacidade da pessoa avaliada em cada caso concreto.
E não é somente no artigo 91 que o Estatuto da Pessoa com Deficiência trata de especiais proteções penais. Também há outras previsões nos artigos 89 e 90. Note-se que no artigo 89, Parágrafo Único, I, há previsão de aumento de pena de um terço se o autor do crime de apropriação dos proventos da pessoa com deficiência for seu tutor ou curador. Ou seja, é claro e evidente que o deficiente, de forma geral, e somente por causa da presença de uma deficiência qualquer, não pode ser tido como incapaz. No entanto, dependendo do grau e condições dessa deficiência, poderá necessitar de assistência ou mesmo representação por meio de institutos como a tutela e a curatela, tanto que a pena aumenta nesses casos. No artigo 90, o abandono material do deficiente é especialmente apenado, demonstrando mais uma vez que o legislador não quis embarcar numa aventura da igualdade formal isolada.
Dessa maneira é correto afirmar com Rogério Greco que a pessoa com enfermidade ou deficiência mental que não souber discernir sobre o ato sexual a que é conduzida, não deixa, por força de alterações civis, de integrar o rol de vulneráveis que podem ser sujeitos passivos do crime de “Estupro de Vulnerável”. Isso não impede que tal vulnerabilidade seja aferida casuisticamente com o devido cuidado para, inclusive não apenar pessoas que não agem com má fé e lesar o próprio deficiente no seu direito de uma vida sexual ativa. Nas palavras do autor em destaque:
“Além do critério biológico (enfermidade ou deficiência mental), para que a vítima seja considerada como pessoa vulnerável, não poderá ter o necessário discernimento para a prática do ato (critério psicológico), tal como ocorre em relação aos inimputáveis, previstos no artigo 26, caput, do Código Penal.
É importante ressaltar que não se pode proibir que alguém acometido de uma enfermidade ou deficiência mental tenha uma vida sexual normal, tampouco punir aquele que com ele teve algum tipo de ato sexual consentido. O que a lei proíbe é que se mantenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com alguém que tenha alguma enfermidade ou deficiência mental que não possua o necessário discernimento para a prática do ato sexual.
Existem pessoas que são portadoras de alguma enfermidade ou deficiência mental que não deixaram de constituir família. Assim mulheres portadoras de enfermidades mentais, por exemplo, podem tranquilamente engravidar, serem mães, cuidarem de suas famílias, de seus afazeres domésticos, trabalharem, estudarem etc. Assim não se pode confundir a proibição legal constante do § 2º. do art. 217 – A do Código Penal com uma punição ao enfermo ou deficiente mental”. [18]
Aproveitando o gancho, é visível que se a alteração promovida no Código Civil quanto aos enfermos e deficientes mentais, conferindo-lhes, “a priori”, capacidade plena para os atos da vida civil, salvo prova em contrário, fosse geral, gerando alterações na seara penal, inclusive no crime de estupro de vulnerável, não seria somente aí que se criaria uma situação insustentável. Todos os exemplos já vistos seriam postos em xeque e, mais relevante ainda, o próprio reconhecimento da inimputabilidade por deficiência ou enfermidade mental ou da semi – imputabilidade, nos estritos termos do artigo 26 , CP não mais se sustentaria, o que seria um absurdo ainda maior.
Conferir capacidade plena para os atos da vida civil de maneira totalmente aleatória e sem qualquer consideração casuística já seria, no campo civil, algo inusitado e perigosíssimo. Mas, isso não se compara à atribuição de responsabilidade plena àqueles que não a tem, submetendo-os a sanções penais por condutas que não compreendem ou que não conseguem determinar de acordo com o entendimento que têm. Estaríamos retornando a épocas em que se faziam julgamentos de animais pela suposta prática de crimes (não se pretende aqui equiparar pessoas deficientes a animais, justo o contrário, respeitar sua humanidade e igualdade material perante as demais pessoas; mas submeter um inimputável a julgamento sem mais é uma afronta e uma estupidez tão grande quanto pretender imputar responsabilidade penal a um animal, obviamente “mutatis mutandis”). [19]
O destaque é dado à incapacidade de determinação conforme um entendimento e a brutalidade que seria uma reação penal por considerarem-se, abstrata e genericamente, todos simplesmente plenamente capazes. A menção à apenação de animais no passado, reitere-se, não tem o intento de equiparação, mas de expor o absurdo da situação. Scruton distingue muito bem, contra a concepção de equiparação zoológica do homem aos outros animais, as considerações morais que se deve sustentar com relação aos animais e aos seres humanos, deixando claro que estes são “pessoas” e, por isso, suas relações entre si são “pessoais” ou “intersubjetivas” e jamais “animalescas” ou “animais”. [20] A concepção aqui adotada, por obviedade, é aquela que distingue claramente o homem do animal, ao reverso de algumas correntes radicais hoje defendidas. [21]
Por isso o pensamento de Scruton é esclarecedor, afirmando não haver dúvida quanto ao fato de que animais não formam comunidades morais de mesma espécie que os humanos, tal como o citado autor descreve em sua obra. [22] As ideias de liberdade, responsabilidade, direito e dever contêm uma tácita assunção de que todo componente do jogo moral (cada ser humano) conta como um e nenhum componente conta como mais de um. Pensando nestes termos, se assumem todas as pessoas como insubstituíveis e autossuficientes membros da ordem moral.
Seus direitos, deveres e responsabilidades são seus atributos pessoais. [23] Para isso, nada mais claro do que a necessidade de que a pessoa humana esteja realmente em condições de ser autossuficiente, seja capaz de compreender tal contexto em que se acha. Caso contrário, deverá ser tratada diferencialmente, com especial proteção e consideração, devido à sua condição específica, o mais seria responsabilidade objetiva ou abandono protetivo.
É preciso saber discernir, não se trata agora do enfermo ou deficiente mental, mas do jurista e do operador do direito. É necessário saber discernir, saber distinguir o “sujeito” do “subjugado ou submetido” e dar a cada um o que lhe é inerente e justo.
Althusser opera em outro campo (o da ciência politica), mas apresenta uma conceituação e uma distinção que podem ser valiosas neste ponto. O autor citado fala sobre duas acepções que se pode ter da palavra “sujeito”, reconhecendo sua ambiguidade semântica:
“Na acepção corrente do termo, sujeito significa 1) uma subjetividade livre; um centro de iniciativas, autor e responsável por seus atos; 2) um ser subjugado, submetido a uma autoridade superior, desprovido de liberdade, a não ser a de livremente aceitar sua submissão”. [24]
Mesmo um teórico que tem ideias absurdas, defendendo não somente o aborto, mas também o infanticídio até a primeira semana do nascimento, como Tooley, sob a alegação de que são os desejos das pessoas que lhes conferem direitos, razão pela qual um ser que ainda não tem planos não pode ser tratado como pessoa, mas como coisa. [25]Até mesmo um indivíduo como este, apresenta como exceção à sua regra inusitada e cruel, as pessoas que padecem de perturbações “emocionais” ou, melhor dizendo, mentais.
Afirma que muitas categorias de “toxicômanos e portadores de doenças mentais sofrem grave perturbação emocional, mas seus direitos, inclusive à vida, permanecem”. [26] Ou seja, nesses casos, entende Tooley que os “desejos” de tais pessoas não são relevantes porque marcados por uma perturbação mental. Nem mesmo um autor que beira à própria demência com sua tese esdrúxula, consegue sustentar que uma pessoa privada de discernimento mínimo para fazer escolhas sãs pode ser tratada em pé de igualdade absoluta com outras em plena capacidade de discernimento.
Em face do atual quadro jurídico, seja no campo cível, seja no penal, cabe ao operador do direito e ao jurista distinguir aquele que age realmente como sujeito, independentemente de sua condição de saúde mental, daquele que age submisso, subjugado ou submetido pela vontade alheia, muitas vezes maliciosa e prejudicial.
O primeiro deve ter sua condição de pessoa, de ser humano capaz, respeitada e reconhecida. O segundo, para que tenha essa mesma condição reconhecida e respeitada, necessita de especial assistência, representação e proteção, o que justifica a curatela, incriminações especiais como o “Estupro de Vulnerável” e outros dispositivos já expostos, bem como toda uma gama de instrumentos que sejam capazes de produzir uma situação de igualdade material para além da mera declaração formal de igualdade. Afinal, como bem afirma Hans Jonas, é preciso adotar um “princípio rigoroso”, segundo o qual “o absoluto desamparo exige a absoluta proteção”. [27]
O perigo de medidas como a tomada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência no campo civil é o de tornar-se uma legislação simbólica que acaba causando mais efeitos deletérios que benéficos, principalmente se mal e muito amplamente interpretada.
Segundo Kindermann, pode-se elaborar um “modelo tricotômico” para as espécies de legislações simbólicas, a saber: “a)confirmar valores sociais; b)demonstrar capacidade de ação do Estado; e c)adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios”. [28]
O reconhecimento da capacidade civil plena dos enfermos e deficientes mentais pode muito bem ser uma confirmação de valores sociais e uma demonstração de suposta capacidade de ação do Estado na promoção da igualdade e justiça. Mas, quando isso é feito sem o devido cuidado, pode surtir efeitos contrários, porque a legislação meramente simbólica é pura demagogia. Ao reverso da “crença popular”, a verdade é que as leis isoladamente “não são capazes de mudar a realidade”. Uma discriminação secular não pode ser resolvida “por um ato instantâneo do Poder Público”. [29]
Possivelmente, a redação do Código Civil possa ser melhor elaborada, deixando claros os limites do reconhecimento da capacidade plena aos enfermos e débeis mentais, pois a igualdade não tem apenas uma face:
“E a isonomia prometida pela Constituição de 88 não é apenas formal. Ela não representa só um limite, mas configura também verdadeira meta para o Estado, que deve agir positivamente para promovê-la, buscando a redução para patamares mais decentes dos níveis extremos de desigualdade, presentes na sociedade brasileira, bem como a proteção dos mais débeis, diante da opressão exercida pelos mais fortes no cenário sócio – econômico”. [30]
Resta evidente que não basta promover uma igualdade mediante declarações ou textos legais, conferindo supostos poderes ou faculdades a este ou aquele grupo de pessoas. É preciso disponibilizar uma rede de proteção aos mais débeis diante dos mais fortes, sob pena de simplesmente facilitar a dominação e a opressão, a exploração e até o abuso criminoso em várias áreas (sexual, patrimonial etc.).
A igualdade estabelecida de forma meramente abstrata e geral, pode converter-se em temível desigualdade, promovendo um desequilíbrio destrutivo para os mais débeis:
“A lei é uma regra abstrata e racional, mas para ela também é uma virtude ser concreta e empírica.
A lei é uma regra uniforme, mas para ela também é um mérito promulgar prescrições especiais para as situações especiais, e prescrições locais para as situações locais.
A lei é uma regra igual para todos, mas para ela também é uma necessidade reconhecer que há desigualdades sociais atualmente indestrutíveis”. [31]
No caso do “Estupro de Vulnerável”, e em outras situações em que pessoas deficientes mentais ou alienadas surgem como potenciais vítimas, mister se faz aferir se o consentimento, a deliberação, o discernimento, enfim, podem ser encarados como um verdadeiro exercício de autonomia pessoal ou se não passam de uma manipulação e de um abuso por parte de terceiros. E isso não é simplesmente um exercício de análise normativa. Trata-se de apuração empírica e casuística que não se reduz jamais a uma regra civil, a qual mesmo naquele campo deve ser aplicada com extrema cautela.
Como bem leciona Figueiredo Dias:
“Para que o consentimento se assuma (...) como um ato de auto – realização, torna-se antes de tudo necessário que quem consente seja capaz. O CP entendeu – e bem – que essa capacidade não pode ser medida pelas (nem avaliada à luz das) normas jurídico – civis relativas à capacidade. . Antes se torna necessário garantir que quem consente é capaz de avaliar o significado do consentimento e o sentido da ação típica; o que supõe a maturidade que é conferida em princípio por uma certa idade e o discernimento que é produto de uma certa normalidade psíquica” (grifos no original). [32]
Assim sendo, um autêntico ato de autodeterminação só poderá existir caso o consentimento traduza “uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido”. [33] Pois bem, essa constatação de presença de uma manifestação de vontade válida não se pode deduzir de uma norma civil genérica e abstrata, mas tão somente da análise cuidadosa de cada caso concreto sob exame.
Trazendo à baila a teoria psicanalítica freudiana, assim se manifesta Sá:
“O homem, segundo Freud, não tem garantida e acabada sua capacidade de pensar sobre seus atos, mas ela deve ser conquistada por sua evolução e maturidade, o que equivale a dizer que também deve ser conquistada por sua evolução e maturidade a sua capacidade de saber o que faz”. [34]
E a enfermidade mental, pelo menos em suas formas mais agravadas
“destrói as conexões reais e objetivas de sentido da atuação do agente, de tal modo que os atos deste podem porventura ser ‘explicados’, mas não podem ser ‘compreendidos’ como fatos de uma pessoa ou de uma personalidade”. [35]
Sob o risco de deixar desamparados os que mais precisam de proteção penal, é necessário não se deixar levar por uma ilusão de igualdade de conto de fadas, onde se faz de conta que não existem anomalias psíquicas que, devido à sua extrema gravidade, transformam o suposto “agente” ou “sujeito” “em objeto passivo de processos funcionais” ou intersubjetivos. [36]
Nessas condições, é preciso ter consciência de que a anomalia psíquica leva à destruição ou ao menos ao ocultamento intenso do “sentido objetivo entre o seu portador e o fato que praticou”. [37] Nessas circunstâncias, não há que se falar em liberdade de ação, em deliberação consciente, em tomada válida de decisão ou em consentimento válido.
O indivíduo é uma marionete nas mãos do abusador e a alteração no campo civil em nada influi para suposta descaracterização do ilícito penal. Pode-se, certamente, ir mais longe. Nessas situações, até mesmo na seara civil, a regra geral da capacidade que não é afetada pela simples presença da enfermidade ou deficiência mental, deve ser excepcionada, evitando o risco de que a liberdade conferida ao deficiente se transforme na mais odiosa injustiça e desigualdade material.
Cruet é bastante incisivo ao afirmar que “não pode haver contrato verdadeiramente livre entre indivíduos desiguais. Ora na sociedade a desigualdade é a regra, a igualdade, a exceção”. [38]
É preciso lembrar com Roxin que:
“Cuando el ordenamento jurídico parte de la iguadad de todas las personas no sienta la absurda máxima de que todas las personas sean realmente iguales, sino que ordena que los hombres deben recibir un igual trato ante la ley”. [39]
Como bem aduzem Silva e Souza:
“A preocupação do sistema ao regular as incapacidades é muito mais pragmática: tem um viés eminentemente protetivo, diante da constatação de que a promoção da dignidade humana nem sempre se associa a uma liberdade irrestrita.
Em síntese, nem a incapacidade implica a supressão da liberdade (uma vez que a maior parte dos atos da vida civil pode ser realizada pelo incapaz com a participação do representante ou do assistente), nem a liberdade consiste no conteúdo único da dignidade humana, sendo necessário sopesar, em cada caso, em qual medida a promoção da liberdade favorece ou prejudica a promoção da dignidade da pessoa. (...). O fato de atos de natureza extrapatrimonial dizerem respeito de forma mais direta à promoção da personalidade do agente, contudo, não afasta totalmente a lógica do que se acaba de expor. Também (e, talvez, principalmente) em matéria extrapatrimonial a autonomia reconhecida ao indivíduo é proporcional ao seu grau de responsabilidade (ou, no entendimento da doutrina especializada, autorresponsabilidade) por ele apresentada” (grifos nossos). [40]
Talvez alguém possa imaginar que toda essa preocupação com uma interpretação por demais ampla da capacidade dos deficientes mentais seja um exagero, que nossos Tribunais e Juristas não chegariam a conclusões tão absurdas, pretendendo conceder uma suposta “liberdade” a quem não tem capacidade alguma de exercê-la sem prejuízo próprio.
Pois bem, fato é que, em caso muito mais claro e evidente, versando sobre o estupro (na época “atentado violento ao pudor”) de uma criança de 5 (cinco) anos, em que o indivíduo procedeu a manipulações de seu órgão digital e sexo oral, o E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, afirmou a inexistência de crime porque a criança teria “consentido livremente” (sic) no ato sexual sobredito.
Consta, desse julgado espúrio, que “a vítima foi de espontânea vontade ao encontro do recorrente, atraída pelos dizeres do acusado”. E mais: “vamos, por assim dizer” que o ato se deu “com o consentimento da criança”, a qual “foi seduzida e não violentada” (sic). Por felicidade essa decisão absurda foi reformada em Recurso Especial 714979/RS pelo Superior Tribunal de Justiça. [41]
Uma decisão como esta é certamente sintoma daquilo que se pode, com absoluta razão, chamar de “esquizofrenia intelectual”, caracterizada pelo “amor deliberado à unidade na fantasia e a rejeição da unidade na realidade”. [42]
Ora, se algo desse jaez é possível de ocorrer numa corte de segundo grau de jurisdição, é de se concluir que a insanidade é algo que se pode espraiar por qualquer canto e nas mais variadas circunstâncias, inclusive quando se tem de julgar a capacidade civil e a vulnerabilidade vitimal de insanos.
Por isso não é possível, simplesmente, descansar, em berço esplêndido, deixando a questão das possíveis influências das normas de capacidade civil de enfermos mentais, trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, ser tratada como algo banal. Mister se faz deixar muito bem claro que a capacidade civil do enfermo mental pode ser relativizada, inclusive no seu campo original, e também na seara penal, em específico no caso do “Estupro de Vulnerável”, desde que se trate de uma pessoa gravemente afetada pela doença ou deficiência, de modo que não tenha condições mínimas de discernimento. Enfim, a abstração legal há que ser adequada a cada caso concreto submetido à jurisdição.