O contrato administrativo foi feito para perdurar no tempo.
A lógica que subjaz a este entendimento é o fato de que ele, o contrato administrativo, visa a amparar a Administração Pública no desempenho de seus misteres constitucionais, concentrados, em grande medida, no Capítulo VII da Constituição Federal.[1]
Sob o pálio do princípio da continuidade do serviço público,[2] não poderia – ou pelo menos não deveria – haver a interrupção dos serviços prestados por particulares ao Poder Público, sob pena de comprometimento dos ditos deveres constitucionais e legais dirigidos notadamente em face da Administração. No máximo, a transição entre um contrato e outro, sem descontinuidade.
A dinâmica da vida, entretanto, se impõe. Não é neste compasso bem regulado que as contratações públicas se estabelecem. Há entreveros. E muitos.
Havendo a necessidade de interrupção da avença contratual, a própria legislação estabelece, em linhas gerais, o rito a ser seguido, sem, contudo, o pormenorizar, abrindo margem para a atuação administrativa responsável, ciente e consciente também dos direitos e deveres do administrado.[3] E é aqui que residem dúvidas sobre o tema, objeto deste artigo, que traz considerações sobre a matéria.
1. Da rescisão do contrato administrativo
O artigo 77 da Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, como norma geral nacional sobre licitações e contratos administrativos, fixa as balizas norteadoras do procedimento rescisório, indicando que:
Art. 77. A inexecução total ou parcial do contrato enseja a sua rescisão, com as consequências contratuais e as previstas em lei ou regulamento.
Nesse sentido, devem estar previstas no próprio contrato, em lei ou em regulamento as consequências advindas da rescisão. Como, na prática, nem sempre estão, podem ocorrer incertezas quanto à forma em que deveria ocorrer e aos efeitos mediatos e imediatos que ela produz.
O artigo 78 da mesma Lei dá indicativos importantes sobre o que constitui motivo para a rescisão do contrato, tratando da necessidade de motivação do ato nos autos do processo administrativo que trata do assunto[4] e da observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório.[5]
2. Dos tipos de rescisão
No atual regime jurídico dos contratos administrativos, firmados pela Administração Pública direta, autárquica e fundacional, vigoram três tipos específicos de rescisão,[6] todos previstos na Lei Federal nº 8.666/1993, quais sejam:
a) a unilateral, apenas nas hipóteses previstas no art. 79, inciso I;
b) a amigável, no mesmo artigo, inciso II; e
c) a judicial, do inciso III do mesmo dispositivo.
Apesar de o desfazimento de relações contratuais poderem se dar também de outras formas, como nos casos previstos no art. 35[7] da Lei Federal nº 8.987/1995 e nos disciplinados em contrato pelas empresas estatais nos termos do art. 69, inciso VII,[8] da Lei Federal nº 13.303/2016, restringir-se-á a presente análise apenas àquelas três primeiras previstas na Lei Federal nº 8.666/1993, sem prejuízo da abordagem dos demais casos em outros momentos.
Como os três tipos sugerem, unilateral é a rescisão promovida apenas por uma das partes da avença, sem a necessidade de anuência da outra; amigável é aquela em que ambos os contraentes anuem com o término da relação contratual; e, por fim, a judicial é a determinada pelo Poder Judiciário.
3. Dos procedimentos para rescisão
Os três tipos de rescisão em análise possuem diferentes formas de materialização. Por isso a importância de abordar, um a um, os procedimentos necessários para a concretização do término da avença.
Em recorte específico do espectro de análise, opta-se neste artigo por abordar a rescisão apenas dos contratos de prestação de serviços. Além de mais comuns na Administração Pública, são, por vezes, os mais carentes de informações e esclarecimentos que contribuam com o conhecimento da correta e adequada gestão de tais instrumentos, com o que se objetiva somar com o presente entendimento.
Antes, porém, e para melhor exame do tópico, há que se cindir a análise em duas partes: uma relativa à natureza e essencialidade dos serviços e outra relativa às hipóteses de rescisão propriamente ditas.
3.1. Da análise da natureza dos serviços contratados
No caso específico dos contratos de prestação de serviços firmados com particulares, verificam-se, a princípio, duas situações:
a) os serviços prestados podem ser interrompidos; ou
b) os serviços não podem ser interrompidos.
Em ambas as situações, o regramento legal fixa que os casos de rescisão contratual serão formalmente motivados nos autos do processo, assegurado o contraditório e a ampla defesa.[9]
3.1.1. Dos serviços que possibilitam a interrupção
Existem serviços contratados pela Administração que podem ser interrompidos por dado período de tempo. É o caso, por exemplo, da manutenção de equipamentos não críticos (ou de baixa criticidade) ou de aceiro e roçagem de determinada área de interesse do Poder Público.
Não há, aprioristicamente, prejuízo imediato ao ente contratante em virtude da interrupção destes serviços, podendo ser retomados em nova contratação mais adiante, seja por meio de licitação ou de contratação direta, conforme o caso, ou até mesmo cessados definitivamente.
Questão que se impõe é saber se, a partir do recebimento da intimação expedida pela Administração, o contratado deve interromper imediatamente os serviços.
Tal questão é de singular importância. Uma vez interrompidos, não geram a obrigatoriedade de contrapartida financeira pela Administração. Do contrário, prosseguindo no tempo, há necessidade de que o ente contratante remunere o particular, mesmo com o contrato em vias de rescisão, para evitar o enriquecimento ilícito por parte do Poder Público.
Não é por demais dizer que, se o contratado, após intimado da intenção de rescisão contratual com determinação de paralisação dos serviços, e, ainda assim, continuar a executar o contrato, responderá pelos atos que praticar, inclusive tendo que indenizar a Administração pelos prejuízos que causar, se for o caso.
3.1.2. Dos serviços que não possibilitam a interrupção
Há serviços contratados pelo Poder Público que não podem ser interrompidos. A paralisação da execução contratual, nestes casos, é capaz de causar grandes transtornos não só para o bom e regular funcionamento da máquina pública, mas também – e principalmente – para o administrado.
Em grande medida, devem ser considerados e incluídos aqui os serviços de natureza continuada, com os de limpeza e conservação ou de vigilância.
Nesse tipo de rescisão, em que não há paralisação dos serviços, os efeitos são os mesmos daqueles que, mesmo sendo possível interromper, mas a Administração assim não decide, deve o Poder Público continuar mantendo a contrapartida financeira fixada contratualmente, evitando o enriquecimento indevido à conta do particular.
3.2. Das hipóteses de rescisão propriamente ditas
Eis a análise mais pormenorizada – sem a pretensão de exaurir por completo o tema – acerca de cada uma das três hipóteses legais de rescisão previstas na Lei Federal nº 8.666/1993.
3.2.1. Da rescisão unilateral
A mais complexa das três formas de rescisão contratual é a unilateral.
A primeira ponderação que se deve fazer é a de que a rescisão unilateral é ato apenas da Administração contratante. Não há ato de rescisão unilateral de iniciativa do contratado, inclusive por total falta de amparo legal para tanto.
Dando início ao procedimento, após receber a descrição do fato, que motiva a rescisão, da área de fiscalização, gestão ou acompanhamento do contrato – de modo a restar devidamente comprovada a situação fática que dá azo à rescisão – a autoridade competente no âmbito do órgão ou entidade rescindenda, deve motivar o ato propositivo da rescisão e fazer constar tal ato do processo administrativo que tratará do assunto na repartição, podendo ser os mesmos autos que cuidam da contratação em si, sem a necessidade de autuação de processo apartado.[10]
Após a motivação do ato, deve-se expedir intimação ao contratado da intenção de rescisão, por meio de ofício, carta ou outro meio de comunicação idôneo,[11] desde que a ciência seja considerada inequívoca, para que o contratado possa exercer a ampla defesa e o contraditório quanto aos fatos a ele imputados.
Deve-se atentar para o disposto no art. 17 da Lei Federal nº 9.784/1999, no sentido de que inexistindo competência legal específica, o processo administrativo deverá ser iniciado perante a autoridade de menor grau hierárquico para decidir.
Este é o momento em que o juízo de conveniência e oportunidade da Administração deve ponderar os valores em risco para estabelecer, desde o início, se o particular deve ou não interromper os serviços. Uma vez interrompidos, não geram, a priori, o dever de pagamento por parte da Administração. Se não interrompidos, mantém-se o fluxo financeiro previsto no próprio instrumento rescindendo.
Apresentado o entendimento do particular no exercício da ampla defesa e do contraditório, que não possui forma definida em lei, a Administração tem dois caminhos possíveis:
a) rescindir definitivamente o contrato; ou
b) rever a intenção de rescindi-lo,[12] mantendo-o vigente.
Da decisão tomada pela Administração em face das duas hipóteses, deve-se novamente dar ciência ao particular, inclusive com a publicação do ato na imprensa oficial, em atendimento ao mandamento legal contido no art. 109, inciso I, alínea “e” c/c o §1º,[13] ambos da Lei Federal nº 8.666/1993.
Esta decisão pode ser materializada de diversas formas, mas não como ajuste lato sensu, em que ambas as partes assinam um termo de rescisão, posto que se trata de ato unilateral, integrado pela vontade de uma só das partes – in casu, a Administração –, ato este incompatível com a bilateralidade de um contrato. O princípio da simetria das formas, neste caso, não prevalece, pois para a celebração do contrato foi necessária a vontade de ambas as partes contratantes e, no desfazimento unilateral, apenas uma decide.
Registre-se que não faria mesmo sentido produzir, no caso de rescisão unilateral, um termo a ser assinado pelos contraentes, por diversas razões: a uma, o ato (e não o contrato) é unilateral, ou seja, expedido apenas por uma das partes, e a própria Lei assim o qualifica;[14] a duas, o particular pode se recusar a assinar, obstando a vontade administrativa; a três, em caso de recusa, o contrato administrativo poderia ser considerado vigente, posto que não teria havido a exteriorização de vontade favorável, pelo particular, de interrupção da avença, o que, uma vez mais, obsta a vontade administrativa de rescindir. Pode ser produzido apenas um ato administrativo, com observância a todos os elementos[15] que o compõem e que descreva de forma adequada a situação.
Neste mesmo ato, deve ser fixado o termo final da relação jurídico-contratual rescindenda, podendo, inclusive, ser diferido no tempo, para que haja tempo hábil à Administração para providenciar nova contratação.
Na primeira daquelas duas situações, abre-se a possibilidade de interposição de recurso administrativo ao particular,[16] sem, contudo, obstar a produção de efeitos da rescisão, haja vista que o referido recurso não possui efeito suspensivo.[17] Ainda neste caso, se os serviços tiverem sido interrompidos, não há que se falar em pagamentos pela prestação dos serviços; apenas de indenizar os prejuízos que o particular efetivamente comprovar. Se não foi paralisada a cadência contratual, deve a Administração remunerar o particular até o exato momento da rescisão contratual, ultimada com a comunicação do decisum administrativo ao contratado e da publicação do ato na imprensa oficial, sob pena de enriquecimento ilícito, vedado pelo ordenamento jurídico.[18] Sugere-se até que este ato de comunicação ao particular seja o encaminhamento, via carta, ofício ou outro meio idôneo, da publicação no Diário Oficial da decisão do Poder Público, inclusive para que seja possível contar, de forma inequívoca e após o recebimento do mencionado expediente pelo particular, o prazo para a interposição do recurso administrativo competente.
Na segunda situação, uma vez revista a intenção inicial de rescindir, redundando na preservação do contrato, há que se avaliar, do mesmo modo, se os serviços foram interrompidos ou não desde a intimação da vontade administrativa. Se não houve interrupção dos serviços, há apenas que se instruir adequadamente o processo administrativo que trata da avença e dar consecução a ele, efetuando-se os registros necessários e processando-se os pagamentos da forma como previsto em contrato.
Questão que não se pode olvidar diz respeito ao eventual silêncio da Administração na intimação dirigida ao particular quanto à necessidade de interrupção, ou não, dos serviços contratados.
Se os serviços não podem ser interrompidos, mesmo na omissão administrativa da intimação, estes não podem ser paralisados.
Naqueles contratos em que é possível interromper a execução, é de se entender, inclusive sob a ótica do contratado, que se a Administração não fez qualquer ressalva quanto à interrupção dos serviços, estes devem prosseguir no tempo, inclusive quanto à obrigatoriedade de pagamentos por parte do contratante.
Se os serviços, todavia, admitem interrupção e o particular faz cessar a execução contratual, não se devem realizar quaisquer pagamentos ao contratado, sob pena de enriquecimento ilícito por parte dele.
3.2.2. Da rescisão amigável
A rescisão amigável já possui tratamento diferenciado, pois, como o próprio nome sugere, há necessidade de que ambas as partes contratantes estejam de acordo com a finalização do ajuste feito anteriormente, reduzindo esta vontade a termo, com a ressalva de que, para que se concretize, deve haver conveniência para a Administração. Se não houver, não há que se falar em rescisão amigável.
O procedimento, neste caso, pode partir tanto do particular quanto do Poder Público, pelos meios mais variados. Pode-se, até numa reunião, decidir-se pela rescisão amigável de um contrato administrativo.
No termo a ser firmado, devem ser pactuadas todas as condições para interrupção da avença: pagamentos eventualmente ainda pendentes, o que pode, inclusive, incluir reajustes, repactuações ou reequilíbrios-econômicos financeiros stricto sensu, não concedidos; prazo para interrupção dos serviços, que inclusive pode ser diferida e alongada no tempo, de modo que haja tempo para a Administração providenciar a substituição do particular por outro, conforme a natureza e essencialidade dos serviços; indenizações devidas de parte a parte; quitação de obrigações, entre outros aspectos.
Desse tipo de rescisão não cabe sequer recurso administrativo, posto que não haveria sequer interesse recursal a nenhuma das partes para rever o ato.
3.2.3. Da rescisão judicial
A rescisão advinda de decisão judicial é, em tese e a princípio, a mais simples de ser tratada pela Administração, pois a vontade das partes, contratante e contratada, foi substituída pela vontade judicial, que determinará o modo e as condições de encerramento da avença.
Nesse sentido, apenas o caso concreto ditará a maneira correta de dar tratamento ao assunto.