O noticiário com detalhes de prontuários médicos de condenados pela justiça estimula reflexão sobre o quanto desejamos e qual a relevância dessas informações. A onda de indignação contra a corrupção não pode ser usada como senha de acesso para exposição da intimidade dos sentenciados. O fato de sociedades que se autoconsideram mais evoluídas romperem esses limites com frequência significa a constatação de erros e não, como se deseja aparentar, exemplos a serem repetidos. Na América do Norte e Europa, os responsáveis pelo vazamento e publicação de informações da vida privada têm respondido a seguidos processos pela violação de condutas profissionais e da legislação. As indenizações são pesadas. E se continuam fazendo é por conta da relação custo benefício. Os ganhos com a audiência recompensam as penas financeiras. E quando ocorre a prisão dos envolvidos no vazamento, isso retroalimenta a máquina de escândalos.
No Brasil não é assim, mesmo que a perícia médica judicial possa ser usada entre os argumentos de defesa.
No caso da prisão do deputado federal Paulo Maluf podemos identificar, do lado das fontes, a prática de crime e de delito administrativo; do lado da imprensa, descumprimento dos códigos de ética profissional e dos veículos de comunicação.
Quem deu acesso à imprensa dos laudos médicos do cidadão Paulo Maluf praticou crime ao descumprir o dever de guardar segredo por profissão. Esse é um dever de ofício, que inclui especialmente o sigilo médico. O dever de ofício ocorre quando se está investido de responsabilidades e, em especial no serviço público, ao constatar situações que possam comprometer a si mesmo ou a terceiros. Assim, é dever de ofício comunicar o fato aos responsáveis hierarquicamente superiores, evitando-se a omissão de comunicação. Quando isso ocorre, estamos diante da prevaricação, crime funcional praticado por funcionário público contra a Administração Pública. A prevaricação consiste em retardar, deixar de praticar ou praticar indevidamente ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
O responsável sobre essa possível prevaricação cometeu delito administrativo profissional. Médicos integram rol de profissões que têm o dever de guardar sigilo. O código profissional é claro: O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei. Mas: é vedado ao médico “Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Permanece essa proibição mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento. Na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal”.
O papel dos veículos de comunicação na exposição de Maluf tem caráter ético. As normas de jornalistas e dos jornais se abrigam num grande guarda-chuva chamado interesse público. Entretanto, ao se prestar atenção nas vedações podemos avaliar o que foi quebrado. Os meios de comunicação devem respeitar o direito de cada indivíduo à sua privacidade, salvo quando esse direito constituir obstáculo à informação de interesse público. E os repórteres têm por obrigação respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão; e não pode usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime; e nem publicar informações de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes.
Traduzindo, todos os fatos relacionados à prisão e às condições de saúde do deputado poderiam ser noticiados sem desrespeito à lei e à ética profissional. Reportar fatos é a arte de escolher sentidos adequados em palavras e sentenças sobre o que aconteceu, disse-me uma vez um veterano do jornalismo.
Portanto, o fato de alguém ser condenado pela justiça não lhe retira a condição de cidadão, mesmo que nos sintamos desrespeitados como tal por seus atos na vida pública. Aceitar isso não é retrocesso, mas avanço em nosso frágil contrato social.