I - O FATO
Consoante noticiou o jornal O Globo, em sua edição de 2 de fevereiro do corrente ano, A Polícia Federal (PF) deflagrou, na manhã do dia 01.02.2018, a Operação Pausare, que investiga suspeitas de fraudes no Postalis, o fundo de pensão dos Correios. Sob intervenção desde o ano passado, o fundo tem rombo estimado em R$ 6 bilhões. Foram cumpridos cerca de cem mandados de busca e apreensão em corretoras e nas casas de ex-executivos do Postalis e empresários. O ex-presidente do banco americano BNY Mellon no Brasil, José Carlos de Oliveira, teve a prisão preventiva decretada. Também foi quebrado sigilo bancário e fiscal de 48 pessoas, incluindo o presidente do BNDES, Paulo Rabello de Castro, e 50 empresas, algumas delas integrantes do mesmo grupo. A investigação, no entanto, não tem qualquer relação com o banco de fomento.
A PF apura a suposta prática de delitos envolvendo os administradores do fundo de pensão pelos diversos investimentos fracassados realizados nos últimos anos. O juiz Vallisney Oliveira, da 10ª Vara Federal do Distrito Federal, argumenta em sua decisão que eles geraram sucessivos déficits, comprometendo a capacidade de custeio dos planos de benefícios dos empregados dos Correios, levando-os a fazerem contribuições extraordinárias para cobrir o rombo.
A operação — em setembro de 2016, o Postalis já havia sido alvo da Greenfield— apoia-se em conclusões da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre os fundos de pensão, relatórios da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) e auditorias internas dos Correios. Ela está focada em três investimentos feitos pelo Postalis, que totalizaram R$ 523,2 milhões.
Entre esses investimentos está a aquisição de títulos privados e cotas de fundos de investimento e participações (FIP) de empresas cujos ativos passaram por avaliações econômico-financeiras irreais e tecnicamente irregulares. Uma das empresas que teriam avalizado esses aportes é a SR Rating, da qual Paulo Rabello é sócio licenciado
De acordo com a PF, dois fundos de investimento criados pelo Postalis foram usados de forma fraudulenta. Como seus estatutos previam a aplicação de 85% dos recursos em títulos da dívida brasileira emitidos no exterior, esses fundos recorriam a uma corretora para comprar os títulos lá fora.
Mas, em vez de repassar os títulos que comprava no mercado de capitais nos Estados Unidos diretamente para os fundos, a corretora os vendia por um valor “superfaturado” a empresas sediadas em paraísos fiscais (offshores).
Essas offshores, por sua vez, vendiam os mesmos títulos por valores ainda maiores aos fundos do Postalis. Assim, em um período de poucos dias, a aquisição era feita por preços até 60% maiores do que o real valor dos papéis, gerando prejuízos milionários ao fundo de pensão da estatal. Observe-se que as empresas offshores que superfaturavam os valores dos títulos vendidos aos fundos do Postalis eram todas ligadas aos indiciados.
Na edição do dia 3 de fevereiro, o Globo detalhou:
"As três operações avaliadas pela SR Rating são de emissões de Cédulas de Crédito Imobiliário (CCI), título usado como antecipação de recursos para investimentos no setor imobiliário. O objetivo era levantar recursos para empreendimentos da Mudar, criada em 2004 e focada no segmento econômico. Nos relatórios, a SR Rating usa duas classificações de risco: a escala global clássica, utilizada por agências internacionais como a S&P, e a escala de equivalência BR, nacional.
Nos três casos, as operações seriam feitas pela Mudar Master II Participações e foram classificadas nos relatórios iniciais com a nota BB+ (escala global), que, segundo o site da SR Rating, denota “garantias modestas e risco mediano”. Na escala de equivalência BR, a nota foi brA, que indica “qualidade de crédito satisfatória ou boa, no âmbito local e no prazo analisado; vulnerabilidade se torna significativa num cenário de mudanças bruscas”, segundo o site da empresa.
No entanto, nos pareceres iniciais, são usadas as expressões “padrão forte de garantias” ou “padrão adequado de garantias”. Segundo o relatório da primeira emissão de CCI (de R$ 50 milhões), em dezembro de 2011, o lastro seriam debêntures (títulos de dívida) emitidas pela Mudar SPE Master, constituída para este fim. A operação das debêntures também havia sido avaliada pela agência, em setembro de 2010, à qual havia sido dada a mesma nota inicial das três emissões de CCI.
Segundo a decisão do juiz Vallisney Oliveira, da 10º Vara Federal do Distrito Federal, que autorizou a operação da PF, as cédulas não teriam garantias reais. Há questionamento ainda do fato de as debêntures que serviriam de lastro à operação ser emitida por empresa do mesmo grupo."
II - A ENTIDADE DE PREVIDÊNCIA FECHADA
O caso envolve entidade de previdência privada fechada.
No que concerne à natureza jurídica das entidades de previdência fechada dir-se-á que elas, reguladas que eram pela Lei nª 6.435, não quando não adotarem a forma de fundações, serão associações regidas pela normas do Código Civil referentes aos contratos da sociedade, submetendo-se, quanto à extinção, às normas do mesmo diploma legal. A matéria hoje está disciplinada pela Lei Complementar 109, de 29 de maio de 2001, que determina que as entidades fechadas organizar-se-ão sob forma de fundação ou sociedade civil, sem fins lucrativos (artigo 31, § 1º).
Art. 31. As entidades fechadas são aquelas acessíveis, na forma regulamentada pelo órgão regulador e fiscalizador, exclusivamente:
I - aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas e aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entes denominados patrocinadores; e
II - aos associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, denominadas instituidores.
Sendo assim, dispôs a lei que o regime de previdência complementar é operado por entidades de previdência complementar que têm por objetivo principal instituir e executar planos de benefícios de caráter previdenciário (artigo 2º).
É um quadro triste onde a péssima administração levou a conta para o empregado, beneficiário do fundo previdenciário.71.154 trabalhadores ativos dos Correios precisarão tirar dinheiro do bolso para cobrir um deficit atuarial de R$ 5,6 bilhões no fundo de pensão dos empregados da estatal, o Instituto de Seguridade Social dos Correios e Telégrafos (Postalis). Isso é injusto.
O regime de previdência complementar é operado por entidades de previdência complementar que têm por objetivo principal instituir e executar planos de benefícios de caráter previdenciário (artigo 2º).
Mas vem a pergunta: Como ficam as obrigações para com os participantes, que teriam que pagar por esse ilícito noticiado?
Sabe-se que alguns dos benefícios instituídos pelos planos de previdência privada, de natureza complementar, visam a cobrir as consequências de riscos que pesam sobre os participantes, assim considerados eventos danos que independem de sua vontade, como a invalidez (total ou parcial) e ainda a doença ou morte. Ora, nesses casos, como bem lecionou Fábio Konder Comparato (Direito Empresarial, 1990, pág. 254), a obrigação assumida pela entidade de previdência privada para com os participantes ou beneficiários constitui uma obrigação de garantia. Diria mais: essa obrigação existe ainda com relação às aposentadorias por tempo de serviço concedidas.
A noção de obrigação de garantia, que se soma às conhecidas obrigações de meio e de resultado, estudadas por Demogue, tem origem na opinião manifestada por André Tunc, em seu Traité Théorique et pratique de la responsabilité civile, délictuelle et contractuelle, 5ª edição, dos irmãos Mazaud, e consiste num espécie de terceiro gênero de obrigações.
A prestação devida, nas obrigações de garantia, não se cinge ao pagamento de indenização, na hipótese de realização do risco. Ela compreende ainda dar ao credor uma situação de segurança ou tranquilidade, que pode apresentar um valor econômico relevante. É o caso da garantia da pensão em caso de morte que dá ao trabalhador a segurança de que seu desaparecimento não deixará a família ao desamparo.
Haverá mudança no regime de prestação pecuniária por parte dos beneficiários por conta desses ilícitos havidos? Aplica-se o princípio geral da manutenção da condição mais benéfica ao trabalhador. Esse princípio geral determina que “nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade de cláusula infringente desta garantia”.
Assim, não é justo que o trabalhador arque com seus salários com um reforço de contribuição por fato que foi consequência de uma administração desastrosa da empresa que instituiu o fundo de pensão. Aliás, ela que deve pagar essa conta e depois ser ressarcida pelos dirigentes responsáveis pelos danos. Vem a pergunta: É preferível quebrar a entidade de previdência social do que o trabalhador ter de se sacrificar perdendo parte do salário? Ora, há uma obrigação de garantia da entidade mantenedora para com os empregados da empresa. Essa obrigação de garantia não pode ser transferida para os próprios beneficiários dela, por óbvio.
Há uma gestão fraudulenta de entidade de previdência privada, fato que se caracteriza como crime contra a economia popular. Há um complexo de interesses econômicos lesados, uma vez que várias pessoas lá deixaram seu patrimônio objetivando usufruir direitos.
A gestão fraudulenta caracteriza-se pela ilicitude dos atos praticados pelos responsáveis pela gestão empresarial, exteriorizada por manobras ardilosas e pela prática consciente de fraudes.
A Lei 1.521/51 (Economia Popular); preceitua no artigo 3º, IX, da referida Lei “gerir fraudulenta ou temerariamente bancos ou estabelecimentos bancários, ou de capitalização; sociedade de seguros, pecúlios ou pensões vitalícias, sociedades para empréstimos...”.
Gerir significa administrar, gerenciar, dirigir. Sujeito ativo do crime é o administrador dessa sociedade. O elemento subjetivo é o dolo.
Nucci entende que não se trata de crime habitual próprio. Este delito se caracteriza pela prática de vários atos que somente em conjunto têm potencial para lesar o bem jurídico tutelado. Uma única ação do administrador, desde que envolta pela fraude (ou elevado risco), pode ser suficiente para prejudicar seriamente a saúde financeira da instituição (Nucci, Guilherme de Souza. Leis penais e processais penais comentadas. 3. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 1049).
O objeto material pode ser todo o instrumento utilizado pelo administrador para promover a gestão fraudulenta (documento falsificado; contrato indevidamente lavrado; dinheiro irregularmente transferido). Os objetos jurídicos são a credibilidade do mercado financeiro e a proteção ao investidor.
A Lei 7.492, de 16 de junho de 1986, disciplina, em seu artigo 4º, o crime de gestão fraudulenta de instituição financeira. Para tanto, comina pena in abstrato de 3 (três) a 12(doze) anos de reclusão e multa.
A gestão fraudulenta de uma instituição financeira é todo ato de direção, administração ou gerência, voluntariamente consciente, que traduz manobras ilícitas, com empregos de fraudes, enganos.
Podem cometer tal crime o controlador e os administradores, considerados dessa forma os gerentes e administradores da instituição financeira.
O crime é formal, pois se consuma com a mera gestão sem depender da verificação do resultado material.
Bem disse a Ministra Laurita Vaz, em julgamento do Recurso Especial 1.015.971/PR, DJe de 3 de abril de 2012, que o crime de gestão fraudulenta é classificado como crime formal e visa tutelar a credibilidade do mercado e a proteção do investidor, buscando-se a estabilidade e a higidez do Sistema Financeiro Nacional, para cumprir a finalidade de "promover o desenvolvimento equilibrado do País, e a servir aos interesses da coletividade" (artigo 192 da Constituição Federal).
Aliás, no tipo penal discutido, eventuais prejuízos às instituições financeiras não são relevantes para a adequação típica.
O crime de gestão fraudulenta é de mão própria e, pois, somente pode ser cometido por quem tenha poder de direção da instituição financeira.
A gestão fraudulenta em instituição financeira é recurso a qualquer tipo de ardil, astúcia no intuito de dissimular o real objetivo de um ato ou negócio com que se busca ludibriar as autoridades monetárias ou mesmo aquelas com quem mantêm relação jurídica, como correntistas, investidores, poupadores.
A gestão fraudulenta é tida como crime que serve para ocultar um outro crime, ou ainda um ilícito administrativo.
O crime de gestão fraudulenta serve à ocultação de um empréstimo vedado.
Diverso do crime de administração fraudulenta é o delito penal de gestão temerária.A gestão temerária é observada pela impetuosidade com que são conduzidos os negócios, o que leva ao aumento do risco de que todas as atividades empresariais terminem por causar prejuízos a terceiros, ou por malversar o dinheiro empregado na sociedade infratora. Tal é o que assevera Paschoal Mantecca, em Crimes contra a economia popular e sua repressão, 1985, pág. 41.O crime de gestão temerária, por sua vez, exigindo uma conduta dolosa, tem pena in abstrato prevista de 2 (dois) anos a 8 (oito) anos de reclusão e multa.
Tal crime é de mera conduta.
Esse delito deve ser enquadrado como crime de colarinho branco, inserido na Lei 7.492.O Postalis fundo de pensão, capta e administra recursos de seus associados, destinados a pagamento de benefícios previdenciários , equiparando-se, de forma induvidosa, às instituições financeiras para efeito de incidência da Lei 7.402/86, sendo irrelevante o fato de ser fechada e estar sob a fiscalização do Sistema Nacional de Seguros Privados.
Como crime de colarinho branco deve ser objeto de instrução e julgamento pela Justiça Federal.
No HC 33.674/SP, o Superior Tribunal de Justiça decidiu :
1. Instituição financeira, para os fins da Lei nº 7.492/86, é toda e qualquer pessoa jurídica de direito público ou privado, que, como atividade principal ou acessória, custodie, emita, distribua, negocie, intermedeie, ou administre valores mobiliários, ou capte, intermedeie, ou aplique recursos financeiros de terceiros, a ela se equiparando a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança ou recursos de terceiros, e a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas, ainda que de forma eventual.
2. O que caracteriza, para os fins da Lei nº 7.492/86, a instituição financeira, de natureza pública ou privada, é, essencialmente, que a sua atividade, principal ou acessória, tenha por objeto valores mobiliários ou recursos financeiros, por ela, sensu lato, captados ou administrados.
3. A entidade fechada de previdência privada, que capta e administra recursos destinados ao pagamento de benefícios de seus associados, equipara-se a instituição financeira para fins de incidência da Lei nº 7.492/86.
4. O fato de estatuir a Lei nº 4.565/64, na letra de seu artigo 25, com a redação que lhe foi atribuída pela Lei nº 5.710, de 7 de outubro de 1971, que "as instituições financeiras privadas, exceto as cooperativas de crédito, constituir-se-ão unicamente sob a forma de sociedade anônima", em nada repercute nos tipos penais elencados na Lei nº 7.492/86, que lhe é posterior e, para os seus fins, definiu as instituições financeiras e indicou-lhes as equiparadas.
5. Quando se negue que a entidade fechada de previdência privada não participa da natureza das instituições de seguro, a disposição inserta no inciso I do parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 7.492/86 requisita, pela sua própria letra, o emprego da interpretação analógica intra legem, enquanto faz equiparada à instituição financeira toda pessoa jurídica que, "capte ou administre" "recursos de terceiros", se análoga a "pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança", hipótese em que se enquadra a AEROS-Fundo de Pensão Multipatrocinado.
6. Desse modo, por força de natureza ou pela equiparação levada a cabo pela Lei 7.492/86 (artigo 1º, parágrafo único, inciso I, parte final), não há falar, relativamente às entidades fechadas de previdência complementar, na sua não recepção, nem na sua revogação pela Constituição Federal de 1988, à luz, respectivamente, da redação original do inciso II do seu artigo 192 ou da redação que lhe atribuiu a Emenda Constitucional nº 13, de 22 de agosto de 1996, que referiram, distintamente, estabelecimentos de seguro e de previdência entre outros, por incluído este último, estabelecimento de previdência, evidentemente, na disposição genérica da última parte do inciso I do parágrafo único do artigo 1º da Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional.
7. A Emenda Constitucional nº 40/2003 - que reduziu as disposições referentes ao Sistema Financeiro Nacional ao que era o caput do artigo 192, com ligeiras modificações, suprimindo-lhe todos os demais incisos, com remessa da sua disciplina à lei complementar, e a Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001 - que dispõe sobre o Regime de Previdência Complementar e dá outras providências, em nada repercutiram na Lei nº 7.492/86.
8. É que a decisão política de envio das entidades fechadas de previdência complementar do capítulo próprio do Sistema Financeiro Nacional para o capítulo da Seguridade Social não fez as entidades fechadas de previdência complementar estranhas à instituição financeira, nem as tornou independentes do Sistema Financeiro Nacional, como resulta do disposto nos artigos 192 da Constituição Federal e 3º, inciso II, e 31, parágrafo 2º, inciso I, da Lei Complementar nº 109, de 21 de maio de 2001.
9. É da competência da Justiça Federal o julgamento dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, tipificados na Lei nº 7.492/86.