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Direito ao esquecimento: genuíno mecanismo de proteção à dignidade humana ou escamoteado instrumento de violação às liberdades comunicativas?

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21/03/2018 às 15:10
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2 CASOS CÉLEBRES NO BRASIL ENVOLVENDO O DIREITO AO ESQUECIMENTO

2.1 O “Caso Chacina da Candelária”[39]

No dia 28 de maio de 2013, a 4ª Turma do STJ, ao apreciar o REsp nº 1.334-097-RJ, cuja relatoria coube ao eminente Ministro Luís Felipe Salomão, teve a oportunidade de se manifestar a respeito do reconhecimento ou não do direito ao esquecimento invocado por um indivíduo.

Em linhas gerais, o episódio, acontecido na madrugada do dia 23 de julho de 1993 e que ficou negativamente eternizado na História brasileira, tratou de uma barbárie praticada por policias militares que, à paisana, e a pretexto de levar comida para os 72 meninos e meninas de rua que se encontravam dormindo sob as marquises dos prédios da região próxima à Igreja da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro, os executaram friamente a tiros de fuzil – supostamente como vingança em razão de alguns menores terem apedrejado uma viatura policial no dia anterior. Do ocorrido, oito menores, com idades entre 10 e 17 anos foram assassinados, além de muitos outros terem se ferido gravemente.[40]

Pelo fato, determinado homem foi denunciado pela suposta participação no acontecimento e veio, ao final do processo, a ser absolvido criminalmente por unanimidade[41] pelo Tribunal do Júri.

Ocorre que, 13 anos após ter sido absolvido, a Rede Globo de televisão, por meio do programa “Linha Direta Justiça”, exibiu um especial, cuja finalidade foi a de contar como ocorreu o fatídico episódio, mediante uma reconstituição dos fatos. E para tanto, apontou o nome daquele indivíduo – anteriormente absolvido – como uma das pessoas envolvidas no massacre – cabendo consignar que, inclusive, constou da matéria jornalística a informação de que ele fora absolvido na Justiça pelo fato tratado no programa.

Este homem, então, resolveu por bem ajuizar uma ação indenizatória, baseando sua pretensão na invocação de um direito a ser esquecido, dado que já tinha sido processado criminalmente pelo fato, tendo, inclusive, sido unanimemente absolvido pelo Conselho de Sentença. Dentre outros pontos, argumentou que trazer à tona para a sociedade um fato já consolidado não só no tempo, mas também na Justiça, causou-lhe sofrimento e vergonha perante seus pares – o que o obrigou, até, a abandonar a comunidade em que morava para preservar a sua segurança e a de seus familiares.

Em 1ª instância, seu pedido foi julgado improcedente; mas foi reformado, após, pelo TJ/RJ, que condenou a Globo ao pagamento de indenização por danos morais ao autor da ação, no valor de R$ 50.000,00 – o que foi mantido pelo STJ após a interposição do Recurso Especial nº 1.334.097.

Ao deliberar sobre a causa e ponderar a liberdade de informação em face dos direitos da personalidade, o STJ decidiu em favor destes. Asseverou que, neste caso específico, a matéria jornalística poderia ter retratado fidedignamente o ocorrido sem a necessidade de levar ao público o nome e a imagem do autor da ação, que, repise-se, fora absolvido. E sobre a circunstância alegada em defesa pela Globo, de que se preocupou em fazer presente, no programa, a informação da absolvição criminal do autor do fato, a Corte Superior entendeu que, apesar disso, a reportagem não contribuiu para afirmar sua condição de inocentado, mas sim para reacender na sociedade a pecha de indiciado.

Também, o relator do julgado assentou que se aqueles que foram condenados e que cumpriram pena possuem direito ao sigilo de seus registros criminais – funcionando, como já demonstrado, como um direito ao esquecimento do ofensor –, muito mais natural é conceber o reconhecimento deste mesmo direito a quem foi absolvido. Neste ponto, portanto, o STJ deliberou que o direito ao esquecimento irmana-se com um “direito à esperança”, compatível com as presunções legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.

A propósito do esquecimento reconhecido ao presente caso em sede criminal, convém colacionar a opinião de Carnelutti:

(...) as pessoas creem que o processo penal termina com a condenação, e não é verdade; as pessoas creem que a pena termina com a saída do cárcere, e não é verdade. A pena, se não mesmo sempre, nove vezes em dez não termina nunca. Quem em pecado está é perdido. Cristo perdoa, mas os homens não.[42]

Por oportuno, é preciso deixar aqui registrado que o presente caso encontra-se em via de ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, haja vista a interposição do Agravo em Recurso Extraordinário nº 789.246 em face da decisão proferida pelo STJ.[43]

2.2 O “Caso Aída Curi” [44]

Curiosamente, no mesmo dia em que a 4ª Turma do STJ deliberou a respeito do direito ao esquecimento em relação ao caso “Chacina da Candelária” – 28 de maio de 2013 –, foi-lhe posta à apreciação uma outra situação em que também se invocou tal direito.

Em linhas genéricas, o mesmo programa da Rede Globo, “Linha Direta Justiça”, exibiu, quase 50 anos depois, uma reportagem especial narrando como Aída Curi foi violentada e assassinada no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, nos idos de 1958, em episódio em que três indivíduos figuraram como autores dos fatos.[45]

Para tanto, realizou uma reconstituição dos acontecimentos, em que, além de exibir imagens reais da época, divulgou a todo o momento o nome da vítima, qual seja, Aída Curi – o que levou seus irmãos a ajuizarem uma ação de reparação por danos morais, ao argumento de que a exibição do prograva reavivou na família toda a dor e sofrimento experimentados no trágico episódio.[46]

Todavia, o pedido foi julgado improcedente em 1ª instância e assim foi mantido pelo TJ/RJ. Da mesma forma, interposto o REsp nº 1.335-153, o STJ, por maioria (nos termos do voto do Relator, Min. Luís Felipe Salomão), negou provimento ao recurso, sustentando que, neste caso concreto, a liberdade de imprensa é quem deveria prevalecer, em detrimento do direito ao esquecimento invocado pelos familiares da vítima.

Como razão de decidir, a Corte realizou a ponderação, utilizando-se como critérios: a historicidade do episódio e a ausência de contemporaneidade da notícia dos fatos.

Pelo primeiro critério, o STJ aduziu que, infelizmente e por obra do destino, seria impossível à imprensa noticiar o ocorrido, sem, nessariamente, mencionar o nome da vítima, dada a repercussão nacional que o caso apresentou. Isto é, o nome Aída Curi, afirmou a Corte, se sedimentou na História desde então como elemento indissociável de toda e qualquer narrativa a respeito do episódio – tal qual inviável se torna falar em casos Vladimir Herzog e Dorothy Stang, sem ter de mencioná-los.

No tocante ao segundo, expôs o STJ que o programa foi exibido quase 50 anos depois dos fatos, relembrança tal que, no entender da Corte, anos depois, não seria idônea a causar aos familiares o mesmo abalo de antes; mas tão somente, um infeliz desconforto, insuficiente a lhes gerar o direito de serem reparados moralmente pela Globo em virtude da matéria jornalística.

Como se observou, este caso concreto apresentou especificidades que não se fizeram presentes naqueloutro. Logo, apesar da existência de um mesmo pano de fundo, os resultados que advieram de cada qual foram distintos – espelhando a compreensão de que a solução para estes casos não pode ser formulada aprioristicamente, mas, sim, por meio da ponderação, balanceando-se os interesses colocados um em face do outro.[47]

Vale registrar que este caso será novamente analisado pelo Judiciário brasileiro. Desta vez, o STF é quem, derradeiramente, se pronunciará sobre o reconhecimento ou não do direito ao esquecimento em favor dos familiares de Aída Curi, tendo em vista, que, da decisão exarada pelo STJ, foi interposto Agravo em Recurso Extraordinário nº 833.248, convindo anotar que a Suprema Corte inclusive já reconheceu a existência de repercussão geral da matéria.[48]

2.3 O “Caso Xuxa”

Caso também emblemático envolveu a conhecida apresentadora de televisão Xuxa Meneguel, que, no ano de 1982, no início de sua carreira, participou de um filme em que interpretou o papel de uma prostituta, contracenando, nua, com um garoto de doze anos de idade.

Contrariada com a profusão, pela Internet, de imagens e vídeos que mostravam – e ainda mostram! – a participação da artista naquela película, requereu em juízo que a famosa provedora de pesquisas Google ficasse impedida de disponibilizar quaisquer resultados a ela ofensivos (como imagens e textos pornográficos, além de montagens digitais) quando digitados em seu campo de buscas os designativos que associassem seu nome aos termos “Xuxa pedófila” ou assemelhados.

Liminarmente, o juízo da 1ª Vara Cível do Foro Regional da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, concedeu a antecipação de tutela requerida – a qual veio, após, a ser parcialmente reformada pela 19ª Câmara Cível do TJ/RJ, que restringiu a liminar concedida em favor de Xuxa determinando que o Google somente se abstivesse de exibir os referidos resultados de buscas relativos a apenas determinadas imagens apresentadas nos autos do processo.[49]

Todavia, em sede recursal, a 3ª Turma do STJ, de forma unânime e seguindo integralmente o voto proferido pela Min. Relatora Nancy Andrighi, ao julgar o REsp nº 1.316.921-RJ[50], cassou a decisão liminar que antecedeu os efeitos da tutela requerida pela apresentadora.

Argumentou a Corte, com base no voto da Min. Relatora, que, apesar de gratuito, o serviço que o Google presta aos seus usuários se insere num contexto de verdadeira relação de consumo (por lhe proporcionar uma remuneração indireta, com base no que aufere das empresas que lhe patrocinam para que gozem de posição privilegiada nas buscas). Neste contexto, não haveria, então, que se falar em defeito do serviço, nos termos do art. 14 do CDC[51], ao se imaginar que a famosa provedora de pesquisas não dispõe de meios técnicos para levar a efeito um controle prévio das informações que são, a cada segundo, depositadas na Rede Mundial de Computadores. Caso assim se entendesse, aduziu, se estaria a malferir os direitos de liberdade de expressão assegurados pela Constituição.

Ademais, o STJ sustentou que não caberia ao Google ser responsabilizado civilmente pela disseminação na Internet de todo o conteúdo ofensivo descrito por Xuxa, uma vez que, na qualidade de mero provedor de pesquisas, apenas facilita aos usuários o caminho para que eles encontrem conteúdo que terceiros inseriram na Rede, veiculam e hospedam.

Como afirmado pelos advogados da empresa, responsabilizá-la por apenas indexar informações que somente chegaram ao mundo virtual por meio de terceiros, seria o mesmo que atacar o índice de uma biblioteca, por discordar dos livros que guarda consigo – “o índice poderia ser suprimido, mas os livros continuariam lá”.[52]

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Para a Relatora, haveria, sim, responsabilização civil. Mas se, e somente se, fosse identificado o verdadeiro responsável por veicular no meio virtual as referidas informações, já que o Google, aqui, funciona como mero intermediário, facilitador entre o caminho percorrido entre o usuário e o conteúdo pretendido.

Xuxa ainda tentou, por útlimo, obter do STF uma medida liminar que afastasse o quanto decidido pelo STJ e restabelecesse a restrição aplicada pelo TJ/RJ ao Google, ainda que parcial, dos resultados a ela ofensivos em suas buscas online pelos usuários.[53]

Todavia, a Medida Cautelar em Reclamação nº 15.955-RJ por ela apresentada sequer teve seu mérito examinado, uma vez que o Min. Relator do feito, Celso de Mello, negou seguimento, de plano, à Reclamação, por entender não ter havido qualquer violação à cláusula de reserva de plenário pela 3ª Turma do STJ ao afastar a aplicação de multa cominatória – prevista no art. 461, §4º do CPC[54] – à Google, que fora reconhecida pela 19ª Câmara Cível do TJ/RJ em favor da Xuxa.

(...) tenho-a (a pretensão reclamatória) por inacolhível, eis que não verifico, na decisão de que ora se reclama, a existência de qualquer juízo, ostensivo ou disfarçado, de inconstitucionalidade das normas legais apreciadas pelo órgão judiciário reclamado.[55]

Desta feita, então, manteve-se integralmente a decisão proferida pelo STJ, que negou à apresentadora o reconhecimento ao seu direito de ser esquecida, em que pese em momento algum ter sido esta a causa de pedir invocada por Xuxa em sua defesa ou mesmo considerada pelos julgadores em qualquer das instâncias.

Contudo, como já se demonstrou, toda e qualquer tentativa de se limitar a exposição de alguma informação em razão do decurso do tempo é uma forma de sua manifestação.[56]

A crítica que se pode tecer ao julgamento, com todas as vênias, é que as peculiaridades de tratamento do direito ao esquecimento não foram consideradas.

Os Tribunais, em todas as instâncias, apegaram-se mais ao âmbito da responsabilidade civil dos provedores de Internet com base no CDC, como forma de conferir, em detrimento da honra da Xuxa, prevalência à liberdade de expressão dos navegantes da Rede em nela inserir conteúdo a respeito daquela figura pública, do que, propriamente, à análise do direito ao esquecimento, que, como se verificou, é autônomo dos demais direitos da personalidade “clássicos” e exige tratamento diverso.

Com efeito, e como se procurará expor adiante, o desejável era que todas as deliberações a respeito do caso fossem orientadas por parâmetros de ponderação específicos quando da análise do direito ao esquecimento – e não somente por aqueles clássicos que se prestam a solucionar máculas da honra, mormente o critério de se tratar de pessoa pública, que já não é, hoje, mais tão prestigiado como outrora o foi.[57]

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Sobre o autor
Sérgio da Silva Ferreira

Advogado; Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes – UCAM; Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes – UCAM.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Sérgio Silva. Direito ao esquecimento: genuíno mecanismo de proteção à dignidade humana ou escamoteado instrumento de violação às liberdades comunicativas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5376, 21 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64284. Acesso em: 18 abr. 2024.

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