É preciso discutir o que de fato é cidadania e o que representam os direitos civis, políticos e sociais. A definição utilizada nesse artigo será a teoria do clássico autor britânico T. H. Marshall, apresentada em sua obra “Cidadania, classe social e status”. Para o autor, cidadania corresponde à conquista de três direitos: o civil, o político e o social. O direito civil diz respeito basicamente à liberdade individual: liberdade de ir e vir, de pensamento, de fé, de imprensa, de fechar contratos legais, igualdade perante a lei e direito à justiça, direito ao próprio corpo e direito à propriedade privada. Deve-se entender o direito político como a possibilidade de participar do exercício do poder político, candidatar-se, votar e ser votado, criar e filiar-se a partidos políticos, participar de movimentos sociais, entre outros. Por último, os direitos sociais dizem respeito ao atendimento das necessidades básicas de um ser humano que garanta o mínimo de bem-estar, e que ele leve a vida de um ser civilizado. Por exemplo, direito à alimentação, à moradia, à educação, à saúde, a um salário digno. (MARSHALL, 1967. p.63).
Estes três direitos não surgiram do nada, bem como não foram predeterminados por alguém. Existe uma cronologia racional para o surgimento deles. Há toda uma mudança do cenário social de uma época que é primordial para o surgimento da cidadania. Marshall então analisa como ocorreu o desenvolvimento e aprimoramento da cidadania no estudo do caso da Inglaterra, e apresenta uma sequência lógica para essa evolução.
Verifica-se que houve, primeiramente, uma separação das instituições que asseguravam os direitos civis, sociais e políticos. Nos velhos tempos, os direitos eram confundidos justamente pela ligação entre as organizações, já que elas desempenhavam várias funções. Uma única casa do Estado assumia papel de assembleia legislativa, conselhos governamentais, entre outros. Quando houve o desligamento das instituições que cuidavam dos direitos fundamentais à cidadania, foi possível que cada direito se desenvolvesse seguindo seu próprio curso e, na medida em que fosse necessária, cada um em seu próprio tempo. Por exemplo, surge o Parlamento para os legisladores, os Tribunais de Justiça para juízes e advogados, e as diversas instituições que asseguram os direitos sociais para toda a sociedade. (MARSHALL, 1967. Pp.64-66).
Feita essa separação institucional, é possível até identificar em qual período os direitos começaram a moldar sua forma de fato. Observa-se o caso da Inglaterra. No século XVIII, surgiram os direitos civis primeiramente. Lá, no século XVII, todos os homens já eram livres. Talvez seja um pouco lógico o porquê disso, mas o direito que assegura a liberdade ao cidadão e adiciona algumas características à sua vida civil, como a liberdade de imprensa e a liberdade de escolha comercial vai ser o primeiro a surgir. (MARSHALL, 1967)
Uma vez que o homem participa da vida econômica de sua cidade ou Estado, ele irá querer gozar também de direitos políticos e participar da esfera pública. No século XIX, era necessário enriquecer o status de cidadão com novos direitos e deveres e organizar a vida civil. Surge, então, o direito político, que permitia que o trabalhador se organizasse em sindicatos, partidos políticos e fosse eleito. A priori, os direitos políticos eram restritos a grupos fechados da elite, mas ao longo do tempo esse monopólio foi quebrado e a participação de todos na vida pública foi possível com o sufrágio universal em 1918. O direito ao voto deixa de limitar a atividade política às classes economicamente desenvolvidas e passa a ser para todos. Mais uma conquista dos cidadãos. (MARSHALL, 1967.Pp.69-70).
Os direitos sociais surgem por volta do século XX. Houve a necessidade da criação na Inglaterra de um “salário mínimo” (Poor Law em 1834) para assegurar o sustento básico das famílias inglesas. Logo esse sistema entra em colapso, mas o autor coloca em destaque a necessidade do respaldo social que a população deve ter em meio às transformações do cenário familiar, e principalmente do trabalho industrial, pouco regulado e que muitas vezes feria a dignidade do cidadão, homem ou mulher, jovem ou adulto. No âmbito social, ganha destaque a questão da educação. Ela interfere diretamente no cumprimento dos demais direitos, mesmo sendo o social o último a surgir. Quando é garantido pelo Estado que todas as crianças terão educação, tem-se noção do papel da cidadania e de que estão sendo moldados adultos em potencial que futuramente participarão da vida na sociedade. A educação é necessária para assegurar a liberdade civil, da mesma maneira que e a democracia política necessita de um eleitorado educado. A educação é tida como condição de existência para a discussão dos demais direitos. (MARSHALL, 1967. Pp.71-73).
A sequência lógica e histórica da formação dos direitos, primeiramente o civil, depois político e em seguida o social não foi seguido em totalidade pelos demais países em que a cidadania foi desenvolvida. Há caminhos diferentes seguidos por outras nações para alcançar a cidadania além do adotado na Inglaterra. Um exemplo disto é o Brasil. Aqui, primeiramente, foi desenvolvido o direito social, depois o político e, finalmente, o civil. Compara-se então o resultado alcançado por esse percurso alternativo. A maior importância dada ao direito social reflete, hoje, na diferença, por exemplo, se comparado um cidadão brasileiro a um cidadão inglês. É simples verificar que, no Brasil, um homem pobre e negro será julgado de forma diferente por um tribunal se cometer o mesmo crime que um homem branco e rico. O velho ditado “um peso e duas medidas” pode ser muito bem aplicado quando é verificado que existem “tipos” de cidadãos no Brasil, o que dificilmente ocorreria na Inglaterra. (MARSHALL, 1967).
O autor José Murilo de Carvalho, em sua obra “Cidadania no Brasil. O longo caminho”, ilustra a questão da consolidação – ou não – da cidadania e da inversão da pirâmide dos direitos citada acima. Em 1985, após o regime militar, houve uma movimentação para a reconstrução da democracia no Brasil e, como consequência, o desenvolvimento da cidadania. Acreditava-se que a redemocratização das instituições seria a responsável pela felicidade nacional. De fato surgiram louváveis consequências desse novo sistema político. Passou-se a ter manifestações livres de pensamento, organização sindical livre, o direito ao voto era difundido como nunca antes, votação direta para presidente, governadores e prefeitos. No entanto, não se garantiu verdadeiramente liberdade, participação política, segurança, emprego, entre outros. (CARVALHO, 2002. p.7).
Problemas centrais como desemprego, analfabetismo, violência urbana, serviços de saneamento e saúde inadequados, má qualidade na educação, etc., existiam e ainda existem. Problemas que não tinham solução ou se agravavam. Se melhoraram, foi em um ritmo lento e insatisfatório. Como consequência direta há o desgaste das instituições democráticas, como as eleições, o congresso, e a perda de confiança dos cidadãos nelas. A falta de perspectiva de melhorias significativas para esses cenários em curto prazo pode ser preocupante, pois em médio prazo podem surgir soluções que sejam contrárias a todo avanço já conquistado com a nova democracia. Liberdade e participação não garantem necessariamente soluções aos problemas sociais. (CARVALHO, 2002. p.8).
Para Carvalho, o cidadão pleno é aquele que irá usufruir dos três direitos já enunciados. É possível que haja direitos civis sem a consolidação dos direitos políticos, mas não o contrário. Caso isso se concretize, os direitos políticos vão apenas justificar um governo e não representar a vontade dos cidadãos. Outro ponto importante é que o concreto cumprimento dos direitos sociais vai estar submetido a uma eficiente máquina administrativa, representada pelo poder Executivo. Se não houver a consolidação dos outros direitos antes da concretização dos direitos sociais, a sua aplicação pode ser arbitrária. Visto isso, o modelo histórico de cidadania Inglês, apresentado por Marshall, servirá apenas de comparação de contraste para o modelo brasileiro. Duas diferenças são significativas entre eles. A primeira é que há uma inversão da sequência lógica de consolidação dos direitos. O direito social é manifestado antes dos outros. E a segunda diferença é que há maior valorização aos direitos sociais que aos demais. (CARVALHO, 2002. Pp.9-12). Dito isso, serão relacionados a questão da consolidação dos direitos com os períodos antes, durante e depois do regime militar.
Os direitos sociais vão ser consolidados, no Brasil, principalmente durante a governança autoritária de um ditador populista: Getúlio Vargas. Esses direitos serão implementados durante um período de supressão dos direitos políticos e civis. (CARVALHO, 2002. p.219). O governo Varguista dedicou grande atenção às causas trabalhistas. Essa exacerbada preocupação de Getúlio Vargas com a família e o trabalho é fruto da influência positivista comtiana. Em 1943 promulgava-se uma vasta legislação que acabou por consolidar as leis do trabalho (CLT). A elaboração teve pouca participação ou, até mesmo, nenhuma participação política. Foi um período também de precária vigência de direitos civis. (CARVALHO, 2002. p.110.). A grande herança do governo varguista é a distribuição de benefícios sociais por cooptação de categorias de trabalhadores. Os benefícios sociais eram concedidos após barganha por parte da população, geralmente organizada em sindicatos e grupos específicos de trabalhadores para garantir seus direitos e privilégios. O amparo não era tratado como direito de todos, mas como fruto de uma negociação de cada grupo com o governo. (CARVALHO, 2002. p.223).
Os direitos políticos vieram de maneira bizarra, como diz Carvalho. O período em que mais houve a expansão do direito ao voto foi, justamente, durante um governo ditatorial. O congresso foi mantido aberto na maior parte do regime. No entanto, os órgãos de representação política eram transformados em peça decorativa do regime que ditava as regras do jogo político. (CARVALHO, 2002. Pp. 219-220). A Câmara e o Senado cumpriam o papel que lhes era delegado pelos militares. E por meio do sistema bipartidário, o partido governista e majoritário, Arena, legitimava as vontades do governo. Também existia um partido de oposição atuante, o MDB. Os direitos sociais já adquiridos foram mantidos durante o regime. (CARVALHO, 2002. Pp.165-166).
Os direitos civis são os últimos, então, a serem consolidados. Em 1988, de volta ao período democrático, promulga-se a “Constituição Cidadã” como é popularmente chamada a atual Constituição Federal. O preâmbulo é bem claro ao afirmar que a partir daquele momento é instaurado um Estado Democrático de direito, onde se respeitará o direito individual à liberdade e à segurança: “... instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos...”. A dignidade da pessoa humana torna-se um dos pilares da nova nação, tão menosprezada no regime anterior. No artigo quinto são apresentados os recém-nascidos direitos civis: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” Deste artigo derivaram 78 incisos que tratam diretamente de direitos civis. Além disso, é claro, os direitos políticos e sociais são reafirmados pela constituição. (BRASIL, Constituição Da República Federativa Do Brasil, 1988).
Uma importante consequência de todo esse processo é a excessiva valorização do Poder Executivo. Isso ocorre devido ao fato de que “Se os direitos sociais foram implantados em períodos ditatoriais, em que o legislativo ou estava fechado ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do Executivo.” O Estado é visto como onipotente, distribuidor de empregos e favores. A manifestação política apontará sempre para a negociação direta com o governo. Não se faz necessária mediação por outras áreas representativas. “Essa cultura orientada mais para o Estado do que para a representação é o que chamamos de "estadania", em contraste com a cidadania.” É o desenvolvimento da cultura clientelista do Estado. O presidente será a personificação do papel paternal, de provedor. Ele vai ser o messias que surgirá para solucionar os problemas da democracia. E também será na sua figura depositada toda a culpa de algum fracasso, seja ele econômico ou social, não importa. (CARVALHO, 2002. Pp. 221-222).
Embora o Brasil não tenha seguido a sequência histórica e lógica da Inglaterra apresentada por Marshall, o Brasil está caminhando para a consolidação da cidadania. Provavelmente a inversão da ordem da pirâmide acarretou nessa série de problemas apresentados ao longo do texto. No entanto, o Brasil sobrevive. Talvez, com a constante participação da população de forma democrática na política, todos os indivíduos possam usufruir dos direitos civis, e como consequência, dos direitos sociais tão precários atualmente.
A recém-conquistada democracia brasileira necessita de tempo para se solidificar. Os progressos são inquestionáveis, e quanto mais tempo ela dure, maiores são as chances de que se façam as correções necessárias para sua consolidação. Tendo a Inglaterra ainda como exemplo, seu período de formalização democrática durou séculos, como visto anteriormente. Então, talvez com o tempo, o Brasil também possa achar o caminho certo a percorrer, envolvendo a população, o Estado e as instituições democráticas.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1967.