Capa da publicação Direitos civis, políticos e sociais: ordem invertida?
Capa: Sora
Artigo Destaque dos editores

Direitos civis, políticos e sociais no Brasil: uma inversão lógica

24/01/2019 às 14:20

Resumo:

Resumo sobre Cidadania e Direitos


  • T. H. Marshall define cidadania como a conquista de três direitos fundamentais: civis, políticos e sociais, cada um desenvolvendo-se em sua própria cronologia e contexto histórico.

  • Os direitos civis, políticos e sociais evoluíram em sequências e formas distintas em diferentes países, com a Inglaterra e o Brasil apresentando trajetórias de desenvolvimento diferenciadas de cidadania.

  • O Brasil, ao contrário da sequência observada por Marshall para a Inglaterra, iniciou com direitos sociais sob a liderança de Getúlio Vargas, seguidos de direitos políticos durante o regime militar e, por fim, consolidou os direitos civis com a Constituição de 1988.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Por que o Brasil inverteu a sequência lógica dos direitos? A cidadania nacional priorizou sociais e políticos antes dos civis, gerando desafios institucionais e democráticos.

É preciso discutir o que de fato é cidadania e o que representam os direitos civis, políticos e sociais. A definição utilizada neste artigo será a teoria do clássico autor britânico T. H. Marshall, apresentada em sua obra Cidadania, classe social e status. Para o autor, cidadania corresponde à conquista de três direitos: o civil, o político e o social. O direito civil diz respeito, basicamente, à liberdade individual: liberdade de ir e vir, de pensamento, de fé, de imprensa, de celebrar contratos legais, igualdade perante a lei, acesso à justiça, direito ao próprio corpo e à propriedade privada. O direito político deve ser compreendido como a possibilidade de participar do exercício do poder, candidatar-se, votar e ser votado, criar e filiar-se a partidos, bem como integrar movimentos sociais. Por fim, os direitos sociais dizem respeito ao atendimento das necessidades básicas de um ser humano, de modo a garantir-lhe o mínimo de bem-estar e uma vida condizente com a de um ser civilizado. Exemplos disso são os direitos à alimentação, à moradia, à educação, à saúde e a um salário digno (MARSHALL, 1967, p. 63).

Esses três direitos não surgiram espontaneamente, tampouco foram predeterminados por alguém. Houve uma cronologia racional para o seu aparecimento, relacionada às mudanças sociais de cada época, essenciais ao desenvolvimento da cidadania. Marshall analisa esse processo a partir do caso da Inglaterra e apresenta uma sequência lógica para a evolução dos direitos.

Verifica-se que, inicialmente, as instituições que asseguravam os direitos civis, políticos e sociais estavam interligadas. Nos períodos mais remotos, tais direitos eram confundidos pela sobreposição das funções estatais: uma única casa do Estado podia exercer, simultaneamente, o papel de assembleia legislativa, conselho governamental e instância de justiça. Com a posterior separação institucional, cada direito pôde desenvolver-se de maneira própria e em seu tempo. Assim, surgiram o Parlamento para os legisladores, os Tribunais de Justiça para juízes e advogados e diversas instituições voltadas à efetivação dos direitos sociais (MARSHALL, 1967, p. 64-66).

A partir dessa reorganização, tornou-se possível identificar os períodos em que cada direito começou a se consolidar. No caso inglês, os direitos civis emergiram primeiramente, no século XVIII. Já no século XVII, todos os homens eram considerados livres, o que explica, em parte, por que o direito de liberdade, acrescido de atributos da vida civil — como a liberdade de imprensa e a liberdade de escolha comercial —, tenha sido o primeiro a ser reconhecido (MARSHALL, 1967).

Uma vez que o homem participa da vida econômica de sua cidade ou Estado, é natural que também deseje usufruir de direitos políticos e integrar a esfera pública. No século XIX, tornou-se necessário enriquecer o status de cidadão com novos direitos e deveres e organizar a vida civil. Surge, então, o direito político, que possibilitava ao trabalhador organizar-se em sindicatos e partidos, bem como ser eleito. A princípio, tais direitos eram restritos a grupos fechados da elite; contudo, com o tempo, esse monopólio foi rompido, e a participação de todos na vida pública tornou-se viável com a adoção do sufrágio universal em 1918. O direito ao voto deixou de limitar a atividade política às classes economicamente privilegiadas e passou a ser estendido a todos — mais uma conquista da cidadania (MARSHALL, 1967, pp. 69-70).

Os direitos sociais consolidaram-se no século XX. Em 1834, foi instituída na Inglaterra a chamada Poor Law, que estabelecia um “salário mínimo” destinado a assegurar o sustento básico das famílias. Embora esse sistema tenha entrado em colapso, Marshall destaca a relevância do respaldo social diante das transformações no ambiente familiar e, sobretudo, no trabalho industrial, pouco regulado e frequentemente atentatório à dignidade de homens, mulheres e jovens. Nesse contexto, a educação assumiu papel central. Ela interfere diretamente na efetividade dos demais direitos, ainda que o social tenha sido o último a surgir. Quando o Estado garante a todas as crianças o acesso à educação, reconhece-se o valor da cidadania e forma-se uma geração de futuros adultos aptos a participar da vida em sociedade. A educação é necessária para assegurar a liberdade civil, da mesma forma que a democracia política exige um eleitorado instruído; trata-se, portanto, de condição de existência para o exercício dos demais direitos (MARSHALL, 1967, pp. 71-73).

A sequência lógica e histórica observada na Inglaterra — direitos civis, seguidos dos políticos e, por último, dos sociais — não foi reproduzida de maneira uniforme nos demais países. Diversas nações trilharam percursos distintos no processo de consolidação da cidadania. O Brasil constitui exemplo expressivo: aqui, primeiramente, desenvolveram-se os direitos sociais, seguidos dos políticos e, apenas posteriormente, dos civis. Essa inversão produziu efeitos próprios. A centralidade do direito social reflete-se, ainda hoje, em contrastes significativos quando se compara a cidadania brasileira à inglesa. No Brasil, observa-se a persistência de desigualdades estruturais: um homem pobre e negro tende a ser julgado de modo distinto em relação a um homem branco e rico que pratique o mesmo crime. Essa realidade evidencia a existência de diferentes “tipos” de cidadania no país, circunstância que dificilmente se verificaria na Inglaterra (MARSHALL, 1967).

José Murilo de Carvalho, em sua obra Cidadania no Brasil: o longo caminho, examina a consolidação — ou ausência — da cidadania e ilustra a inversão da pirâmide de direitos mencionada. Em 1985, após o regime militar, houve uma mobilização em prol da reconstrução democrática e, como consequência, do fortalecimento da cidadania. Acreditava-se que a redemocratização das instituições traria a felicidade nacional. De fato, registraram-se avanços relevantes: manifestações livres de pensamento, liberdade sindical, ampliação do direito ao voto, eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos. Todavia, não se garantiu, em termos efetivos, a plena fruição de direitos fundamentais como liberdade substancial, participação política, segurança e emprego (CARVALHO, 2002, p. 7).

Problemas centrais como desemprego, analfabetismo, violência urbana, precariedade nos serviços de saneamento e saúde e má qualidade da educação existiam e ainda persistem. Em muitos casos, agravaram-se ou tiveram soluções lentas e insatisfatórias. Como consequência, observa-se o desgaste das instituições democráticas, como o sistema eleitoral e o Congresso, além da perda de confiança da população nelas. A ausência de perspectivas de melhorias significativas em curto prazo pode ser preocupante, pois, em médio prazo, podem surgir propostas que contrariem os avanços conquistados com a nova democracia. Liberdade e participação, por si só, não garantem soluções efetivas para os problemas sociais (CARVALHO, 2002, p. 8).

Para Carvalho, o cidadão pleno é aquele que usufrui dos três direitos já mencionados. É possível que haja direitos civis sem a consolidação dos direitos políticos, mas não o contrário. Caso contrário, os direitos políticos limitam-se a justificar um governo, sem representar, de fato, a vontade popular. Outro ponto ressaltado é que a concretização dos direitos sociais depende de uma máquina administrativa eficiente, representada pelo Poder Executivo. Sem a consolidação prévia dos demais direitos, a aplicação dos sociais pode tornar-se arbitrária. Assim, o modelo histórico de cidadania inglês, descrito por Marshall, serve apenas como contraste em relação ao brasileiro. Duas diferenças são centrais: a inversão da sequência lógica — com o direito social surgindo antes dos demais — e a maior valorização dos direitos sociais em detrimento dos políticos e civis (CARVALHO, 2002, pp. 9-12).

No Brasil, os direitos sociais foram consolidados principalmente durante o governo autoritário e populista de Getúlio Vargas. Tais direitos foram implementados em um período de supressão das liberdades civis e políticas (CARVALHO, 2002, p. 219). O governo varguista deu grande ênfase às causas trabalhistas, fortemente influenciado pelo positivismo comtiano, que associava família e trabalho ao progresso social. Em 1943, promulgou-se a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), elaborada com reduzida, ou mesmo inexistente, participação política. Tratava-se, simultaneamente, de um período de fragilidade dos direitos civis (CARVALHO, 2002, p. 110). A principal herança desse período foi a institucionalização da distribuição de benefícios sociais mediante cooptação de categorias de trabalhadores. Tais benefícios eram concedidos a partir de negociações específicas entre grupos organizados — sobretudo sindicatos — e o governo, em vez de configurarem direitos universais (CARVALHO, 2002, p. 223).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Segundo Carvalho, os direitos políticos expandiram-se em circunstâncias paradoxais: o período de maior ampliação do direito ao voto ocorreu justamente sob um regime ditatorial. Embora o Congresso tenha sido formalmente mantido, suas funções foram reduzidas a um papel meramente decorativo diante do poder militar (CARVALHO, 2002, pp. 219-220). A Câmara e o Senado limitavam-se a cumprir atribuições delegadas, em um sistema bipartidário no qual a Arena, partido governista, legitimava as decisões do regime, enquanto o MDB representava a oposição institucional. Nesse período, os direitos sociais já conquistados foram preservados (CARVALHO, 2002, pp. 165-166).

Os direitos civis foram os últimos a se consolidar. Em 1988, com a redemocratização, foi promulgada a Constituição Federal, conhecida como “Constituição Cidadã”. Seu preâmbulo estabelece a instauração de um Estado Democrático de Direito destinado a assegurar direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. A dignidade da pessoa humana passou a ser um dos pilares da nova ordem constitucional, em contraste com a negligência a esse princípio durante o regime militar. O artigo 5º da Carta consagra os direitos civis ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Esse artigo detalha 78 incisos que tratam diretamente de direitos civis. Além disso, a Constituição reafirma os direitos políticos e sociais, consolidando o tripé da cidadania (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).

Uma consequência importante de todo esse processo é a excessiva valorização do Poder Executivo. Isso se deve ao fato de que, “se os direitos sociais foram implantados em períodos ditatoriais, em que o legislativo ou estava fechado ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do Executivo” (CARVALHO, 2002, pp. 221-222). O Estado passa a ser visto como onipotente, distribuidor de empregos e favores. A manifestação política tende, assim, a direcionar-se para a negociação direta com o governo, sem a necessidade de mediação por instâncias representativas. Essa cultura, orientada mais para o Estado do que para a representação, é denominada por Carvalho de “estadania”, em contraste com a cidadania. Trata-se do desenvolvimento de uma cultura clientelista, em que o presidente é personificado como figura paternal, provedor de soluções e, ao mesmo tempo, destinatário de todas as responsabilidades por eventuais fracassos, sejam eles econômicos ou sociais.

Embora o Brasil não tenha seguido a sequência histórica e lógica observada na Inglaterra, apresentada por Marshall, é possível afirmar que o país caminha para a consolidação da cidadania. A inversão da ordem da pirâmide contribuiu para a emergência dos problemas expostos ao longo do texto. Ainda assim, a experiência democrática brasileira resiste. A participação constante da população, em ambiente democrático, pode permitir que todos usufruam plenamente dos direitos civis e, como consequência, que se fortaleçam os direitos sociais, ainda precários em muitos aspectos.

A jovem democracia brasileira necessita de tempo para se solidificar. Os progressos já alcançados são inegáveis e, quanto mais tempo perdurar, maiores serão as chances de corrigir distorções e consolidar avanços. Tomando a Inglaterra como exemplo, seu processo de formalização democrática estendeu-se por séculos. Assim, é plausível considerar que, com o tempo, o Brasil também encontrará o caminho adequado para consolidar sua cidadania, por meio do fortalecimento da participação popular, do Estado e das instituições democráticas.


BIBLIOGRAFIA

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1967.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDVED, Marcela Malta Souza. Direitos civis, políticos e sociais no Brasil: uma inversão lógica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5685, 24 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64742. Acesso em: 5 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos