Responsabilidade Civil do Estado na Efetivação do Direito à Saúde, Sob a Ótica dos Medicamentos e Tratamentos não Fornecidos pelo Sistema Único de Saúde

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5. DA TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL

O Sistema Único de Saúde fornece gratuitamente os medicamentos ditos como essenciais; os de uso contínuo no caso de doenças crônicas ou degenerativas; e ainda, os denominados genéricos, ou seja, os que possuem a mesma forma farmacêutica de um fármaco utilizado com freqüência para a cura determinada moléstia.

Todavia, se exclui da referida lista os remédios utilizados em tratamentos de doenças raras e os de alto custo.

A eliminação destes fármacos se justifica pela insuficiência de recursos públicos.

Em razão disso, originou a chamada “teoria da reserva do possível”, que aborda um impacto existente entre o direito fundamental à saúde e a limitação orçamentária do país.

A reserva do possível surgiu a partir de um julgamento pelo Tribunal Constitucional Alemão onde os estudantes que não haviam sido admitidos nas Universidades que ofereciam o curso de medicina, nas cidades de Hamburgo e Munique, postulavam a tutela da garantia da livre escola de trabalho ou profissão, vez que existia um limite de vagas oferecidas pelas Instituições de Ensino.

O Tribunal Alemão decidiu esse embate a favor das universidades, sob o fundamento que não seria razoável impor tal obrigação ao Estado, ora oferecer mais vagas para o curso de medicina, posto que esta imposição ultrapassava a efetivação dos direitos sociais ventilados.

Dessa postura, sintetiza que o Estado não está obrigado a conceder algo que esteja fora do que se entende por razoável, mesmo que possua recursos financeiros para proceder com o pleiteado.

Portanto, a ideia da reserva do possível não verifica apenas se há recursos disponíveis, mas sim, se o pedido, cumulado ao orçamento disponibilizado, é razoável para a sociedade como um todo.

A vista disso, percebe-se que a teoria da reserva do possível foi importada para o direito brasileiro e recebeu como conceito uma nova roupagem, ou seja, é tida como um limite para que os direitos fundamentais sociais sejam efetivados em face da existência ou não de orçamento disponível.

Sobre este assunto, avalia Andreas J. Krell (2002, p. 108):

“Devemos nos lembrar que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais num Estado de permanente crise social e milhões de cidadãos socialmente excluídos. Na Alemanha – como nos países centrais – não há um grande contingente de pessoas que não acham vagas nos hospitais mal equipados da rede pública; não á necessidade de organizar a produção e distribuição da alimentação básica a milhões de indivíduos para evitar sua subnutrição ou morte; não há altos números de crianças e jovens fora da escola; não há pessoas que não conseguem sobreviver fisicamente com o montante pecuniário de assistência social que recebem, etc.”

Deste modo, no Brasil a reserva do possível é vista sob dois pilares, ora a disponibilidade de recursos públicos e a prestação dos direitos sociais.

Não obstante cabe ao Poder Público compatibilizar o orçamento público com as políticas públicas, definindo os pilares que merecem melhor atenção e investimento, por meio de seu poder discricionário que leva em conta os critérios de conveniência e oportunidade, sem a necessidade de previsão legal.

Contudo, vale esclarecer que esta liberdade concedida ao Estado deve estar pautada pela Constituição Federal.

No entanto, é necessário frisar que no Brasil, diante da crise existente decorrente da corrupção, esta teoria não pode servir para aliviar o cumprimento das obrigações pelo poder público, sendo permitida sua manifestação apenas quando existirem critérios objetivos que demonstrem a carência de recursos públicos para a concretização de tal finalidade.

Conquanto, o Estado deve implementar ao menos uma parcela mínima dos direitos fundamentais, que recebe o nome de mínimo existencial, para que a dignidade da pessoa humana seja tutelada.

Pois bem, a concepção do mínimo existencial é o direito expresso de forma objetiva, pois depende da ação positiva do poder público, às condições mínimas indispensáveis para a existência humana digna.

Caso estes direitos não sejam oferecidos haverá uma afronta aos mandamentos constitucionais.

Logo, a conclusão que se chega é que cabe ao Estado consubstanciar todos os direitos fundamentais, todavia, caso tal conduta não seja concretizada, compete ao Administrador Público, diante da falta de recursos públicos para a efetivação destes bens, sobrepor o princípio da reserva do possível para que tal situação seja solucionada.

Ainda diante dessa posição, insta salientar que o mínimo existencial destes direitos deve estar sendo garantido para a parte pelo Estado, pois caso isto não ocorra, cabe ao Poder Judiciário intervir caso seja acionado.


6. O DIREITO AO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS E TRATAMENTOS MÉDICOS DE ALTO CUSTO

Pode ser considerado que a maioria das ações judiciais que são ingressadas diariamente em face do Estado diz respeito ao fornecimento de medicamentos que estão fora da lista do SUS e que geralmente são de alto custo.

Este assunto gera polemica inclusive na maior cúpula judiciária do pais, ora o Supremo Tribunal Federal, vez que uma parte dos ministros entendem que o fornecimento de medicamentos de alto custo, que não estejam contemplados pela lista do SUS, atinge diretamente a programação orçamentária do pais, o que pode ocasionar uma quebra na estrutura financeira do Estado em relação ao fornecimentos de outros medicamentos ditos como básicos para o restante da população.

O restante dos ministros se posiciona no sentido de que deve o juiz determinar o fornecimento destes medicamentos desde que estejam registrados na Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Com o passar do tempo se tornou marcante o número de demandas judiciais que visavam a entrega de remédios para o tratamento do câncer, de doenças renais, psiquiátricas entre outras, remédios estes de alto valor aquisitivo, que estão muitas vezes inacessíveis para boa parte da população brasileira.

Além das demandas individuais, as associações dos portadores de doenças crônicas e o Ministério Público, figurando como substituto processual, passaram a atuar como autores das ações coletivas que objetivam o fornecimento de medicamentos de alto custo financeiro.

No ano de 2010, segundo dados estampados no artigo de autoria de Ilca Silva de Souza e Célia Cristina Muraro, o Ministério da Saúde gastou R$ 132,58 milhões com a compra de medicamentos de alto custo conforme determinação judicial.

Portanto, tal fator somente vem comprovar que o Estado é obrigado a fornecer todo e qualquer tipo de remédio necessário para possibilitar a vida do indivíduo, estando este incluído ou não na lista do Sistema Único de Saúde.

Ademais, vale ainda esclarecer que cabe ao poder público fornecer tratamentos médicos que não estejam contemplados pelo SUS ou ainda que seus meio alternativos não sejam adequados ao problema apresentado pelo paciente.

Primeiramente, importante frisar que o meio alternativo oferecido pelo Sistema Único de Saúde não deve corresponder com a melhora do indivíduo, por questões fisiológicas ou por alguma especialidade do paciente, para que somente assim possa ser ele agraciado por outro meio que não seja o fornecido pelo SUS.

Contudo, o ministro Gilmar Mendes se posiciona em alertar que não há possibilidade de obrigar o poder público a fornecer um medicamento ou tratamento que seja ainda experimental a sociedade de medicina, vez que estes se quer estão disponíveis para o uso público.

Todavia, o ministro aduz ainda que nos casos em que os tratamentos ou os fármacos, apesar de não favorecidos pelo SUS, estejam aprovados e autorizados pela ANVISA, estes podem sim ser fornecidos aos pacientes, desde que comprovem sua necessidade.

Entretanto, o ministro Ricardo Lewandowski defende a ideia de que o Estado deve sim fornecer tratamentos médicos não autorizados pela ANVISA ou que estejam em fase experimental no país ou no exterior, tudo com o fim de atingir o direito social à saúde.

Dessa forma, percebe-se que há uma divergência sobre este enfoque até mesmo no Supremo Tribunal Federal, por isso é um objeto de amplo debate até os dias de hoje.

Entretanto, o que se extrai destes posicionamentos é que cabe ao Poder Judiciário, ante a omissão do Estado, promover a tutela postulada pelo impetrante caso este demonstre cabalmente a necessidade, vez que o orçamento público é escasso para atender a toda população de modo integral.

6.1 O PAPEL DA ANVISA NA DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS  

A ANVISA, ora Agência Nacional de Vigilância Sanitária, foi criada no ano de 1999 com o fito de promover e tutelar a saúde da população, protegendo a segurança dos produtos e serviços e facilitando o acesso destes.

A Lei nº 9.782/1999 a criou e também instituiu o sistema nacional da vigilância sanitária, cujas funções estão estabelecidas no artigo 2º, do citado diploma legal, fita-se:

Art. 2º Compete à União no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária:

I - definir a política nacional de vigilância sanitária;

II - definir o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária;

III - normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde;

IV - exercer a vigilância sanitária de portos, aeroportos e fronteiras, podendo essa atribuição ser supletivamente exercida pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios;

V - acompanhar e coordenar as ações estaduais, distrital e municipais de vigilância sanitária;

VI - prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios;

VII - atuar em circunstâncias especiais de risco à saúde; e

VIII - manter sistema de informações em vigilância sanitária, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Assim, o Ministério da Saúde, em consonância com o dispositivo supracitado, estabelece a política pública geral do setor, ou seja, estipula diretrizes para que a vigilância sanitária se aperfeiçoe da melhor maneira.

Pois bem, a ANVISA é uma autarquia de regime especial vinculada ao Ministério da Saúde, que possui independência administrativa a autonomia financeira.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária utiliza de meios para elaborar e aprovar normas que determinem a qualidade de medicamento que a sociedade necessita.

A ANVISA analisa todo o processo para aferir segurança para o fármaco, isto é, verifica da pesquisa clínica prévia ao registro do medicamento posto a venda no mercado.

Contudo, tal procedimento não foi sempre utilizado, vez que até o ano de 1976, a única exigência para o registro do medicamento era a autorização da vigilância local. Todavia, com a instituição, em 1999, dos genéricos, necessitou de provas eficientes para a análise de sua equivalência, para que só assim ocorresse de fato o registro.

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Com efeito, nos dias de hoje, se tem exigido cada vez mais estudos para que seja atestado cientificamente a qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos, haja vista que as análises laboratoriais permitem tais comprovações que superam a simples confirmação documental e bibliográfica.

Pois bem, o medicamento engloba muito mais do que se imagina, ou seja, envolve o produto em si, a embalagem primária e secundária, as instruções de uso/bula, a marca ou nome comercial, a propaganda e marketing e, por fim, o preço que será apresentado no mercado.

Todas essas etapas, por sua vez, são repassadas pelos critérios minuciosos da ANVISA, para que assim possa obter seu registro.

Em 2001, a ANVISA criou o Projeto Hospitais Sentinela para cuidar dos medicamentos pós-comercialização para o uso no país.

O referido projeto tem como base receber notificações dos fabricantes quanto aos eventos adversos e inadequações dos seus produtos colocados a venda.

As notificações ficam em um banco de dados criado pela própria ANVISA para que tais informações possam ser repassadas para a população e para os profissionais de saúde.

O Projeto Sentinela tem contribuído e muito para que melhores resultados fossem obtidos no tocante a qualidade na distribuição de medicamentos do Brasil.

Entretanto, não basta apenas a qualidade dos medicamentos se não houver a racionalidade no uso destes em todo território brasileiro, pois tal fato ainda tem sido um grave problema.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou que a maioria dos medicamentos são vendidos, prescritos e dispensados erroneamente, o que provoca em um uso pela população incorreto de mais da metade destes.

Com efeito, o uso errôneo e exagerado de muitos fármacos enseja em um desperdício dos escassos recursos transferidos para a área da saúde e riscos inclusive para o indivíduo.

Desse modo, a qualidade dos medicamentos é algo esperado ou ao menos desejável, e o uso adequado destes é extremamente importante para o destino de uma nova promoção de saúde pública, vez que o fármaco é nada mais nada menos que um insumo de grande valia para a assistência à saúde.

6.2 DA PRESCRIÇÃO RACIONAL DE MEDICAMENTOS   

O acesso aos medicamentos tem se tornado um grave problema para os sistemas de saúde e para os indivíduos, vez que os recursos cada vez estão mais finitos e os fármacos cada vez mais caros.

A programação de quais destes devem ser oferecidos pelo poder público depende de um gerenciamento com base em critérios que levam em consideração a eficácia e a segurança, conjuntamente com o custo-efetividade.

A prescrição de medicamentos inadequados enseja situações de morbimortalidade e enormes prejuízos no setor financeiro do país.

Entre as estratégias para a melhoria na prescrição racional está o treinamento de curta duração em farmacoterapia dos alunos que cursam medicina e dos profissionais da área da saúde.

A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em conjunto com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) tem proporcionado este estudo no Brasil.

Um dos principais mercados mundiais de medicamentos é o Brasil, que por sua vez, possui também um dos maiores índices de desigualdade em seu fornecimento.

Inicialmente, o Poder Judiciário promovia o fornecimento de fármacos para que o direito à saúde fosse atingido. Contudo, caso estes estivessem fora da lista programática elaborada pelo Ministério da Saúde, eram rejeitados, o que por sua vez, ensejava em uma enorme tensão politica, para que os tidos como essenciais, também fossem ofertados.

A abertura, portanto, do Poder Judiciário e do Ministério Público no fornecimento de medicamento mudou a roupagem social que existia, vez que diversos tipos de usuários postulavam os fármacos para as mais diversas moléstias, e muitas vezes, raras síndromes e doenças.

Assim, a farmacoterapia tornou-se o recurso mais utilizado no tratamento de doenças e para que a saúde fosse mantida no país.

Todavia, o acesso deve ser muito bem definido e ordenado, como exposto acima, para que o emprego no processo de melhoria das moléstias seja racional.

Hoje há inúmeras iniciativas de programas e técnicas para a elaboração de medicamentos ditos como primordiais frente a escassez de recursos públicos.

Todavia, mesmo com este planejamento em mente, as decisões do Poder Judiciário vêm prejudicando a tomada de decisões politicas.

Por outro lado, o pleito de fármacos abarcados pela lista do Sistema Único de Saúde demonstra uma falha no gerenciamento e distribuição de recursos, o que, por sua vez, ajuda o poder público no desenrolar da elaboração de melhorias nas políticas públicas.

Portanto, é necessário frisar que as esferas de governo precisam andar em sincronia para a implementação de estratégias de acesso e a utilização racional de medicamentos com base em seu custo-efetividade, para que assim seja estabelecida uma política nacional de medicamentos consistente.

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Sobre a autora
Karla Verônica Fernandes Mendes

Graduação em Direito no Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP (Toledo) Pós Graduação em Direito Público no Complexo Educacional Damásio de Jesus

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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