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A constitucionalidade da aplicação da pena privativa de liberdade após o acórdão condenatório do juízo de segunda instância

16/01/2019 às 14:20
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A presunção absoluta de inocência até o julgamento do último recurso gera um quadro de desigualdade jurídico-social alarmante, violando princípios republicanos primordiais, além de mitigar a eficiência do Poder Judiciário no âmbito criminal.

A possibilidade do início da execução da pena condenatória, após prolação de acórdão em 2º grau, vem causando enorme celeuma no ordenamento jurídico brasileiro. As conflituosas opiniões e interpretações levantadas pelos juristas e doutrinadores, sobretudo acerca da ofensa ou não ao princípio constitucional da presunção de inocência enquanto houver recursos extraordinários pendentes de julgamento, fomentam a discussão a ser ventilada neste trabalho.

O saudoso Min. Teori Zavascki como relator do HC 126292/SP, julgado pela Suprema Corte em 17 de fevereiro de 2016 que modificou o posicionamento anterior, que vedava a execução da pena antes do efetivo trânsito em julgado, em entendimento vanguardista, aduziu quanto ao princípio supramencionado que “a presunção da inocência não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produza efeitos contra o acusado”.

E, consoante entendimento do referido Ministro, seu parecer sobre o tema em estudo pode ser destacado, segundo brilhante elucidação:

"A execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias".

Deve-se salientar que, posteriormente, no julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Lula, a discussão retornou à corte Suprema com opiniões divergentes acerca da sua constitucionalidade. O cerne da questão foi a interpretação do inciso LVII do Art. 5º da Constituição, in verbis: “LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Assim, o Supremo Tribunal Federal deveria aplicar ao artigo questionado uma interpretação literal ou restringir o seu sentido? No debate, o Ministro Dias Toffoli, que teve voto vencido, defendeu que a norma deve ser interpretada conforme foi escrita, fundamentando sua posição nas teorias de Hans Kelsen. Por outro lado, entre os votos vencedores, que deram uma interpretação possibilitando a prisão antes do trânsito em julgado, fundamentaram seus entendimentos na visão constitucional de Konrad Hesse, Ferdinand Lassale, Dworkin, dentre outros.

No constitucionalismo moderno, salvo o direito de não ser torturado ou escravizado, não se admite a existência de um direito absoluto, sendo todos os outros passíveis de relativização, sobretudo diante de uma antinomia constitucional aparente. O positivismo da lição de Kelsen foi superado ainda no período pós-guerra, de tal modo que, antes a lei era um fim em si mesma e deveria ser cumprida de toda forma. Todavia, na “virada kantiana” a norma se reaproximou da moral e da ética, exigindo que fosse ponderada com uma carga axiológica. Sendo assim, os “fatores reais de poder” e a “força normativa dos princípios” preencheram grande espaço no Neoconstitucionalismo.

A interpretação teleológica, axiológica, histórica e sistemática da norma possibilitou inúmeras evoluções, que não ocorreriam em um direito engessado restritamente à literalidade da lei. Como exemplos recentes: a acertada decisão que reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do sistema carcerário, ora criticada por alguns operadores do Direito, como ativismo judicial, em violação à separação dos três poderes. A evolução interpretativa que transcende o sentido literal do dispositivo, também permitiu flexibilizar o princípio da legalidade no caso concreto, reconhecendo a atipicidade material em algumas situações que, em abstrato, seriam considerados crime (fato típico e ilícito). Não obstante, a exegese reconhece o princípio da insignificância como causa de exclusão de tipicidade, embora não prevista em lei, resolvendo graves casos de injustiça.

A suposta premissa de que a prisão antes do trânsito em julgado ocasionaria um grave cenário de injustiça, especialmente às pessoas mais pobres, data vênia, parece equivocada, sobretudo no Brasil. Empiricamente, é perceptível que a lentidão do judiciário serve exclusivamente aos interesses dos criminosos de colarinho branco e aos grupos sociais mais poderosos, que utilizam o abarrotamento de processos nos tribunais a seu favor, a fim de reduzir o sistema criminal a um Direito Penal Simbólico.

De fato, a seletividade penal é a mais grave injustiça jurídico-social do Brasil, presente tanto na criminalização primária da norma em abstrato, quanto na secundária, mormente a atuação repressiva dos órgãos de controle, sob o crivo perfunctório. Trata-se de um sistema que pune severamente o pobre, que sofre com o sucateamento carcerário e pela proteção dos hipossuficientes, sendo a morosidade do judiciário um dos fatores dessa desigualdade, dentre outros fatores.

Desta forma, o grande lapso temporal para a efetiva prestação jurisdicional na seara penal é prejudicial apenas aos mais vulneráveis, que não possuem recursos para custear advogados, bem como uma elaborada estratégia processual defensiva, seja na interposição de recursos procrastinatórios, adiando uma possível pena restritiva de liberdade, também com desiderato prescricional, seja em relação ao acesso aos órgãos judicantes para conseguir uma decisão favorável liberatória com celeridade.

Os professores de Introdução ao Estudo do Direito e Introdução ao Estudo do Crime costumam colocar que as leis são normas gerais e abstratas, que se aplicam indistintamente a todas as pessoas. Na prática, essa conclusão é equivocada. Isso porque, no momento em que o legislador exerce a atividade legiferante, os aparatos de controle estatais já estão voltados para um determinado grupo criminoso, que será o que lotará os presídios e os complexos criminais. Via de regra, o perfil socioeconômico desses grupos que formam a população de encarcerados é majoritariamente composta por pobres, o que se modifica totalmente ao se analisar os crimes de colarinho branco.

A atividade penal legiferante nos traz situações criticáveis, como exemplo, caso determinada pessoa furte um bem e em momento futuro devolva a res furtiva, esse agente delituoso continuará passível de responsabilização penal. Por outro lado, se determinada pessoa pratique o crime de sonegação fiscal, caso pague o valor devido aos cofres públicos, mesmo após a decisão penal condenatória transitar em julgado, terá extinta sua punibilidade. Sendo assim, é salutar identificar o perfil socioeconômico das pessoas que cometem furto e das pessoas que cometem crimes tributários, vislumbrando a seletividade penal em todo o conjunto das leis incriminadoras, despenalizadoras ou processuais, ainda em abstrato.

Logo, o princípio da igualdade é furtivamente violado, pois, se almeja favorecer um determinado subgrupo social e, concomitantemente, controlar a outra parcela da sociedade, especificamente os que estão longe dos centros de poder, com base em um motivo legítimo. Ou seja, percebe-se que é utilizado o Direto Penal e Processual como instrumentos de controle ao fazer com que se separe determinado grupo comunitário, mas que a justificativa para tanto não seja de cunho individual e sim com base em um discurso de igualdade abstrata. 

Corroborando o posicionamento acima, Nilo Batista discorre sobre falsa operacionalidade do sistema penal mencionado acerca da seletividade, repressividade e estigmatização como características nucleares do Sistema Penal:

“[...] Assim, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas [...] O Sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade [...] quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana [...] quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela. [...]” (2007, p. 25-26)”.

Com também, seguindo esse entendimento quanto à marginalização do sistema criminal brasileiro, Focault retrata sobre a seletividade e o falso discurso de que a lei penal é feita para todos:

“[...] processos que encontramos atrás de toda uma série de afirmações bem estranhas à teoria penal do século XVIII: que o crime não é uma virtualidade que o interesse ou as paixões introduziram no coração de todos os homens, mas que é coisa quase exclusiva de uma certa classe social: que os criminosos que antigamente eram encontrados em todas as classes sociais, saem agora ‘quase todos da última fileira da ordem social’ [...] nessas condições seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma forma; que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem (2008, p.229)”.

Nessa ótica, percebe-se que é necessária a flexibilização da presunção de inocência, possibilitando que a prisão antes do trânsito em julgado diminua drasticamente os recursos protelatórios e desafogue os tribunais, de modo a minimizar as injustiças ocasionadas pela lentidão judiciária. Assim, o resultado desse comportamento é um cenário com mais equidade, permitindo a penalização dos mais poderosos e diminuindo o prejuízo dos mais vulneráveis ante a falta de acesso aos órgãos judiciais e consequentemente a interposições dos “intermináveis” recursos que permitem o prolongamento da liberdade.

No seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso apresentou dados mostrando um impacto ínfimo das apelações nos tribunais superiores para os réus. Somente 1,12% dos recursos em matéria criminal julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) resultam em sentença favorável ao condenado para algum pedido feito, sendo que as absolvições são obtidas em apenas 0,035% dos casos. Isso significou nove réus inocentados entre os 25.707 recursos extraordinários e agravos analisados no período considerado, de 01 de janeiro de 2009 a meados de 2016. Por fim, em dois anos (01/09/2015 a 31/08/2017), 830 ações penais prescreveram no Superior Tribunal de Justiça e 116 no STF.

E, dando seguimento a exposição desses dados levantados, argumentou Barroso que:

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“Essa é a realidade do sistema penal brasileiro. Ele é feito para prender menino pobre e não consegue prender essas pessoas que desviam por corrupção e outros delitos milhões de dinheiros. O desvio mata as pessoas, gente que morre na fila da saúde, gente que não recebe educação, gente que anda enlatada no transporte público”.

Nesse cenário, é pertinente a crítica de Zaffaroni ao mencionar que “achamo-nos, em verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade”. Ainda quanto ao Sistema Penal, o renomado doutrinador traz à tona a crise ocasionada por essa seletividade no conceito de culpabilidade normativa: “A seletividade do sistema penal neutraliza a reprovação: ‘Por que a mim? Por que não a outros que fizeram o mesmo?, são perguntas que a reprovação normativa não pode responder" (ZAFFARONI, 2001, p. 259).

Portanto, diante de todo o exposto, mister é saber que a pena é a forma pela qual o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da sociedade na validade e na vigência das normas criminais e do próprio ordenamento jurídico-penal. Logo, resta inócua a função de prevenção geral da pena em uma comunidade com agentes anestesiados do medo de delinquir diante da ínfima possibilidade de condenação dos crimes de cifras douradas. Essa apatia contribui para a reiteração do cometimento de determinados atos delituosos, haja vista o reflexo da habitual incapacidade de punir seus infratores, fomentando ainda mais a criminalidade.

Dessa forma, no referido julgado, a exegese colocou os princípios constitucionais da presunção de inocência vis-à-vis princípios da igualdade, do acesso à justiça, da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da celeridade processual. Portanto, no mister de dizer o direito, deve-se considerar a Constituição como um todo (unidade da Constituição) e não as normas de maneira isolada, sendo necessária a flexibilização e ponderação da norma para manter a harmonia das regras e princípios constitucionais, de modo a evitar que o abuso dos instrumentos recursais danifique as estruturas do estado Democrático de Direito, regredindo a um Direito Penal do Autor, em que a aplicação da norma dependerá de quem a viola.


CONCLUSÃO

Ao cabo, resta-nos asseverar que, diante da evolução jurisprudencial, espera-se que as instituições brasileiras garantam a todos, em um futuro próximo, uma real igualdade de tratamentos. E, como os recursos interpostos nas Cortes Superiores não analisam fatos e, via de regra, não têm efeitos suspensivos, não há que se falar em inconstitucionalidade da pena restritiva de liberdade antes do trânsito em julgado, vez que apenas o primeiro e segundo graus podem realizar analise fática e probatória, por isso, nessas instâncias temos o exaurimento da presunção de inocência.


Referência

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 35.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001

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Sobre o autor
Felipe Botelho

Advogado, Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, ex-assessor do Procurador Geral de Justiça do Ministério Público da Paraíba (atuação nas Promotorias de Combate aos Crimes Tributários, Controle Externo da Atividade Policial e CAOP-Improbidade Administrativa), Ex-Coordenador Jurídico da Secretaria de Turismo e Desenvolvimento Econômico do Estado Paraíba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOTELHO, Felipe. A constitucionalidade da aplicação da pena privativa de liberdade após o acórdão condenatório do juízo de segunda instância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5677, 16 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66039. Acesso em: 22 dez. 2024.

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