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Violações de direitos humanos na história da psiquiatria no Brasil

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21/04/2019 às 17:20

Resumo:


  • O tratamento da saúde mental no Brasil, historicamente marcado por violações de direitos humanos e condições desumanas, passou por um processo de desinstitucionalização, buscando reintegrar os pacientes à sociedade e evitar a lógica do confinamento.

  • A luta antimanicomial e as políticas de reestruturação da assistência psiquiátrica, como a Declaração de Caracas e a Carta de Brasília, promoveram mudanças significativas nas práticas de saúde mental, privilegiando serviços comunitários e a atenção psicossocial.

  • Apesar dos avanços, ainda existem desafios como a escassez de vagas para emergências psiquiátricas, a necessidade de estruturas de segurança em hospitais gerais e a luta contínua contra o estigma e o sofrimento associado às doenças mentais e ao uso de substâncias.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

AS MARCAS DO SOFRIMENTO NO ANTIGO HOSPITAL SANT’ANA

As violações de direitos humanos nas instituições psiquiátricas do Brasil não se resumiram apenas no caso isolado de Barbacena, mas o desamparo, o sofrimento do doente mental institucionalizado era disseminado em todo o território nacional. Neste sentido, Borges (2013) observa: Na década de 70, o antigo hospício catarinense, O Hospital Colônia Sant’Ana vivia o ápice de sua superlotação”. Para coletar dados sobre a situação precária da época, a autora analisa entrevistas pertencentes ao Centro de Documentação e Pesquisa do Hospital Colônia Sant’Ana, realizadas com profissionais da instituição no período, além de pesquisar outras fontes. As memórias das falas tecem assim a história do lugar por meio das lembranças marcadas pelo sofrimento. Assim o sofrimento será também entendido como um catalisador de mudanças e novos arranjos sociais na história do desenvolvimento da saúde mental no Brasil.

A autora reporta o relato do enfermeiro Wilson de Paula que em 1971 iniciou suas atividades no Sant’Ana, onde trabalhou até 1977. Sua primeira visita ao local é assim descrita: (...) à primeira visita … foi uma coisa horrorosa. Comecei a conhecer a Colônia levado pelo administrador, que foi me dando as explicações mais absurdas. … uma das primeiras coisas que ele me mostrou foi um pedaço de pau que ele tinha guardado ao lado da mesa dele na sala da administração e que, segundo ele, às vezes ele precisava usar. Foi terrível: aquela visão dele me mostrando o pedaço de madeira, falando da loucura como um analfabeto (Paula, jan. 2009). Tais relatos são todos marcados pela perplexidade diante da realidade de um espaço que deveria ser na verdade terapêutico.

Os registros da autora traduzem a realidade triste da instituição, que foi criada em novembro de 1941, no auge da tendência à institucionalização da loucura. Localizada no município de São José, surge para atender as políticas de saúde pública deste período, que visava implantar um serviço de assistência à saúde mental no Estado. Sua existência é, portanto, fruto de uma demanda ligada ao sofrimento, a fim de retirar do convívio social aqueles tidos como loucos. O intuito seria evitar a reclusão nas imundas cadeias situadas nos baixos das Câmaras Municipais. Relata a autora que para lá eram levados os alienados, igualmente a outros estados do Brasil, amarrados solidamente, depois de violência e lutas físicas. Desde sua fundação até trinta anos depois a situação não havia mudado. Os tratamentos e cuidados nunca foram tentados, e os alienados deixaram simplesmente a reclusão das prisões para a dos hospícios. Estes tinham inicialmente o intuito de dar um tratamento mais humano aos privados da razão, no entanto, como em outros casos, falharam no seu objetivo, tendo-se tornado um “depósito de gente”, um espaço superlotado, marcado pelo descaso: Uma característica que define grande parte dos hospitais psiquiátricos brasileiros em diferentes épocas, conclui a autora.

Um dos relatos no seu trabalho de pesquisa ilustra, de forma clara, os vários tipos de violações aos direitos humanos a que os internos eram submetidos: O hospital que eu encontrei em 1971 era um hospital com seis ou sete médicos e com 2.156 pessoas. Havia lugares onde os doentes eram lavados em grupo, lugares onde os pacientes passam o dia inteiro dando volta numa estrutura que a gente chamava de sombrinha, onde havia enfermarias que, para você entrar, você tinha que chamar os guardas para ir junto, onde os pacientes estavam entregues à própria sorte. Era algo muito feio, muito triste, muito doloroso. Então se entrar em uma instituição com 2.156 pessoas hospitalizadas, onde só tinha cama para 1.200, onde havia beliches em que um deitava por cima do outro, e onde dado o fato que aquilo existia por tanto tempo, então se observava que aquilo era visto como natural, que as pessoas dormissem no chão, naquela condição. Isto só acontecia na psiquiatria (Gonçalves, mar. 2009).

Este quadro de horror foi também amplamente documentado por registros fotográficos. A coleção de imagens foi realizada entre 1970 e 1978, possui um caráter de denúncia e marcam a entrada de novos profissionais na instituição; hoje faz parte da coleção da Cedope, HCS, em Santa Catarina. As imagens potencializam as falas e relatos dos depoentes, corroborando suas narrativas. Segundo a autora, é importante observar que o sofrimento não deve ser entendido como algo inerente exclusivamente à realidade das instituições psiquiátricas. Nem sempre e nem para todos os seus habitantes o cotidiano dentro destes espaços institucionais foi sinônimo de sofrimento (Wadi, 2004), ao estudar os prontuários de internos do Hospital Psiquiátrico São Pedro, problematizou “a perspectiva de vida de alguns habitantes de instituições psiquiátricas, que a despeito de quão nefandas podiam ser consideradas, buscaram nas mesmas encontrar um lugar para si.

A autora também cita Borges (2006), o qual problematiza o desejo de permanência na instituição por parte de internos do Centro Agrícola de Reabilitação em Viamão (RS), documentando falas e vestígios deixados por pacientes, que revelavam que alguns passavam a se identificar com o local, e suas atividades agrícolas propostas, encontrando espaço na instituição. Assim pode observar que nem todas as memórias a respeito de instituições psiquiátricas da época são marcadas por lembranças ligadas ao sofrimento e maus tratos. Conforme Duarte (1998, p.13), apud Borges não se deve considerar o sofrimento uma simples consequência da internação ou mera criação desta, mas uma dessas formas inevitáveis para lidar com a dimensão entranhada do adoecimento. O que faz o essencial da doença, ou seja, a experiência de uma disrupção das formas e funções regulares da pessoa, implica necessariamente o “sofrimento”, quer seja entendido no sentido físico, restrito, quer no sentido moral, abrangente, que inclui também o sentido físico.

O sofrimento tem algo de subjetivo, pessoal, que não pode ser mensurado ou comparado por fatores externos. É no foro íntimo do ser, dentro da alma, que ele é vivenciado e só pode ser mensurado por quem o vive. Contudo, o sofrimento físico e moral causado pela própria doença, anterior à internação pode, por vezes, ser potencializado por este. Contudo, nos depoimentos, as condições desumanas da instituição são atribuídas principalmente à superlotação, a qual atingiu seu ápice na década de 1970, problema que atormentou, tal como já abordado, todas as instituições psiquiátricas brasileiras nas diferentes regiões do país. Nas falas as condições desumanas da instituição são atribuídas sobretudo à sua superlotação: A Sant’Ana era um depósito de pacientes. Havia mais de 2.000 pacientes internados e lá existiam os chamados leitos-chão. Não sei se usa essa expressão, mas era uma pilha de colchões, cujas pessoas excedentes ali dormiam. Durante o dia, os colchões ficavam empilhados num canto e à noite eram colocados entre as outras camas. Aquilo precisava mudar a Colônia não ia ser mais um depósito (Paraíso, mar. 2009). De acordo com Santos (set. 2009), um dos depoentes entrevistados por Borges (2013): Aqui também tinha o quinto, que era um pavilhão chamado de geladeira, e era insuportável. Tinha na época, uma base de trezentos e cinquenta pacientes todos juntos.... No inverno, não é contar história, não é querer exagerar para ilustrar as coisas, mas eu cansei de recolher os mortos pela manhã quando chegava.... Tinha dia, no inverno forte daquela época, que nós chegávamos de manhã e recolhíamos quatro, cinco mortos, eram então colocados no necrotério, vestidos, porque eles estavam na maioria do tempo pelados. Eram levados para o cemitério no famoso carretão, quatro, cinco caixões no fundo da carreta, amarrados. Era assim, todo inverno eu acho que morriam uma série de vinte, trinta pacientes, por aí, na beira do rio, no inverno constante e forte, sem roupa, no piso, sem cobertor, colchão ou capim, sem medicação apropriada para dormir e para sedar. O que é que podia dar uma situação dessa. Era só morte, só morte, só morte!"

Concluindo, Borges, apud Farge (2011) observa: Trabalhar sobre sofrimento e crueldade em história é também querer erradicá-los hoje. Explicando os dispositivos e os mecanismos de racionalidade que os fizeram nascer, o historiador pode fornecer os meios intelectuais de suprimi-los ou de evitá-los. No cotidiano superlotado, a morte é colocada como algo sempre à espreita, perpassando as diferentes falas. Nesse sentido, outras narrativas impactantes são trazidas pelo enfermeiro Wilson de Paula e pelo médico doutor Ribeiro: Havia uma enfermaria que era chamada de geladeira, porque era muito fria e úmida. Lá tinha vários cubículos onde eram colocados os pacientes mais graves. Um dia eu cheguei lá e encontrei uma mulher agonizante com uma vela acesa na mão, e um monte de moscas em volta. Então, eu perguntei para a freira: o que é isso irmã? Aí ela disse: aqui é o quarto das moribundas, quando as doentes estão muito mal a gente coloca aqui para não morrerem nas enfermarias. (Paula, jan. 2009). Tínhamos que sair pelo hospital para preencher os atestados de óbitos dos pacientes que haviam falecido na noite anterior. Eu e meu colega clínico geral, Aluísio Bonrart, preenchíamos os atestados de óbito com base no que estava escrito no prontuário e nas informações que os atendentes nos davam... Às vezes nós íamos atender pacientes naquela unidade lá atrás que era chamada de “geladeira”; às onze horas da noite aquilo era terrível, era escura, a expressão correta era tétrica. Mas sempre que possível o paciente era trazido até o consultório. Os psiquiatras também não atendiam nas enfermarias. (Ribeiro, abr. 2009).

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Na Instituição superlotada, alguns tratamentos eram realizados sem atender as normativas, colocando a vida dos internos em risco. Era também feito muito eletrochoque. Havia dois funcionários que eram os encarregados de fazer o choque. Era uma seção horrível. Colocavam o colchão no chão, e, aí, quatro pacientes seguravam um outro para que eles aplicassem o choque, e depois seriam os outros que segurariam que iriam sofrer a mesma prática. Isso era terrível (Paula, jan. 2009).

O enfermeiro Santos (set. 2009) relata ter sido um dos responsáveis por aplicar o eletrochoque nos internos. Eu acho que morreu muita gente, era feito muito eletrochoque. Começava às oito da manhã e ia até ao meio-dia, era a manhã toda, só fazendo choque. No dia que eu fazia eletrochoque, à tarde eu chegava em casa tremendo. A gente imobilizava o paciente, e ficava um homem na parte do joelho, um na bacia, e um na parte dos ombros. Se tu mostra aquela valise preta do eletrochoque que vocês guardaram no museu, tem paciente dos mais antigos que vai sair correndo. Eu fui responsável pelo eletrochoque por três anos. O aparelho de eletrochoque foi criado no final da década de 1930, sendo utilizado muitas vezes sem atender a critérios básicos, como o uso de anestesia, conforme evidenciam os depoimentos citados. Na perspectiva de reestruturação do HCS, em 1973 foi instituída a exigência de uma sala apropriada para a realização do eletrochoque, com material para reanimação respiratória, prescrição médica, bem como a presença de um médico e de um enfermeiro durante sua realização.

Conforme Costa (2010, p.172), a partir desse período, a utilização de tal procedimento foi progressivamente abandonada até ser completamente extinta como prática institucional em 1985. Portanto, as entrevistas que trazem os fatos acima narrados servem de um ponto de reflexão, trazendo à tona o sofrimento de testemunhas e entrevistados; o que pode ser interpretado como uma tentativa de buscar tempos mais humanos na história da psiquiatria no Brasil. Reviver estas memórias é trazer à luz uma realidade que se fez presente não somente em Santa Catarina, mas também em outros Estados brasileiros; é criar resistência ao horror, à violação de direitos humanos a que as vítimas eram submetidas. Paralelo à indignação dos depoentes renasce, assim, a esperança de resistência, e do repúdio à tudo que fere a dignidade humana do cidadão brasileiro frágil e dependente dos cuidados da sociedade, dos recursos de Estado. Renasce assim a esperança de melhorias no trato do doente psiquiátrico nas décadas seguintes.

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Sobre a autora
Rosangela Lobo Zizler

Médica, acadêmica de Direito na Anhanguera, Valinhos, e Especialista em Direito do Estado pela LFG Anhaguera, Campinas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZIZLER, Rosangela Lobo. Violações de direitos humanos na história da psiquiatria no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5772, 21 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67093. Acesso em: 23 dez. 2024.

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