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A gestão da prova, pelo juiz, como critério identificador do sistema processual penal vigente no direto brasileiro

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31/07/2018 às 11:15
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4. A INICIATIVA PROBATÓRIA DO JUIZ COMO ELEMENTO DE IDENTIFICAÇÃO DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

Sempre que se está a falar de sistemas processuais penais, a maior parte da doutrina utiliza a separação das atividades como o principal ponto de distinção entre o sistema acusatório e inquisitório. Entretanto, como bem pondera Aury Lopes Jr., seria grande reducionismo pensar que bastaria haver uma acusação (separação inicial das funções) para constituir-se um processo acusatório. É necessário, diz o autor, “que se mantenha a separação para que a estrutura não se rompa e, portanto, é decorrência lógica e inafastável que a iniciativa probatória esteja sempre nas mãos das partes. Somente isso permite a imparcialidade do juiz”.[72]

De igual forma, Sylvio Lourenço Da Silveira Filho observa que o critério da (in)existência da inicial separação entre as atividades de acusar e julgar não se mostra suficiente para delimitar a natureza do sistema processual. Para o autor, a propósito, “essa comum afirmação doutrinária sucumbe diante da análise da Ordonnance Criminelle de 26 de agosto de 1670, do Rei Luis XIV da França, que instaurou um processo de partes, porém manteve a estrutura inquisitorial típica do processo penal canônico do medievo, inclusive com emprego da tortura”.[73]

Nessa mesma ordem de ideias, Nobili leciona que um dos monumentos do sistema inquisitório na Europa Continental, a Ordonnance Criminelle de 1670 de Luís XIV, de fato previa a figura do Ministério Público e, embora aquela que cremos ser característica principal do [sistema] inquisitório – qual seja, a identificação entre órgão da ação (acusação) e órgão da decisão – nem sempre é uma marca indefectível daquele modelo.[74]

Nesse panorama, fica evidente que o critério (apenas) de separação das atividades dos sujeitos processuais não é o quanto basta para delimitar a natureza do sistema processual penal de determinada nação. Isso porque, ainda na esteira de Sylvio Lourenço Da Silveira Filho, é o poder de aquisição da prova que melhor funcionará como parâmetro de delimitação do princípio informador do sistema – se acusatório (princípio dispositivo) ou inquisitório (princípio inquisitivo).[75] Destarte, “é o critério da gestão das provas aquele capaz de promover adequadamente a distinção entre os respectivos sistemas processuais penais”.[76]-[77]

Feitas essas considerações iniciais, proceder-se-á à análise da postura do juiz no processo penal brasileiro, a fim de se verificar se o que vigora no Brasil é, de fato, um sistema acusatório, tal como indiscutivelmente implementado pela Constituição Federal de 1988, ou inquisitório, em que o protagonismo judicial é franqueado aos magistrados, os quais, em tese, deveriam portar-se com imparcialidade.

Adotar-se-á, por todos, como ponto nevrálgico para a abordagem do tema sob análise, o famigerado artigo 156, do Código de Processo Penal, cuja redação foi dada pela 11.690, de 2008, implementada 20 (vinte) anos após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988!

Referido dispositivo, inserido no processo penal 20 (vinte) anos após o advento da Constituição Cidadã, a qual fez clara opção por um sistema processual penal acusatório, traz o seguinte permissivo:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (grifou-se)

No inciso I, verifica-se a autorização legal dada ao juiz para que, mesmo sem qualquer provocação por parte do Ministério Público, o qual é o titular da ação penal (129, I, CF), determine a produção antecipada de provas consideras urgentes e relevantes, até mesmo em sede de inquérito policial. Nada mais absurdo!

Como dito no tópico dedicado à análise dos sistemas processuais, num sistema acusatório não pode o magistrado comportar-se como protagonista, sob pena de quebra da imparcialidade. Às partes cabe a produção de prova, mais precisamente ao Ministério Público, que é quem deve provar a culpa do imputado, já que a inocência é – ou pelo menos deveria ser – presumida.

Não agindo o Parquet, não caberá ao magistrado, terceiro equidistante e imparcial, fazê-lo, até mesmo porque, se as provas são consideradas “urgentes e relevantes”, com mais razão deve(ria) o dominus lites atuar. O juiz deve avaliar a relevância da prova já produzida pela acusação, e não da prova a se produzir.

Mas não é só!

Causa acentuada estranheza o inciso II, do artigo 156, permitir que o magistrado determine, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. Há, aqui, a toda evidência, uma das maiores afrontas ao sistema acusatório e à ordem constitucional posta, que alça à condição de garantia fundamental o princípio da presunção de inocência.

Não custa rememorar, com auxílio de Aury Lopes Jr., que:

[...] ao sistema acusatório lhe corresponde um juiz-espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos e, por isso, mais sábio que experto; o rito inquisitório exige, sem embargo, um juiz-ator, representante dos interesses punitivos e, por isso, um enxerido, versado no procedimento e dotado de capacidade de investigação.[78]

Como falar-se em sistema acusatório se se permite ao juiz, na dúvida, produzir a prova faltante para a tomada de decisão?  Não parece um equívoco sustentar-se que tal permissivo é voltado, exclusivamente, para a acusação, haja vista que para absolver aquele sobre o qual paira a dúvida, bastaria invocar o in dubio pro reo, e não ir em busca da prova absolutória – o que é um contrassenso!

Note-se que a questão é mais complexa do que pode parecer, uma vez que “ao determinar a produção de provas, ainda que, em tese, desconhecendo o resultado final, o julgador está abdicando da posição de espectador e inclinando-se (movimentando-se) em direção à defesa ou à acusação”.[79]

A bem da verdade, percebe-se que essa margem para a atuação do juiz, na prática não revela qualquer possibilidade de propensão às teses defensivas, porquanto, geralmente, quando o magistrado “vai em busca da prova”, em complemento à atividade da acusação, não raro o faz para condenar, visto que, como mencionado, se para absolver fosse, não se faria necessária a atividade do julgador, em razão da presunção de inocência, a funcionar, aqui, como “regra de julgamento” – in dubio pro reo.

Com efeito, razão assiste a André Luiz Chaves Gaspar de Morais Faria quando leciona que, num sistema verdadeiramente acusatório, os poderes instrutórios do juiz não podem ser aceitos, porquanto dessa forma ele estaria ocupando o papel reservado à acusação, o que significaria, em tese, ofensa aos princípios da igualdade, do contraditório, da paridade de armas, ampla defesa e imparcialidade, pois esses poderes investigatórios, após a Constituição de 1988, não pertencem ao juiz.[80]

Ademais, não se pode ser ingênuo ao ponto de acreditar que quando o juiz ordena a produção de uma prova não saiba, em absoluto, que resultado advirá de sua conduta instrutória inquisitiva ativa. É evidente que o “julgador-ator” sabe (bem) aonde quer chegar! Nesse tocante, a propósito, Geraldo Prado preleciona que “a ação voltada à introdução do material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material, se efetivamente incorporado ao feito, possa determinar”.[81]

Assim, tem-se com Geraldo Prado que “quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador”.[82] Até mesmo porque “o juiz que assume a iniciativa probatória deixa de ser um imparcial, pois desde Beccaria, já se tem demonstrado que o juiz que investiga fica mentalmente comprometido com a causa”.[83]

Deveras, tal atuação por parte do julgador conduz, inexoravelmente, ao primato dell’ipotesi sui fatti, gerador de quadri mentali paranoide. Ou seja, opera-se um primado (prevalência) das hipóteses sobre os fatos, porque o juiz que vai atrás da prova primeiro decide (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (provas) que justificam a decisão (que na verdade já foi) tomada. O juiz, nesse cenário, passa a fazer quadros mentais paranoicos.[84]

A toda evidência, a sistemática adotada pelo Código de Processo Penal, inclusive nas reformas posteriores à Constituição Federal, outorga ao magistrado uma inciativa probatória, permitindo induvidosamente um atuar inquisitório, em total violação à imparcialidade, entendida, hoje, como “princípio supremo do processo penal”.

Perceba-se que, se a acusação, por um lado, foi atuante e produziu provas o suficiente para desconstituir o status de inocência do acusado, a condenação se afigura legítima. No entanto, se, por outro, não foi suficientemente boa para tal finalidade, não pode o magistrado investir-se na figura de acusador, devendo, nesse caso, em consonância com Salah Hassan Khaled Jr., “dar por conclusa sua ambição de verdade apesar da existência de lacunas, o que deve implicar obrigatoriamente na absolvição do réu, de acordo com o princípio da presunção de inocência”.[85]

A propósito, Salah Hassan Khaled Jr. observa que, na prática, no entanto, não é bem assim que as coisas acontecem. Segundo o autor, o que ocorre muitas vezes é o contrário:

[...] não há elementos para fundamentar a condenação e o juiz desvirtua o processo de incriminação ao partir em busca de provas. Alguns dirão que o juiz também pode partir em busca de provas para salvar o réu: essa é uma das muitas ilusões que não podem ser sustentadas. Não faz sentido dizer que é necessário procurar elementos para absolver: se há dúvida, a absolvição é uma imposição por força do in dubio pro reo. [86] (grifou-se)

Não se pode perder de mira que se vigorasse, de fato, no Brasil, um sistema acusatório, a inércia do acusador público ou privado não poderia, nem em hipótese, impulsionar o atuar do magistrado, que deve ser equidistante e imparcial, mas, sim, redundar em absolvição por ausência de provas, uma vez que:

[...] embora a acusação não esteja obrigada a comprovar o fato delituoso, se não o fizer arcará com as consequências de sua inercia, o que implicará   necessariamente a absolvição do acusado, pois o juiz, ao contrário do historiador, não pode eximir-se de decidir, devendo, em caso de dúvida, proclamar oficialmente a inocência do réu.[87] (grifou-se)

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Portanto, adverte André Luiz Chaves Gaspar de Morais Faria, citando Afrânio Silva Jardim, “se o ônus da prova incumbe à acusação, a dúvida gerada pelo insucesso na comprovação de suas alegações revela que ele não conseguiu demonstrar a ocorrência técnica do crime e, portanto, não superou a presunção de inocência, restando ao juiz somente um caminho: absolver o acusado”.[88]

Diante de tudo quanto exposto, a despeito de se concordar com a doutrina majoritária que sustenta ter a Constituição Federal de 1988 instituído um sistema penal processual de matiz acusatório, não se pode afirmar que o direito processual brasileiro assim o é (acusatório). Isso porque, na trilha de Aury Lopes Jr.:

[...] dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios, como o famigerado art. 156, I e II, do CPP, externam a adoção do princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminam a principal garantia da jurisdição, que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um processo inquisitório.[89] (grifou-se)

Na mesma direção de Aury Lopes Jr., ao apontar para um sistema de cariz antidemocrático e inquisitório, Salah Hassan Khaled Jr. sustenta que, “Como o critério final de definição do sistema – de acordo com Coutinho – é a gestão da prova, o sistema brasileiro acaba sendo maculado por esse caráter inquisitório”.[90]

À mesma conclusão chega Camilin Marcie de Poli, quando alerta, de forma peremptória, que “O sistema processual penal no Brasil é (e sempre foi) essencialmente inquisitório, e a manutenção desta estrutura processual se deu (e se dá) por razões políticas e ideológicas daqueles que detêm o poder”.[91]

Em síntese, verificam-se, hoje, no Brasil, duas realidades antagônicas entre si: de um lado, a Constituição da República Federativa estabelece(u) um sistema processual penal de cunho acusatório, por meio do qual o juiz deve portar-se como verdadeiro “espectador”, no sentido de não se intrometer na atividade probatória, que deve restringir-se às partes; de outro, porém, o Código de Processo Penal, de 1941, mesmo sofrendo alterações posteriores à Constituição Federal (vinte anos!, para se ser preciso), mantém intacta a cultura inquisitiva, através da qual se outorgam aos juízes poderes instrutórios para que estes, na dúvida, em patente violação ao sistema acusatório, façam as vezes do órgão de acusação, garantindo, assim – sempre, a todo e qualquer custo – a prerrogativa de condenar quem quer que seja.

Deveras, como se nota, não basta que se modifiquem as Leis, se as mentes dos operadores do direito também não mudarem. Hoje, infelizmente, é um diploma infraconstitucional, o qual se contrapõe à Constituição Federal, que está a ditar os rumos do processo penal.

É necessário que a Lei infraconstitucional se adeque à Constituição Federal, e não reverso. Por isso, alerta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “uma mudança radical se faz premente e necessária, de modo a tornar o processo penal compatível com a Constituição da República. E tal reforma há de ser, sem dúvida, na direção do sistema acusatório/adversarial”.

Para tanto, valendo-se outra vez mais das precisas palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, é preciso que todos estejam preparados, o que significa, em primeiro lugar, estar tecnicamente adequado à mudança; num segundo momento, mostra-se cogente uma nova mentalidade, justo porque, como dito, não basta a mera mudança legal; não satisfaz se ter uma nova lei. Afinal, ela é resultado de uma diferente cultura, mas, também, ajuda a forjar essa mesma cultura, dando-lhe contornos outros antes inimagináveis.[92]

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Sobre o autor
Filipe Maia Broeto Nunes

Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Mestre em Direito Penal (sobresaliente) com dupla titulação pela Escuela de Postgrado de Ciencias del Derecho/ESP e pela Universidad Católica de Cuyo – DQ/ARG. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Internacional de La Rioja – UNIR/ESP e em Direito Penal Econômico e da Empresa pela pela Faculdade de Direito da Universidade Carlos III de Madrid - UC3M/ESP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e também Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM, em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM e em Compliance Corporativo pelo Instituto de Direito Peruano e Internacional – IDEPEI e Plan A – Kanzlei für Strafrecht, Alemanha (Curso reconhecido pela World Compliance Association). Foi aluno do curso “crime doesn't pay: blanqueo, enriquecimiento ilícito y decomiso”, da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca – USAL/ ESP, e do Módulo Internacional de "Temas Avançados de Direito Público e Privado", da Universidade de Santiago de Compostela USC/ESP. Membro da Câmara de Desagravo do Tribunal de Defesa das Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso - OAB/MT; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM; do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico - IBDPE; do Instituto de Ciências Penais - ICP; da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT; Membro efetivo do Instituto dos Advogados Mato-grossenses - IAMAT e Diretor da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim. Autor de livros e artigos jurídicos, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Filipe Maia Broeto. A gestão da prova, pelo juiz, como critério identificador do sistema processual penal vigente no direto brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5508, 31 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67126. Acesso em: 7 mai. 2024.

Mais informações

Artigo científico apresentado ao Instituto drasileiro De Ciências Criminais (IBCCRIM) e ao Instituto de Direito Penal Económico e Europeu (Idpee), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, como requisito final para obtenção do título de Pós-graduação em Processo Penal.

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