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A manipulação da mídia nos processos criminais

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23/09/2019 às 14:45
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 9-  PROPORCIONALIDADE COMO INSTRUMENTO PACIFICADOR

A harmonização do choque axiológico entre liberdade de expressão e garantias individuais do acusado deve ser feita com cautela, haja vista que, se por um lado aquela é um dos baluartes do regime democrático, por outro, estas também não podem ser amesquinhadas, por serem princípios reitores do Estado de Direito.     Considerando que ambos os valores supra aludidos têm raízes constitucionais, torna-se imperioso fazer uma leitura dialética da Carta Magna, em busca de fundamentos também constitucionais para dirimir o prélio axiológico posto. Sobre o assunto, preleciona Barroso (2008, p. 357358):

A dificuldade que se acaba de descrever já foi amplamente percebida pela doutrina; é pacífico que casos como esses não são resolvidos por uma subsunção simples. Será preciso um raciocínio de estrutura diversa, mais complexo, que seja capaz de trabalhar multidirecionalmente, produzindo a regra concreta que vai reger a hipótese a partir de uma síntese dos distintos elementos normativos incidentes sobre aquele conjunto de fatos. De alguma forma, cada um desses elementos deverá ser considerado na medida de sua importância e pertinência para o caso concreto, de modo que na solução final, tal qual em um quadro bem pintado, as diferentes cores possam ser percebidas, ainda que uma ou algumas delas venham a se destacar sobre as demais. Esse é, de maneira geral, o objetivo daquilo que se convencionou denominar técnica da ponderação.

Percebe-se que o desenlace desse suposto conflito de normas principiológicas deve ser perquirido à luz da realidade concreta subjacente, já que as normas aplicáveis estão abstratamente no mesmo plano hierárquico. Portanto, os direitos fundamentais que, sacramentados sob a roupagem de princípios constitucionais, coabitam harmonicamente num espectro abstrato (externando a unidade do sistema jurídico), por vezes se apresentam em posições antagônicas quando transpostos para o plano concreto, razão pela qual demandam a intervenção de um fator compatibilizante.

Esse ingrediente harmonizador é encontrado na técnica da ponderação, assim entendido o procedimento racional que, a partir da identificação de uma conjuntura normativa colidente, passa a aferir o peso que cada princípio vai exercer diante de um caso concreto, ditando a prevalência de um preceito em detrimento do outro na hipótese examinada. Nessa atividade "eletiva", deve se ter em mente a preservação máxima do núcleo essencial de cada um dos princípios em pauta, vez que a preterição de um deles num caso específico não implica seu alijamento da ordem jurídica; pelo contrário, o preceito "rejeitado" – em parte ou no todo – mantém-se hígido e passível de ser aplicado em outras situações.

Ora, não há preceitos absolutos, passíveis de serem acatados irrestritamente em qualquer ocasião. A existência de uma situação colidente em potencial faz emergir a necessidade lógica de um princípio da proporcionalidade, como forma de preservação dos direitos fundamentais em jogo. Em sentido estrito, a proporcionalidade traduz a obrigação de que a ingerência em um direito fundamental seja motivada por causas tão graves quanto o vilipêndio a ele imposto. Em outras palavras, deve haver um equilíbrio entre os efeitos positivos do valor sobrelevado e o ônus infligido ao preceito antagônico. Assim, no que tange à exploração midiática de incidentes de repercussão criminal, deve ser perquirido se o escopo de garantir o devido processo legal justifica eventual restrição à cobertura da imprensa. Trata-se de indagações palpitantes:

 "As vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde à desvalia da restrição causada?" (ÁVILA, 2005, p. 124).

Esse estágio da ponderação requer maior cautela, vez que dá margem à subjetividade do intérprete, influenciado por seu repertório de valores e impressões pessoais. Para evitar essa "contaminação", há de ser perquirida uma solução que se pretenda universal e busque a concordância prática, diminuindo ao máximo o sacrifício do direito fundamental em oposição (SCHREIBER, p. 4142).

Conclui-se, pois, que o ordenamento jurídico não profetizou soluções apriorísticas em matéria de colisão de princípios constitucionais. Ao refletir sobre o sopesamento dos preceitos colidentes quando a mídia passa a se ocupar ativamente de eventos delitógenos a serem apreciados pelo Poder Judiciário, Sérgio Ricardo de Souza (2008, p. 143144) obtempera:

 Essa é uma situação típica onde a melhor solução se encontra na aplicação da ponderação de valores, através do critério exalado do princípio da proporcionalidade, como forma de definição do bem jurídico que deve preponderar, se a proteção da honra, refletida através do nome ou da imagem vinculados a um fato caracterizar infração de natureza penal e, por via de consequência, a própria garantia da personalidade como um reflexo da dignidade da pessoa humana daquele investigado, ou, a liberdade de informação jornalística, exercida neste caso com o objetivo precípuo de bem informar à sociedade sobre os riscos que cada um de seus membros estaria correndo em face de o investigado encontrar-se solto; ou mesmo da desmoralização do sistema judiciário estatal em face de um remisso em cumprir as normas sociais se esquivar de submeter-se ao procedimento estatal legalmente criado para investigar a sua conduta.

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O princípio da proporcionalidade apresenta-se, enfim, como o instrumento pacificador das tensões detectadas ao longo do presente estudo. Para se chegar a um desenlace mais próximo ao ideal de justiça, é mister enxergar a problemática sob a lente da dignidade da pessoa humana.


10- CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mídia, indubitavelmente, exerce papel de fundamental importância numa sociedade livre e pluralista, justa e solidária pelo que a liberdade de expressão constitui princípio fundamental num Estado que se pretenda democrático e de direito. O que não deve ser aceito é a prática desrespeitosa à dignidade humana, pois ninguém perde a qualidade de ser digno por haver cometido um delito, por mais horrendo que este possa ser, tampouco pela infelicidade de encontrar‐se segregado.

Assim, exercendo de fato e ilegitimamente um “quarto poder” da República, a mídia influencia diretamente os magistrados que são parte desta sociedade. A influência nefasta e espetacularizada, que conduz a uma lei penal inócua deve ser combalida. Por outro lado, o debate público e democrático deve ser estimulado e mantido pelos meios de comunicação. Porém, como se pôde observar, a mídia, na gigantesca maioria dos casos, exerce um papel danoso nos julgamentos efetuados pelos órgãos do Poder Judiciário.

 A aplicação da lei não deve ser produto do espetáculo espalhafatoso dos meios de comunicação em massa. O julgador não deve de plano atender aos apelos midiáticos. Mudanças urgentes devem ser estabelecidas nos veículos de comunicação, como por exemplo, a inclusão de matérias jurídicas nos cursos de Graduação em Jornalismo. A mídia, assim como o sistema penal, constitui uma forma de controle social institucionalizado. Em face do hiato existente entre o Judiciário e o homem comum, os veículos midiáticos assumem a função de decodificar a linguagem técnico-jurídica e, no exercício desse mister, findam por se travestir num verdadeiro tribunal popular.

 Por um lado, a liberdade de informação jornalística é princípio inarredável de um Estado que se pretende democrático, pois, ao tornar transparente a atuação dos órgãos estatais, permite o engendramento de uma sociedade participativa. Deve ser arredada qualquer tentativa de estabelecer uma censura às atividades dos meios de comunicação.

Porém, sob outro prisma, urge reconhecer que a desmesurada cobertura jornalística sobre um fato penalmente acoimável pode acarretar graves danos aos direitos da personalidade da pessoa exposta como suspeita. Se os pormenores do incidente delitógeno não forem narrados de maneira responsável, corre-se o risco de atingir a intimidade, a honra e a imagem do indivíduo investigado ou processado, num flagrante desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

É imperioso que a comunidade jurídica comece a refletir sobre a ingerência dos meios de comunicação no funcionamento do Sistema de Justiça Criminal, a fim de identificar os problemas que hodiernamente fragilizam o Estado Constitucional de Direito num viés de recrudescimento da sanha punitiva estatal.

Enfim, o liame entre mídia e sistema penal é permeado, em toda sua extensão, por conflito de valores de matiz constitucional, não existindo parâmetros preestabelecidos e absolutos para o equacionamento da relação. A solução desse enfrentamento deve ser buscada à luz da casuística e através da técnica da ponderação. Apenas o sopesamento de princípios diante do caso concreto poderá conduzir o aplicador do Direito a uma solução mais afinada com os ideais de justiça.  

  Um dos direitos mais sagrados do cidadão é o de se comunicar de forma livre e espontânea. Não se defende aqui a restrição à liberdade de expressão ou à liberdade de imprensa. Ocorre que, diante do quadro afigurado, deve‐se clamar por uma imprensa mais livre e menos contaminada. O papel da imprensa precisa ser urgentemente repensado. Imprensa, liberdade e democracia devem caminhar pari passu. Liberdade sem limites é tirania!


11- REFERÊNCIAS

  1. ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e poder judiciário: a influência dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
  2. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
  3. AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Os direitos do preso e a mídia. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 10, n. 114, p. 710, mai. 2002.
  4. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição:fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed., rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
  5. BASTOS, Márcio Thomaz. Júri e Mídia. In: TUCCI, Rogério Lauria (org). Tribunal do Júri:Estudo Sobre a Mais Democrática Instituição Jurídica Brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 112116.
  6. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos:Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro:
  7. BAUDRILLARD,Jean.Simulacros e simulação.Edição no Brasil_Livros do Brasil;1993, pag 71-72
  8. CRETELLA JR, José. Crimes e julgamentos famosos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
  9. DAMATTA, Roberto. Tocquevilleanas notícias da américa: crônicas e observações sobre os estados unidos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
  10. DELMANTO, Celso. A pressa de punir e os atropelos do legislador. São Paulo. Revista dos Tribunais. 667/388.
  11. BONJARDIM, Estela Cristina. O acusado, sua imagem e a mídia. São Paulo: Max Limonad, 2002.
  12. BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  13. CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antônio Cardinalli. 6. ed. Campinas: Bookseller, 2005.
  14. CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Trad. Ester KosovsKi. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
  15. CÂMARA, Juliana de Azevedo Santa Rosa. Sistema penal e mídia: breves linhas sobre uma relação conflituosa . Revista Jus Navigandi, Teresina,ano 10.n. 3083, 10 dez. 2011. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/20616>. Acesso em: 28 jul. 2016.
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  17. CHAUI, Marilena. Simulacro e poder: Uma análise da mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.
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  21. GOMES, Luiz Flávio. Mídia e criminalidade. JusPODIUM. 2004. Disponível em <www.podium.com.br>. Acesso em 29/07/2016.
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  23. KARAM, Francisco José. A ética jornalística e o interesse público. 1. ed. São Paulo: Summus Editorial, 2004.
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  25. MAIA, Humberto Ibiapina Maia. A mídia versus o direito de imagem na investigação policial. Disponível em <www.pgj.ce.gov.br> Acesso em 29/07/2016.
  26. MATTEUCCI, Nicola. Opinião Pública. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Org). Dicionário de Política.Vol. 2. Trad: Carmem C. Varriale et. al. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992. p. 842845.
  27. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal. São Paulo: Atlas. 2000.
  28. MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes hediondos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
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  30.  QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
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  32. ROCHA, Fernando Luiz Ximenez. Mídia, processo penal e dignidade da pessoa humana. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 171. Out. 2003.
  33. SANCHES, Ademir Gasques. Estatuto do desarmamento: crimes semi‐hediondos. Disponível na Internet. <http://www.ibccrim.org.br> Acesso em 27/07/2016.
  34. SANTIN, Giovane. Mídia e Criminalidade: uma leitura interdisciplinar a partir de Theodor Adorno. Dissertação apresentada ao Programa de Pós‐Graduação em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre.
  35. SILVA, Cícero Henrique Luís Arantes da. A mídia e sua influência no sistema penal. Disponível na internet <:http://www.ibccrim.org.br> Acesso em 29/07/2016.
  36. SHECAIRA, Sérgio Salomão. A mídia e o direito penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.45, p. 16, ago. 1996.
  37. SCHREIBER, Simone. A Publicidade Opressiva de Julgamentos Criminais.1 ed. São Paulo: Renovar, 2008.
  38. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A mídia e a lei da mordaça.Boletim IBCCRIM. São Paulo, n. 94, set. 2000.
  39. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal.8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
  40. VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
  41. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.Trad: Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.


11- NOTAS

1. Segundo o escólio de Zaffaroni (1991, p. 137), agências executivas do sistema penal consistem em "segmentos institucionalizados não judiciais" que atuam de forma compartimentalizada, dispondo de armas e discursos próprios para operacionalizar sua parcela de poder. O sistema penal, então, finda por ser a resultante do somatório do exercício independente desses "poderes".

2. O programa televisivo em questão era transmitido nas noites de quinta-feira entre 1999 e 2008.

3. A época com 22 anos de idade, a atriz foi assassinada por Guilherme de Pádua – colega de elenco na novela "De Corpo e Alma – e por sua mulher, Paula Thomaz. O homicídio foi concretizado com dezoito golpes de punhal.

4. O caso “ Pinté” ocorrido no interior do Estado do Acre, chamou a atenção pela espetacularização, com um júri a toque de caixa e um caso ainda envolto numa nuvem de dúvidas e interesses políticos.

5. O incêndio na Boate Kiss causou a morte de 242 pessoas, a maioria por asfixia .Os quatro acusados de serem responsáveis pelo incêndio serão julgados pelo Tribunal do Júri. A decisão foi proferida  na data de 27/07/2016  pelo juiz Ulysses Fonseca  Louzada, titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Santa Maria, cidade da região central do Rio Grande do Sul onde ocorreu o incêndio, em janeiro de 2013.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRADO, Jonas Vieira. A manipulação da mídia nos processos criminais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5927, 23 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67145. Acesso em: 19 abr. 2024.

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