7- A cobertura midiática e o trial by the media
Numa ordem jurídica democrática, o processo penal tem o desiderato de servir como instrumento de contenção do poder estatal e de maximização da eficácia dos direitos e garantias fundamentais, em detrimento de movimentos de lei e ordem (LOPES JUNIOR, 2006, p. 1). O processo não pode se render à ideia de que as garantias constitucionais configuram obstáculos ao combate à criminalidade. Semelhante concepção finda por furtar a racionalidade do sistema, já que infunde no âmbito infraconstitucional uma postura de negação ao modelo garantista delineado pela Carta Magna.
A ingerência midiática nos meandros jurisdicionais tem início antes mesmo da deflagração da ação penal. Já na fase inquisitória, a exposição prematura de um mero suspeito através de discursos categóricos que na verdade externam meras hipóteses a guiarem o procedimento apuratório tem a potencialidade de produzir efeitos deletérios tanto para a polícia como para o investigado. A um, porque compromete o sigilo que deve permear as investigações, como preconiza o Código de Processo Penal em seu art. 20. Tal segredo é necessário para não obstruir as diligências realizadas com o intuito de descortinar os pormenores do crime ultimado e,
em si mesmo, não significa uma burla ao Estado Democrático de Direito, mas sim sua imposição abusiva, sem fundamento no interesse público ou social, ou em outro valor constitucionalmente relevante" (VIEIRA, 2003, p. 195).
Ademais, a divulgação da estratégia policial serve como um aviso ao suposto agente delitivo, permitindo que este se antecipe às autoridades e logre êxito em suas esquivanças. A dois, porque a publicização da fase inquisitorial não apenas exibe como troféu a identidade de um mero suspeito, como também atinge por extensão seus familiares, os quais são vitimados pela maledicência da coletividade, numa manifesta violação ao princípio da intranscendência, a preconizar que a reprimenda não pode ultrapassar a pessoa do agente delitivo.
Os meios de comunicação de massa, ao infundirem em suas reportagens um juízo prévio acerca dos fatos criminosos perscrutados pela autoridade policial, findam por condenar precocemente o investigado. A "sentença midiática" prescinde de formalidades e "transita em julgado" perante a opinião pública sem que seja franqueada àquele sentado no banco dos réus a oportunidade de se defender ou, ao menos, ter conhecimento de todas as acusações que lhe são imputadas (VIEIRA, 2003, p. 168).
Conquanto não haja, nesse ponto, uma sentença condenatória definitiva, a exposição midiática do caso já vaticina o veredicto popular na maioria das vezes, é desfavorável ao réu – que, por seu turno, é condicionado pelo retrato cuidadosamente pintado pela imprensa. A reverberação jornalística em acontecimentos desse jaez perdura tão somente até meados do processo, vez que o tempo acarreta a lassidão da atmosfera emotiva que envolve a audiência, fazendo com que esta perca o interesse sobre o evento tantas vezes reiterado nas telas de TV ou nas páginas de jornais e revistas. A sentença proferida, mesmo que de cunho absolutório, não tem força para desvanecer as nódoas cravadas pelo processo, cuja formulação de hipóteses que caracteriza seu início é transmudada em certeza pela ação da imprensa.
"É muito mais fácil abrir uma ferida do que fechá-la, sem deixar marcas ou cicatrizes" (LOPES JR., 2006, p. 7).
Essa face justiceira da mídia é examinada por Márcio Thomaz Bastos (1999, p. 115116):
Levar um réu a julgamento no auge de uma campanha de mídia é levá-lo a um linchamento, em que os ritos e fórmulas processuais são apenas a aparência da justiça, encobrindo os mecanismos cruéis de uma execução sumária. Trata-se de uma pré-condenação, ou seja, a pessoa está condenada antes de ser julgada, tal como bem definido no Black’s Law Dictionary; no verbete Trial by news media: "É o processo pelo qual o noticiário da imprensa sobre as investigações em torno de uma pessoa que vai ser submetida a julgamento acaba determinando a culpabilidade ou a inocência da pessoa antes de ela ser julgada formalmente.
A concretização do fenômeno do trial by media acarreta a mudança do locus de julgamento: cria-se um juízo paralelo que, embora mais célere, repudia as garantias do increpado. Em meio a esse quadro, opera-se uma inversão na mente das pessoas, já que o "comando sentencial condenatório" é passado em julgado antes mesmo do fim da instrução processual. Os ingredientes para a implementação do trial by media são hauridos dos efeitos decorrentes do princípio da publicidade. Tal preceito tem sido usado pela mídia como algoz dos direitos processuais do penalmente acusado, vez que a transformação do processo em espetáculo possui uma tendência de privilegiar a versão acusatória. Habermas (1984, p. 241242) diagnostica no fenômeno uma inversão no princípio crítico da publicidade: ao invés de servir como freio ao exercício arbitrário do jus puniendi estatal, os mass media laboram cada vez mais com o intuito de trabalhar os processos para atender ao desejo de entretenimento dos consumidores.
Dentre as garantias processuais constitucionais esmorecidas pela cobertura midiática do processo penal, figura o princípio do estado de inocência. Ora, a presunção ou estado de inocência nada mais é que uma presunção política, assegurando o status libertatis do acusado em face do interesse coletivo de punição criminal (VIEIRA, 2003, p. 171). Nessa perspectiva, "o processo penal deixa de ser um mero instrumento de realização da pretensão punitiva do Estado, para se transformar em instrumento de tutela da liberdade". (SCHREIBER, 2008, p. 189).
Ocorre que a imprensa, ao exibir pessoas acusadas de envolvimento em fatos criminosos numa fase incipiente das investigações, monta uma exposição de tal forma deturpada que acaba por neutralizar o princípio da presunção de inocência e, ao submeter o indivíduo a um precoce julgamento público, subverte o preceito em foco em privilégio de uma verdadeira presunção de culpabilidade. O sensacionalismo midiático desperta na sociedade um arroubo vingativo e, consequentemente, uma demanda irascível por uma resposta repressiva do Direito Penal. A opinião pública vislumbra o encarceramento provisório como uma antecipação da pena, antepondo o término do processo penal ao seu início.
Pressionados pelo alarma social fomentado pela mídia, os magistrados socorrem-se do conceito aberto da expressão ordem pública, elencado pelo art. 312 do Código de Processo Penal como fundamento da prisão preventiva, para decretar a prisão de réus com o implícito propósito de atender ao clamor público. O clamor social, por vezes, esconde-se sob o conceito de ordem pública, cabendo ao magistrado avaliar se esta foi realmente afetada ou se o foi apenas pelo noticiário (TOURINHO FILHO, 2006, p. 614). Quando o segregamento preventivo é decretado com o escopo precípuo de abrandar o rogo popular pela antecipação da punição ao suposto culpado, a prisão perde o viés de cautelaridade que deveria circundá-la, vez que um provimento cautelar visa assegurar a eficácia do processo principal. Não obstante a interferência dos mass media seja mais notória durante o trâmite do inquérito processual e do processo penal, é mister atentar também para a exposição midiática de indivíduos já sentenciados.
A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), com o propósito de impedir investidas tendentes a frustrar a reintegração social do preso, catalogou a "proteção contra o sensacionalismo" no rol de direitos do preso (art. 41, inciso VIII) e proscreveu a exposição do preso "à inconveniente notoriedade durante o cumprimento da pena" (art. 198). Donde, a doutrina aventa a existência de um direito ao esquecimento como limite à liberdade de informação jornalística. Através do direito ao esquecimento, objetiva-se reintegrar o ex presidiário na sociedade, que poderia ser comprometido com a indiscrição da imprensa durante a fase executória da pena.
8- MÍDIA E A CRIMINALIDADE: DESTAQUE PARA A TELEVISÂO
Atualmente a mídia nos traz a ideia de que tudo deve ser rápido, veloz e consumível. Já dizia o poeta Cazuza que “o tempo não para, não para não”. As mudanças na sociedade denominada de pós‐moderna são cada vez mais contínuas e num fluxo quase imperceptível que já se questiona a possibilidade de termos já ultrapassado a pós modernidade. Dentre as grandes mudanças da pós‐modernidade, Giovani Santin destaca que a principal delas ocorreu na comunicação mundial. No passado, a mídia televisiva apenas reproduzia o que a mídia impressa trazia. Atualmente é a Televisão que comanda a agenda da Mídia devido a seus avanços tecnológicos que proporcionaram velocidade e instantaneidade. È o mundo da aceleração e da velocidade da luz que dita a regra para os outros órgãos da comunicação. Destacando o papel da televisão como carro‐chefe dos veículos de comunicação Santin aduz:
“Tomando a dianteira na hierarquia da mídia, a televisão impõe aos outros meios de informação suas próprias perversões, em primeiro lugar com seu fascínio pela imagem”.
E com esta ideia básica de que só o visível merece informação, ou seja, o que não é visível e não tem imagem não é televisável, portanto, não existe midiaticamente. Os eventos produtores de imagens fortes – violências, guerras, catástrofes, sofrimento de todo tipo – tomam, portanto, a preeminência na atualidade: eles se impõem aos outros assuntos mesmo que, em termos absolutos, sua importância seja secundária. O choque emocional provocado pelas imagens da TV – sobretudo aquelas de aflição, de sofrimento e de morte – não tem comparação com aquele que os outros meios podem provocar. Por sua vez, a imprensa escrita, obrigada a continuar, pensa que pode recriar a emoção sentida pelos telespectadores publicando textos (reportagens, testemunhos, confissões) que atuam, da mesma maneira que as imagens, no registro afetivo e sentimental, dirigidas ao coração, à emoção e não à razão e à inteligência.Esses conteúdos tem a clara intenção de manipular e segundo Jean Baudrillard atinge o objetivo de atingir a massa:
A televisão é ela também um processo nuclear em cadeia, mas implosivo: arrefece e neutraliza o sentido e a energia dos acontecimentos... as redes geram uma quantidade de informações que ultrapassam limites a ponto de influenciar na definição da massa crítica. Todo o ambiente está contaminado pela intoxicação midiática que sustenta este sistema. A dependência deste “feudalismo tecnológico” faz-se necessária para que a relação com dinheiro, os produtos e as ideias se estabeleça de forma plena. Esta é a servidão voluntária resultante de um sistema que se movimenta num processo espiral contínuo de auto sustentação. BAUDRILLARD.Jean.Simulacros e simulação.Edição no Brasil_Livros do Brasil;1993, pag 71-72
No Brasil e no Mundo o capitalismo moderno foi construído concomitantemente ao desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. O controle dos conteúdos de informação de determinada sociedade em determinada época sempre foi do interesse dos dirigentes do período. O que se observou, então, foi uma abissal concentração de poder com relação aos domínios dos meios de comunicação. No Brasil, apenas nove famílias (Marinho, Bloch, Santos, Saad, Frias, Mesquita, Levy, Civita, e Nascimento Brito) controlam cerca de noventa por cento de tudo o que os brasileiros leem, ouvem e veem através dos meios de comunicação social. Voltamos então à questão do “Quarto Poder”. Quem controla essa totalidade da comunicação acaba detendo um poder de fato. Um poder que pode selecionar, falsear e, sobretudo silenciar. Oportuna é a lição de Guareschi:
Se é a comunicação que constrói a realidade, quem detém a construção dessa realidade detém também o poder sobre a existência das coisas, sobre a difusão das ideias, sobre a criação da opinião pública. Mas não é só isso. Os que detêm a comunicação chegam até a definir os outros, definir determinados grupos sociais como sendo melhores ou piores, confiáveis ou não confiáveis, tudo de acordo com os interesses dos detentores do poder. Já foram feitos estudos interessantes sobre o que determinados povos pensam de outros povos. Essa opinião está baseada, principalmente, nas informações que as pessoas recebem. Em estudos e pesquisas realizados no campo da comunicação, verificou‐se que a opinião pública é preparada com informações sobre determinadas populações de tal modo que isso pode chegar a justificar até mesmo uma invasão de um país adversário.
A pesquisa de Hester (1976) mostrou que, de cada 100 notícias enviadas do bureau das Associated Press de Buenos Aires para o quartel central dos Estados Unidos, apenas 8 eram aproveitadas. Mas o mais sério era que das 8 aproveitadas, 4 eram notícias que falavam de violência e criminalidade – quando das 100 originais, apenas 10 eram sobre o assunto. Com isso, os países informados por essas agências vão formando opinião, construindo imagens sobre determinados povos, identificando‐os como criminosos e violentos. Não é difícil, posteriormente, legitimar uma invasão ou retaliações sobre populações que, para a grande maioria, são criminosas e violentas.