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A invalidade do negócio jurídico em face do novo conceito de capacidade civil

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30/08/2018 às 08:33
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A deficiência não é mais causa de incapacidade civil. O que fazer então se a pessoa experimenta prejuízo ao celebrar um negócio jurídico em virtude da sua deficiência?

Artigo dedicado ao amado Swami Sri Yukteswarji.


Introdução

Questão que tem me intrigado profundamente, sem diretrizes até então muito nítidas, diz respeito ao tratamento da validade do negócio jurídico celebrado por pessoa com deficiência.

Nesse breve artigo, tecerei algumas considerações sobre o tema.

Para tanto, faz-se necessário passar alguns pontos em revista[1].

Como se sabe, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência  e o seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, foram ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008.

Trata-se de uma Convenção dotada de natureza jurídica diferenciada, na medida em que tem força de Emenda Constitucional.

Pois bem.

Esta Convenção, em seu artigo 12, item 2, expressamente dispôs:

Artigo 12[2]

Reconhecimento igual perante a lei 

       2.Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. (grifei)

Friso: capacidade legal em igualdade de condições.

É de clareza meridiana, portanto, que a nova concepção da “capacidade”, em uma perspectiva inclusiva e não-discriminatória, não é fruto do Estatuto da Pessoa com Deficiência - que atuou apenas em nível legal regulamentar, conforme lembra o excelente FLÁVIO TARTUCE[3] - mas da própria Convenção - inserida no ordenamento pátrio com matiz de norma constitucional.

Vale dizer, foi a própria Convenção de Nova York que estabeleceu o novo paradigma da capacidade, para, nesse novo conceito - rompendo com a antiga dualidade capacidade de direito x de fato - contemplar todas as pessoas, mesmo aquelas que, para atuarem, se valham de um instituto assistencial ou protetivo[4].

Por isso, é fácil perceber que o novo conceito de capacidade fora moldado, não no simples cadinho da regra civil, mas na poderosa forja da norma constitucional.

Tal aspecto, inclusive, já havia sido observado pelo grande jurista PAULO LÔBO, quando, discorrendo sobre o tema, afirmou:

“A Convenção, nessa matéria, já tinha derrogado o Código Civil”[5].


2. A Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência)

Resta, pois, fixada a premissa de que o art. 12 da Convenção de Nova York, vigorando em todo o território brasileiro com força de norma constitucional, explicitamente reconstruiu o paradigma da capacidade, em uma perspectiva inclusiva e afinada com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Com isso, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146 de 06 de julho de 2015) nada mais fez do que dar aplicabilidade específica às normas internacionais.

E, por óbvio, sob pena de manifesta inconstitucionalidade, não poderia, o Estatuto, ir de encontro à Convenção.

Com a entrada em vigor do Estatuto, vale salientar, a pessoa com deficiência não seria mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que, respeitando a diretriz da Convenção de Nova York,  os arts. 6º e 84, do mesmo diploma legal, deixam claro que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa:

Art. 6o  A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive[6] para:

I - casar-se e constituir união estável;

II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. (grifei)

Art. 84.  A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. (grifei)

Esse último dispositivo é claro: a pessoa com deficiência é legalmente capaz, ainda que pessoalmente não exerça os direitos postos à sua disposição.

Poder-se-ia afirmar, então, que o Estatuto inaugura um novo conceito de capacidade, paralelo àquele previsto no art. 2º do Código Civil[7]?

 Em meu sentir, não há um novo conceito, voltado às pessoas com deficiência, paralelo ao conceito geral do Código Civil.

 Se assim o fosse, haveria um viés discriminatório e inconstitucional.

 Em verdade, o conceito de capacidade civil foi reconstruído e ampliado.

E já se notam reflexos na jurisprudência:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INTERDIÇÃO - LEI No 13.146/15 - DEFICIENTES - PLENA CAPACIDADE CIVIL - NOMEAÇÃO DE CURADOR - POSSIBILIDADE - ASSISTÊNCIA NOS ATOS DE NATUREZA PATRIMONIAL E NEGOCIAL - PROCEDÊNCIA PARCIAL. - Nos termos da Lei no 13.146/15, a deficiência, seja de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, não afeta a plena capacidade civil da pessoa, que mantem o direito de exercê-la, em igualdade de condições com as demais. - Os deficientes poderão ser submetidos a curatela, desde que o caso efetivamente exija a proteção extraordinária, porém o curatelado somente será assistido nos atos relativos às questões patrimoniais e negociais, mantida sua capacidade e sua autonomia para todos os demais atos da vida civil. (TJMG - Apelação Cível 1.0003.14.004025-8/001, Relator(a): Des.(a) Amauri Pinto Ferreira , 3a CÂMARA CÍVEL, julgamento em 16/02/2017, publicação da súmula em 14/03/2017)

Com a derrocada do conceito tradicional de capacidade, para contemplar a pessoa com deficiência, dois artigos matriciais do Código Civil foram reestruturados pelo Estatuto.

Isso porque, por imperativo lógico, as previsões de incapacidade civil derivadas da deficiência deixaram de existir.

 O art. 3º do Código Civil, que dispõe sobre os absolutamente incapazes, teve todos os seus incisos revogados, mantendo-se, como única hipótese de incapacidade absoluta, a do menor impúbere (menor de 16 anos).

O art. 4º, por sua vez, que cuida da incapacidade relativa, também sofreu modificação. No inciso I, permaneceu a previsão dos menores púberes (entre 16 anos completos e 18 anos incompletos); o inciso II, por sua vez, suprimiu a menção à deficiência mental, referindo, apenas, “os ébrios habituais e os viciados em tóxico”; o inciso III, que albergava “o excepcional sem desenvolvimento mental completo”, passou a tratar, apenas, das pessoas que, "por causa transitória ou permanente, não possam exprimir a sua vontade"[8]; por fim, permaneceu a previsão da incapacidade do pródigo.


3. A Pessoa com Deficiência e a Teoria da Invalidade do Negócio Jurídico 

Ora, se a deficiência não é mais causa de incapacidade civil, a invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio jurídico por incapacidade derivada de deficiência não existe mais[9].

Nesse ponto, há de se reconhecer, a Convenção de Nova York e a Lei Brasileira de Inclusão poderiam nos conduzir ao reconhecimento de uma indesejável “desproteção”.

Tal preocupação não passou despercebida ao atento olhar de JOSÉ FERNANDO SIMÃO:

"Isso significa que hoje, se alguém com deficiência leve, mas com déficit cognitivo, e considerado relativamente incapaz por sentença, assinar um contrato que lhe é desvantajoso (curso por correspondência de inglês ofertado na porta do metrô) esse contrato é anulável, pois não foi o incapaz assistido. Com a vigência do Estatuto esse contrato passa a ser, em tese, válido, pois celebrado por pessoa capaz"[10].

É compreensível que a entrada em vigor de um microssistema tão amplo e poderoso, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a despeito do seu viés inclusivo e isonômico, deflagre certos efeitos colaterais indesejados.

Mas é tarefa da doutrina e da jurisprudência, cientes da matriz constitucional do Estatuto, imprimir-lhe uma interpretação justa, razoável e harmônica, que preserve os seus próprios fins.

É preciso ter em mente que o legislador, seguindo as normas do Direito Internacional, optou por tratar a pessoa com deficiência em uma perspectiva que priorizasse a sua autonomia e capacidade de autodeterminação.

Até porque, na multifária escala da deficiência, coexistem diversos matizes, graus e especificidades.

Nesse mosaico, preferiu-se abolir o rótulo da incapacidade - mesmo em favor dos que se valem da curatela para atuar na vida social-, o que pode não parecer muito para certos intérpretes, mas, para aqueles que vivem a realidade da deficiência, em diferentes escalas, é uma imensa conquista.

Vale dizer, no sistema anterior, sob o argumento da "proteção estatal", impunha-se ao deficiente o rótulo da incapacidade, oficializado em sua interdição, alijando-o, na prática, das suas potencialidades; no sistema atual, prestigia-se a sua autonomia, reconhecendo-o legalmente capaz, ainda que, excepcionalmente, dependa de certos instrumentos oficiais de proteção.

Nessa linha, considerando-se que a deficiência não é mais causa de incapacidade civil, não se podendo, pois, como visto, invalidar (por nulidade absoluta ou relativa) o negócio celebrado com esse fundamento, pergunta-se: se a pessoa, em virtude da sua deficiência, experimenta prejuízo ao celebrar um negócio jurídico, o que fazer?

Nesse ponto, algumas situações devem ser consideradas.

a) a pessoa com deficiência tem curador nomeado:

A curatela, restrita a atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, passou a ser uma medida extraordinária (art. 85):

Art. 85.  A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.

§ 1o  A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.

§ 2o  A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.

§ 3o  No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado. (grifei)

   Note-se que a lei não diz que se trata de uma medida "especial", mas sim, "extraordinária", o que reforça a sua excepcionalidade.

Pois bem.

Nessa linha, temos que a prática de ato negocial sem a presença do curador - e note-se que estamos diante de uma modalidade nova e especial de curatela, protetiva de uma pessoa capaz - resulta na inexistência ou nulidade absoluta do ato negocial[11].

A hipótese em que, por exemplo, consegue-se apor a digital de uma pessoa, com grave paralisia (não alfabetizada), em um documento, sem a intervenção do seu curador, poderia nos conduzir a uma hipótese de inexistência do negócio por ausência de manifestação da vontade.

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Todavia, a depender da Escola filosófica que se siga, caso não se admita o plano existencial do negócio jurídico, pode-se concluir que o ato praticado nessas circunstâncias é nulo por vício em sua própria forma, dada a indispensável participação do curador na realização do ato negocial (art. 166, IV, CC).

b) a pessoa com deficiência tem apoiadores nomeados:

       Se a curatela é uma medida extraordinária, é porque existe uma outra via assistencial de que pode se valer a pessoa com deficiência - livre do estigma da incapacidade - para que possa atuar na vida social: a "tomada de decisão apoiada", processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhe os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade[12].

Pessoas com deficiência e que sejam dotadas de grau de discernimento que permita a indicação dos seus apoiadores, até então sujeitas a uma inafastável interdição e curatela geral, poderão se valer de um instituto menos invasivo em sua esfera existencial.

Note-se que, com isso, a autonomia privada projeta as suas luzes em recantos até então inacessíveis.

 Imagine-se, por exemplo, que uma pessoa com síndrome de Down, após amealhar recursos provenientes do seu trabalho, pretenda comprar um apartamento.

Pode ser que tenha dificuldade no ato de lavratura da escritura pública[13].

Dada a desnecessidade da nomeação de um curador para atuar em espectro amplo no campo negocial, a própria pessoa interessada indicará os seus apoiadores que irão assisti-lo (apoiá-lo), especificamente, na compra do bem.

Em tal contexto, designados os apoiadores, judicialmente chancelados para a prática do ato negocial de aquisição do imóvel pretendido pela pessoa com síndrome de Down, a ausência de manifestação deles na lavratura e registro da escritura, a despeito da presença do interessado, resultará na nulidade absoluta do ato negocial, por inobservância de aspecto formal (art. 166, IV, CC).

Isso porque a participação dos apoiadores integra o revestimento formal da própria declaração de vontade negocial. 

c) pessoa com deficiência sem curador ou apoiador:

Imagine a hipótese de uma pessoa, inserida em um espectro autista[14] moderado, celebrar negócio que lhe seja prejudicial.

Se, por um lado, não se pode reconhecer invalidade diretamente com fulcro na deficiência (que varia consideravelmente em cada caso), pensamos que a aplicação da teoria dos defeitos do negócio jurídico deve lhe ser mais vantajosa.

Tendo sido, por exemplo, vítima de dolo ou lesão, defendo a inversão do ônus da prova em favor da pessoa deficiente, visando a imprimir paridade de armas, tal como já se dá no âmbito das relações de consumo.

Em resumo: não se invalida mais negócio por deficiência, mas nada impede que a deficiência comprovada conduza ao reconhecimento mais facilitado de um defeito invalidante do negócio jurídico.

Talvez se possa, até mesmo, em tese mais arrojada, havendo evidente prejuízo e diante da violação manifesta à cláusula geral de boa-fé, falar-se em "nulidade virtual".

Por certo, a resolução deste problema não será fácil, como bem destacou SIMÃO[15].

Mas, certamente, na perspectiva do Princípio da Vedação ao Retrocesso, lembrando CANOTILHO, a melhor solução haverá de ser alcançada, em respeito à pessoa com deficiência e à toda sociedade.

Sustento, pois, com toda firmeza, a necessidade de uma reflexão cuidadosa, por parte dos operadores do Direito, acerca do significado social do Estatuto da Pessoa com Deficiência, evitando-se repetições de fórmulas superadas, frases de efeito e conceitos ultrapassados, até porque, como adverte HANNAH ARENDT, na célebre obra A Condição Humana, ”a repetição complacente de ‘verdades’ que se tornaram triviais e vazias”, parece ser “uma das mais notáveis características do nosso tempo”[16].

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Sobre o autor
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze. A invalidade do negócio jurídico em face do novo conceito de capacidade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5538, 30 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68666. Acesso em: 21 nov. 2024.

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