O texto a seguir traz um registro singular (cotidiano), de apenas dois dias, de dois encontros e de três conversas sobre a realidade política – ou melhor, eleitoral – do Brasil de 2018. Alguma coisa haveria de comum com os idos de 1998, aos dez anos da jovem Constituição Federal – e da nomeação do neoliberalismo?
Agora, já balzaquiana, a CF/88 parece envelhecida, muito mais do que a idade recomendaria, e é de difícil comparação. A não ser que se tenha a irracionalidade como marco da política que parece nunca ter superado os porões da ditadura militar.
Por que e como estudar o “cotidiano” – ou fazer alguma análise de conjuntura – e quais são os desafios desse empreendimento?
1. Uma resposta primeira e evidente é: porque a vida se realiza em meio a dinâmicas múltiplas que expressam o social em suas relações, também múltiplas; cujas modulações podem ser de igualdade e desigualdade, diversidade e unidade, identidade e alteridade, reciprocidade e conflito, alianças e disputas, instituído e instituinte. Relações estas que conformam e se conformam aos sujeitos em qualquer espaço de socialização; tornando o cotidiano, assim, um “documento” precioso para investigar a cultura de um grupo social, nos vários tempos e espaços de aprendizagem. Espaços que, historicizados, significam a constituição de padrões de culturas que se realizam e expressam dinâmicas de aprendizagem em uma perspectiva diferente e oposta àquela que vê a escola como um complexo institucional hegemônico com capacidade operatória de “a todos e todas” harmonizar, apagar as diferenças e aplainar os conflitos e as contradições sociais.
2. A segunda, menos óbvia, mas que se revela em ambiente político contraditório, excludente, antagônico, polarizado, como este que vivemos em 2018, indica-nos que navegamos por mares incertos, líquidos em forma de insensatez, aplainados em um consenso irracional nivelado pela ausência de diálogo, com práticas e discursos políticos e culturais também à margem da racionalidade: a eleição promete ser vitoriosa para quem detiver o menor índice de rejeição e não pelo de melhor aprovação. Além do mais, é provável que o terceiro (quem quer que seja) acabe em primeiro lugar, tendo-se em conta que Lula (o mais votado em pesquisas de intenção) está preso e, portanto, fora do páreo em 2018. E o segundo padece com rejeição maior do que aprovação. É uma situação surreal, insólita, distópica pela violência de que se serve em nutrientes.
Enfim, vamos aos fatos das narrativas resumidas pelos autores – por não se tratar de falas específicas dos personagens, só receberão aspas quando de fato forem suas verbalizações:
19 DE SETEMBRO – 1ª Cena (1º e 2º diálogos)
1. Por volta de 16:40h parei num posto para abastecer o carro. Como é usual, puxei conversa com o frentista que me atendia, um moço alto, magro, aparentando ter vinte e poucos anos. Na rápida conversa o assunto eleições entrou em pauta. Perguntei a ele em quem ia votar. Sem titubar respondeu: “No fulano!” – disse taxativo. Indaguei dos porquês. “Ele é o mais radical!!!”, disse-me. Respondi com outra pergunta: Será? E falei do beltrano... Ele me disse que ia pensar.
2. Mais tarde, quase 18h, entrei numa farmácia. Peguei o que precisava e fui ao caixa. Uma jovem, de vinte e poucos anos também, negra de olhos esverdeados. Enquanto passava o cartão perguntei a ela se já tinha candidato. Olhou um pouco surpresa e falou que não. Sugeri a ela que olhasse os nomes, surgiria um candidato melhor etc. Me olhou com cara de quem não sabia nada. De nada? “Não sei” – finalizou a moça.
20 DE SETEMBRO – 2ª Cena (3º diálogo)
3. Pela manhã, 09:15, chamei um uber. Ao longo do trajeto puxei conversa e falamos de muita coisa. Inclusive do jogo do Cruzeiro (pela Libertadores) contra o Boca Juniors da Argentina em que, segundo ele, o juiz aprontou e roubou muito para ajudar o time adversário ganhar, no caso o Boca. Chegou a expulsar um jogador do Cruzeiro sem nenhum motivo. Detalhe, como atleticano, ele gostou do Cruzeiro perder, mas não gostou da roubalheira do juiz. Pouco antes de terminar a corrida, perguntei sobre as eleições. “Não sei ainda...estou pensando...”. Perguntei se seria no mais radical também. “Não, esse de jeito nenhum. Tenho dois nomes”. Aí ele mesmo continuou: “Mas, um é bipolar...um dia bem e no outro grita. Como vai ser presidente?”. Então perguntei do outro. E respondeu: “Olha, gosto dele, é calmo e parece tá muito preparado”.
Muitas são as conclusões que podemos tirar desse pleito e das três conversas. Porém, duas saltam aos olhos. Pensando que no século XXI o chamado Servo Político (idiota político para alguns) – certamente, miolo do eleitorado e mediatriz da cidadania brasileira (modelo para outros) – atua como genérico que não para de se expandir, pensamos em dois caminhos que podem ou não se encontrar:
1) O jovem frentista, como bom servo de políticos profissionais, tem a tendência de escolher o carrasco como seu Príncipe.
2) A jovem caixa – aturdida pelas perguntas sobre política, em 2018 – demora (demais) para dizer que não sabia da existência de “jovens e de velhos” Príncipes (raposas) na gestão da coisa pública.
Uma terceira observação, porém muito menos como conclusão, seria oferecida pelo motorista: para ele, como deveria ser para todo cidadão, é essencial saber que “não se serve a dois Príncipes ao mesmo tempo” e o melhor, em política, não é o menos pior; pois, não há muita escolha entre barbárie e democracia. Essa escolha não pode ser bipolar...
Por fim, vale a pena refletir sobre o fenômeno global que nos cerca: um estranhamento do que deve-ser.
“Estranhamento” é um fenômeno (sintoma, sensações e sentimentos difusos) que se destacou nas sociedades de massas já nas décadas de 1970-80, além da globalização que seria somada a partir dos anos 1990, destacando-se pela dificuldade em que o indivíduo se visse como cidadão, ser político (atuante) e, muitas vezes, até mesmo como ser humano portador de subjetividades, particularidades.
Com o avanço de uma imensa esteira de rolagem, com produção em massa, para a vida social das pessoas, acorrentadas ao desafio de se afirmar e se manter "úteis" na sociedade de massas e de consumo, restava pouca coisa que não se enquadrasse nesse ritmo. Sem vida bucólica, sem poesia no trajeto de casa ao trabalho, e dali de volta, dado seu cansaço e desânimo (ou desapego do que não é lucrativo, de imediato) as pessoas foram esquecidas. Tudo passou a ser numerário, para o Estado e para a iniciativa privada, tudo passou a ser regulado pela economia e pela mercadoria.
Há, inclusive, uma Teoria Econômica do Direito – exatamente para lucrar com o esgotamento da Dignidade e com o Estranhamento. Até o ponto de cada um estranhar a si - diante dos outros, tão coisificados quanto o cidadão que agora seria uma mônada esquecida - e assim se esquecendo de quem é o Outro. Há, então, um estranho - por demais estranho - em cada um de nós, mas não é um estranho inconsciente, de psicologia profunda, é um estranho revelado pela sociologia/antropologia que vê a vida rasa a que nos habituamos a ter.
Habituar a ter configuração – normatizar para normalizar –, em certa medida, é o que constitui o cotidiano. E nos permite pensar que direitos e deveres, cidadania, ação política, culturas que emudecem ou que, ao contrário, esclarecem, são mais bem compreendidas quando nos dispomos a tomar o cotidiano como construção histórica entre diferentes e desiguais, que constrói e se reconstrói (ou desconstrói) atravessada por consensos (hegemonia?), contradições (contra hegemonia?), luzes e sombras e, por isto mesmo, possibilidade de mudança social.
Nesse lusco-fusco, tomado de sombreamentos, as eleições de 2018 são reveladoras deste “velho” jogo político, institucional, midiático (no qual grupos da população agem em concorrência com a mídia tradicional), de intensa disputa pela apropriação e atribuição de sentidos que devem orientar cotidianamente os eleitores, e assim evocando-se um imaginário a ser concretizado por um ou outro candidato – ou só pintado de luzes opacas?