A Polícia Judiciária Militar e a Lei 13.491, de 13 de outubro de 2017.
Com o advento da Lei n.º 13.491, de 13 de outubro de 2017, tornou-se premente a institucionalização da Polícia Judiciária Militar (PJM), uma vez que, em virtude das alterações ocorridas no artigo 9º do Código Penal Militar (inciso II e parágrafo único), houve, em tese, um significativo aumento de uma das principais atribuições da PJM, que é apurar autoria e materialidade de crime militar.
Para melhor visualização, seguem as modificações operadas pela supracitada lei no art. 9° do Código Penal Militar:
Redação anterior do art. 9º, inciso II e parágrafo único:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica. (Grifos nossos)
Redação atual do art. 9º, inciso II e parágrafo segundo:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal
§ 2º. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante;
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal. (Grifos nossos)
Destarte, com a mencionada mudança legislativa, uma conduta delitiva prevista no Código Penal comum ou na legislação penal extravagante pode caracterizar crime de natureza militar, desde que adequada a uma das hipóteses do artigo 9º, II, III, e parágrafo 2º do CPM.
Ressalte-se que a norma extensiva incorporada pela Lei n.º 13.491/2017 ao art. 9º do CPM, estabelecendo, como crime militar, tipos penais descritos no Código Penal Comum, não é novidade na legislação penal castrense, visto que, para os crimes militares praticados em tempo de guerra, já existe essa previsão legal.
Art. 10. Consideram-se crimes militares, em tempo de guerra:
IV – os crimes definidos na lei penal comum ou especial, embora não previstos neste Código, quando praticados em zona de efetivas operações militares ou em território estrangeiro, militarmente ocupado. (Grifos nossos)
Assim sendo, tendo em vista que os oficiais das Forças Armadas não possuem, necessariamente, formação jurídica para identificar e investigar essa gama de crimes que passou a ser de competência da Justiça Militar, faz-se necessária uma estreita interação entre a Polícia Judiciária Militar (PJM) e o Ministério Público Militar (MPM) a fim de que possíveis equívocos de interpretação acerca da configuração ou não de crime militar ou de dúvidas surgidas no curso das apurações sejam sanadas no seu nascedouro.
Questão que se afigura tormentosa para a Polícia Judiciária Militar diz respeito aos possíveis desdobramentos que podem resultar da nova lei em relação às investigações levadas a efeito pelos Encarregados de Inquérito Policial Militar (IPM).
De fato, com a edição de Lei n.º 13.491/2017, algumas teses foram suscitadas pelos operadores de direito, valendo destacar, dentre elas:
a) a natureza jurídica da lei em menção;
b) a possibilidade de adoção pela Justiça Militar de institutos penais e processuais da legislação comum.
No que diz respeito à natureza jurídica da nova lei, as correntes doutrinárias são divergentes. Há quem sustente ser seu caráter de direito material. Há quem enfatize ser seu caráter de direito processual. E, por fim, há aqueles que defendem um caráter duplo (penal e processual).
Vale salientar que, embora a discussão supramencionada seja importante para o mundo acadêmico, não apresenta relevância prática para a atuação da Polícia Judiciária Militar.
Noutra senda, em relação à adoção de institutos do CP e do CPP, como pressuposto para deflagração da ação penal, tais como a representação do ofendido e a queixa, a questão esculpe-se de maior complexidade, uma vez que haverá reflexos diretos para a investigação, inviabilizando, inclusive, em certas situações, a instauração de IPM e até mesmo a lavratura de APF, conforme normatiza o Código de Processo Penal comum:
Art. 5º, § 4º. O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado.
Art. 5º, § 5º. Nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la. (Grifos nossos)
Para melhor compreensão, observemos os seguintes hipotéticos exemplos:
Evento 1
Um oficial superior da ativa, em lugar sujeito à Administração Militar, sem violência, faz justiça pelas próprias mãos contra uma praça, para satisfazer pretensão, ainda que legítima.
Evento 2
Um capitão-tenente da ativa, em um navio militar, molesta, de modo ofensivo, uma sargento do corpo feminino, ferindo o pudor e a decência.
Ressalte-se que os aludidos comportamentos delituosos narrados nos dois eventos são tipificados somente no Código Penal comum e poderá, conforme o caso, ser considerado crime militar, por força da Lei n.º 13.491/2017.
Assim, temos no Evento 1 o delito de exercício arbitrário das próprias razões, o qual só se procede mediante queixa do ofendido. Dessa maneira, se a aludida praça não intentar ação penal privada em face do oficial superior referido, o fato ficará impune e, em outra vereda, mesmo no caso de ser deflagrada a queixa e o querelante, por medo de represálias, deixar de promover o andamento do processo, durante 30 dias seguidos, ou desistir de comparecer, sem motivo justificado, a um ato do processo, a ação penal resultará perempta (art. 60, CPP), o que redundará na extinção da punibilidade do réu (art. 107, IV, CP).
Essas intercorrências próprias da legislação processual penal comum, sob nossa ótica, são incompatíveis com a índole do processo penal militar, uma vez que um fato grave dessa natureza abala, sem dúvidas, a estrutura da hierarquia e disciplina militares e, portanto, não pode ficar à mercê da vontade da vítima.
Relativamente ao Evento 2, o episódio narrado tipificou o crime de importunação sexual, cuja ação penal é pública e condicionada à representação do ofendido (crime recentemente inserido no art. 213 do CP, incluído pela Lei nº 13.718, de 2018).
O fato é que, em ambos os casos, ainda que o episódio tenha ocorrido em local público de forma ostensiva, se não houver autorização da vítima, o infrator não poderá ser preso em flagrante e o IPM não poderá ser instaurado.
Dessa forma, respeitando opiniões em sentido contrário, penso que a adoção dos referidos institutos no âmbito da jurisdição militar implicará prejuízo para a índole do processo penal militar (art. 3º, a, CPPM) uma vez que esse instrumento processual é voltado, principalmente, para tutelar a hierarquia, a disciplina e as instituições militares.
Demais disso, o traço marcante e diferencial da legislação processual penal militar é justamente a ação penal pública incondicionada, admitindo apenas, como exceção, a ação penal privada subsidiária da pública, diante da inércia do Ministério Público Militar.
Feitas essas primeiras considerações, é importante anotar que, embora com a publicação da nova Lei em comento, tenha ocorrido, no plano abstrato, um considerável aumento da competência da Justiça Militar, em virtude da imensa gama de crimes previstos na legislação penal comum, não se pode olvidar que os Tribunais superiores e o STF vêm restringindo a competência dessa justiça especializada, principalmente quando civis figuram no polo ativo de crime. O surpreendente é que tal restrição vem alcançando até mesmo os crimes praticados por militar da ativa contra militar da ativa (art 9º, II, a, CPM), quando praticados fora de lugar sujeito à Administração Militar. Assim, em recente decisão, o STF reformou acórdão do Superior Tribunal Militar que negou habeas corpus lá impetrado, entendendo que a lesão corporal leve praticada por militar contra outro militar, em evento particular, adequava-se ao previsto no artigo 9º, inciso II, alínea “a”, do Código Penal Militar, o qual prevê que são crimes militares em tempo de paz os delitos praticados por militar em situação de atividade contra militar na mesma situação.
Sucede que em seu voto, no RHC 157.308 de 2018, o Ministro Ricardo Lewandowski, do STF, ressaltou que a decisão do STM destoa da orientação jurisprudencial do Supremo, no sentido de que o delito cometido fora do ambiente militar ou cujo resultado não atinja as instituições militares será julgado pela Justiça comum, e a competência prevista na alínea a do inciso II do CPM pressupõe crime praticado por militar contra militar em situação de atividade militar.
No que tange ao atual parágrafo segundo do art. 9º (referente às atividades de natureza militar, operações de paz, garantia da lei e da ordem, entre outras), é importante consignar que a redação do art. 9º, III, d, do CPM já considerava crime militar condutas praticadas por civis contra militares em função de natureza militar, no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, quando legalmente requisitados para aquele fim. A despeito disso, a segunda turma do STF vinha decidindo pelo não reconhecimento da competência da Justiça Militar para julgar civis que praticam crimes contra militares na mencionada atividade.
Veio então a Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, descrevendo que o emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem é considerado atividade de natureza militar para a aplicação do art. 9º, II, c, do Código Penal Militar. A referida norma não foi suficiente, contudo, para influir na interpretação dos Ministros da Segunda Turma do STF que, no HC 112.936, de 17 de maio de 2013, continuou decidindo que a conduta de um civil praticada contra militar em operação da Garantia da Lei e da Ordem não é crime militar, em razão de aquela atividade não ser de natureza militar.
Assim, não obstante a publicação da nova lei em estudo, a exata medida da competência da Justiça Militar vai depender das interpretações dos tribunais superiores e, precipuamente, das decisões da Suprema Corte.
De qualquer sorte, a Lei 13.491/2017 exigirá mais preparo dos oficiais das Forças Armadas, dos oficiais da Polícia Militar e dos oficiais do Corpo de Bombeiros para o exercício do munus de Polícia Judiciária Militar.
Referências:
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BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. BRASÍLIA. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, DE 13 DE OUTUBRO DE 1941, E RETIFICADO EM 24 DE OUTUBRO DE 1941. DISPONÍVEL EM: <HTTP://WWW.PLANALTO.GOV.BR/CCIVIL_03/DECRETO-LEI/DEL3689.HTM>. ACESSO EM: 27 SET. 2018
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 1.001, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. CÓDIGO PENAL MILITAR. BRASÍLIA. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. DISPONÍVEL EM: <HTTP://WWW.PLANALTO.GOV.BR/CCIVIL_03/DECRETO-LEI/DEL1001COMPILADO.HTM>. ACESSO EM: 27 SET. 2018
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BRASIL. LEI Nº 13.718, 718, DE 24 DE SETEMBRO DE 2018. BRASÍLIA. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO DE 25 DE SETEMBRO DE 2018. DISPONÍVEL EM: <HTTP://WWW.PLANALTO.GOV.BR/CCIVIL_03/_ATO2015-2018/2018/LEI/L13718.HTM#ART2>. ACESSO EM: 28 SET. 2018.
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