Uma breve análise das ADPF 186 e ADC 41

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22/10/2018 às 16:34
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Considerações Finais

A pesquisa que gerou o presente artigo, conforme explicitado na introdução, tinha como objetivo a análise do conceito moderno de justiça distributiva e comparar este conceito com o discurso sobre justiça distributiva aplicado pelo Supremo Tribunal Federal nos julgamentos da ADPF 186 e ADC 41.

Em ambos os casos se questionou a constitucionalidade de ações afirmativas que representavam políticas públicas inclusivas. O cerne da discussão dizia respeito prioritariamente ao fato de que o STF, em determinadas situações, aplica conceitos doutrinários e filosóficos sem a devida reflexão. Infelizmente foi o caso do que vimos na argumentação da ADPF 186, quando o STF deixou claro que se aplicava a justiça distributiva com o fito de se realizar uma “reparação histórica” pelos negros, tendo em vista que sua posição social dentro da sociedade foi afetada pela escravidão.

Como vimos anteriormente, para se adequadamente aplicar a justiça distributiva, a situação anterior, os méritos, os danos, merecimentos ou desmerecimentos das pessoas envolvidas são fatores absolutamente irrelevantes. Isto é, não se aplica justiça distributiva quando se deseja realizar uma reparação histórica, ou mesmo quando há uma conduta ilícita causadora do dano.

A justiça distributiva somente se aplica quando a distribuição de riquezas ou direitos é realizada simplesmente porque se constata uma desigualdade, não visa reparar ou indenizar, mas tão somente distribuir.

Tal percepção foi bem demonstrada no acórdão da ADC 41, quanto o STF discorreu adequadamente sobre a necessidade de distribuição de cargos públicos à parcela da população que claramente não tem normalmente este acesso. É fato, inclusive citado no acórdão, que apenas os negros, por exemplo, ocupam apenas 1,5% dos cargos de magistratura no Brasil, sendo que são considerados 54% (incluindo os pardos) da população brasileira. Nesse sentido, sem argumentar que há dívida histórica, sem argumentar o merecimento pela existência de um dano, o STF julga constitucional uma norma que reserva uma cota dos cargos públicos aos indivíduos pertencentes ao grupo considerado excluído dessas vagas.

Aqui não se faz juízo de valor moral sobre a constitucionalidade já declarada pelo STF, nem se argumenta se a Constituição Pátria admite ou não a aplicação da justiça distributiva, apenas se constata a utilização do conceito na argumentação e discurso das decisões na Corte Maior. Tais considerações certamente serão objeto de investigações mais aprofundadas, porém em investigação própria e oportuna para tanto.

Dessa forma, se percebe que o STF ao decidir duas situações análogas, para o caso da APDF 186 utilizou incorretamente o conceito moderno de justiça distributiva, tendo em vista que deixou claro que a cota para negros e pardos na instituição se trata de uma reparação, ou seja, se trata de justiça compensatória e não distributiva. Por outro lado, ao argumentar na ADC 41, se percebe que o STF não invoca a necessidade de reparação ou compensação, apenas o intuito de distribuir cargos para um grupo que não tem acesso a esse direito.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Estado do Rio de Janeiro. Lei Estadual nº 3.524/2000. Dispõe sobre os critérios de seleção e admissão de estudantes da rede pública estadual de ensino em universidades públicas estaduais e dá outras providências. DORJ, 11 de abril de 2011.

BRASIL. Estado do Rio de Janeiro. Lei Estadual nº 3.708/2001. Institui cota de até 40% (quarenta por cento) para as populações negra e parda no acesso à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense, e dá outras providências. DORJ de 09 de novembro de 2001.

BRASIL. Lei Federal n. 12.711/2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais de ensino técnico de nível média e dá outras providências. DOU, 30 de agosto de 2012.

BRASIL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014

BRASIL, ADC 41, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 16-08-2017 PUBLIC 17-08-2017

BOTELHO, L. A. Old Age andtheEnglishPoor Law. 1500-1700. The Boydell Press: Suffolk, 2004.

FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006.

FLORENZANO, Modesto. Thomas Paine Revisitado. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.

FRASER, Nancy and HONNETH, Axel. Redistribution or Rocognition? A politicaphilosophicalexchange. London/NewYork: Verso, 2003.

KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Trad. Cléia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. Editora Vozes, Ltda., Petrópolis, 2013 e Editora Universitária São Francisco, São Paulo, 2013.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 3


Notas

[1] BRASIL. Estado do Rio de Janeiro. Lei Estadual nº 3.524/2000. Dispõe sobre os critérios de seleção e admissão de estudantes da rede pública estadual de ensino em universidades públicas estaduais e dá outras providências. DORJ, 11 de abril de 2011.

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[2] BRASIL. Estado do Rio de Janeiro. Lei Estadual nº 3.708/2001. Institui cota de até 40% (quarenta por cento) para as populações negra e parda no acesso à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense, e dá outras providências. DORJ de 09 de novembro de 2001.

[3] BRASIL. Lei Federal n. 12.711/2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais de ensino técnico de nível média e dá outras providências. DOU, 30 de agosto de 2012.

[4] O pleonasmo é proposital (“breve”), para ressaltar que o capítulo se trata de uma análise do livro “Uma breve história da justiça distributiva, escrito por Samuel Fleischaker.

[5] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, p. 30.

[6] Idem, ibidem, p. 32.

[7] Idem, ibidem, p. 35.

[8] BOTELHO, L. A. Old Age andtheEnglishPoor Law. 1500-1700. The Boydell Press: Suffolk, 2004.

[9] SANCHES, Almit Teubl. A teoria da justiça de Adam Smith: a confusão histórica entre justiça distributiva e caridade. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.

[10] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, p. 102.

[11] Idem, ibidem, p. 103.

[12] KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Trad. Cléia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. Editora Vozes, Ltda., Petrópolis, 2013 e Editora Universitária São Francisco, São Paulo, 2013.

[13] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, p. 84.

[14] FLORENZANO, Modesto. Thomas Paine Revisitado. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.

[15] FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, p. 96.

[16] Idem, ibidem, p. 10

[17] Idem, ibidem, p. 14.

[18] Idem, ibidem, p. 15-16.

[19] BRASIL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014, p. 18

[20] Idem ibidem, p. 26

[21] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 3.

[22] BRASIL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014, p. 52.

[23] BRASIL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014, p. 53.

[24] FRASER, Nancy and HONNETH, Axel. Redistribution or Rocognition? A politicaphilosophicalexchange. London/NewYork: Verso, 2003. pp. 7-8.

[25] BRASIL, ADC 41, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 16-08-2017 PUBLIC 17-08-2017, p. 21.

[26] Idem, ibidem, p. 53.

[27] Idem, ibidem, p. 155.

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Sobre o autor
João Hagenbeck Parizzi

Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UNICEUB-DF. Doutorando em Direito pelo UNICEUB. Professor de Direito na UEMG e no CESUC-GO. Advogado atuante desde 2008.

Informações sobre o texto

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