Direito ao esquecimento x biografia não autorizada: uma análise da ADI 4815/DF

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4 DIREITOS DA PERSONALIDADE 

O direito de personalidade pode ser compreendido como prerrogativas, intrínsecas e inerentes à pessoa humana, como o desenvolvimento do indivíduo, a doutrina os reconheceram como direitos inalienáveis, não comerciais, e que merecem resguardo legal. (GONÇALVES, 2017)

Os direitos a personalidade estão firmados sobre a exegese como sendo primordiais e inerentes ao homem. Neste escopo, este artigo ocupar-se-á da vida privada, honra e imagem. 

Desde da antiguidade já se preocupava com o respeito ao direito do ser humano, com o advento do cristianismo esses começaram a se reafirmar, o reconhecimento dos direitos da personalidade como categoria de direito subjetivo, se iniciou mais precisamente após a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789 e da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, das Nações Unidas, bem como da Convenção Europeia de 1950. (GONÇALVES, 2017) 

Mas o grande avanço na proteção dos direitos da personalidade no Brasil ocorreu com a promulgação da constituição da Republica de 1988, mais precisamente no seu artigo 5º, inciso x, assim dispõe:

X- São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

O Código Civil Brasileiro, em seus artigos 11 a 21, se dedicou aos direitos da personalidade, visando resguarda-los e protegê-los. Nesse sentido, Francisco Amaral preconiza que direitos da personalidade são: “direitos subjetivos que tem por objetivo os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual”. É o direito da pessoa proteger a sua identidade como ser humano. (GONÇALVES, 2017)

São características dos direitos da personalidade a intransmissibilidade e irrenunciabilidade, ou seja, são indisponíveis, não podendo seus titulares se dispor dos mesmos, pois nascem e morrem com estes.

Segundo Carlos Roberto Gonçalves, uma outra característica do direito da personalidade é que estes direitos são absolutos e oponíveis a todos, como um dever de abstenção, e de respeito. (GONÇALVES 2017)

Os direitos da personalidade são ilimitados, sendo que o rol do código civil é meramente exemplificativo, podendo se inferir muitos outros direitos inerentes à vida humana. 

A imprescritibilidade também é uma característica apontada pela doutrina, pois os direitos da personalidade não se extinguem com o tempo. Outra característica marcante do direito da personalidade é a impenhorabilidade, estes são inerentes ao homem, portanto também indisponíveis, e não podem ser penhoráveis, sendo que essa característica não é absoluta, podendo o homem disponibilizar sua imagem ou autoria mediante prestação pecuniária a terceiros, por exemplo.

Os direitos da personalidade são adquiridos com a sua concepção e acompanha o ser humano até a morte, portanto são também vitalícios, que mesmo após a morte alguns desses direitos não se extinguem. (GONÇALVES,2017)

A proteção aos direitos da personalidade, se fundamenta no respeito ao princípio da dignidade humana, este descrito no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal. Este princípio é preconizado internacionalmente, por se tratar de um atributo inerente ao homem, um exemplo é o artigo 11 do Pacto de São José da Costa Rica, assim dispõe: “Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”.   Portanto vale dizer que em um Estado democrático de Direito deve haver uma garantia mínima de proteção à personalidade.

4.1 DIREITOS À INTIMIDADE, VIDA PRIVADA, HONRA E IMAGEM

A Constituição da República consagrou em seu artigo 5º, inciso x, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. (ANGHER, 2017)

O direito à intimidade e a vida privada protegem as pessoas nas suas individualidades, é o direito do homem de ser deixado em paz. A intimidade e vida privada são esferas distintas, porém, compreendidas como o direito de privacidade. (BARROSO, p.13)

O direito de privacidade resguarda as particularidades do homem, a respeito da curiosidade alheia, de sua vida familiar, hábitos, relações afetivas, escolhas pessoais, dentre outros. Acrescenta José Afonso da Silva:

Toma-se, pois, a privacidade como conjunta de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando onde e em que condições, sem a isso pode ser legalmente sujeito. (SILVA, 2001, p. 209).

O direito à privacidade pode ser compreendido sob a teoria das esferas, sejam elas esfera da publicidade, esfera privada e esfera intima, a esfera da publicidade está relacionada ao homem praticar atos publicamente, renunciando expresso ou tacitamente, portanto tornando-os público. A esfera privada são as relações do homem no seu meio social, onde não interesse publica na sua divulgação. Já na esfera intima, essa trata ao modo de ser de cada indivíduo, a sua identidade, sua sexualidade, suas informações confidenciais, bem como segredos. (NOVELINO, 2014)  

Adentrando no aspecto da honra, está um direito também personalíssimo, que assegura a dignidade pessoal do indivíduo, sua reputação diante de si próprio e do meio social do qual está inserido. Segundo Novelino, o direito a honra vislumbra tutelar os atributos concernentes a reputação e ao bom nome do indivíduo. (NOVELINO, 2014, p.626)

Por último, há no ordenamento jurídico brasileiro a proteção da imagem, está compreendida como a representação de alguma coisa ou pessoa, por meio de desenhos, fotografias e qualquer outro meio que possa identificar fisicamente o indivíduo. (NOVELINO, 2014)

O direito a imagem visa resguardar esses atributos físicos do indivíduo, coibindo, portanto, sua divulgação. 

Tendo em vista a importância de tais direitos ao indivíduo caso haja uma violação nasce o direito de reparação, sendo este conhecido como o instituto da responsabilidade civil.

A responsabilidade em seu sentido etimológico expressa a ideia de obrigação, encargo, quando se fala em sentido jurídico, o fundamento da responsabilidade está conectado a uma noção de desvio de conduta. (FILHO CAVALIERI, 2015)

A ordem jurídica visa cuidar e reprimir atos lícitos, portanto, tutela a atividade do homem que se comporta de acordo com o Direito, e controla a conduta daqueles que vão em desacordo com a norma, e assim, corrigi os atos nocivos que afetam ao indivíduo. Filho Cavalieri (2015 apud, San Tiago Dantas)

Para se alcançar o objetivo da ordem jurídica, esta estabelece deveres, que podem versar sobre deveres positivos de dar ou de fazer, negativos de não fazer ou tolerar algo. Esses preceitos podem atingir a todos, ou a indivíduos determinados. (FILHO CAVALIERI, 2015)

Assim, a violação de uma imposição jurídica caracteriza o ilícito, que na maioria das vezes geram um dano a outrem, e assim constituindo o dever de reparação, conforme dispõe o artigo 927, do CCB, “aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (arts.186 e 187).

A responsabilidade civil tem como função, a restituição do dano causado a outrem, sendo que há uma necessidade de reestabelecer o equilíbrio, ora quebrado pela violação do direito do indivíduo, sendo assim, a indenização deve restituir o status quo ante, ou seja, a indenização deva ser capaz de retornar à situação do indivíduo, como se nunca houvesse sido violada. 

Assim a integralidade da reparação é um princípio fundamental, para o instituto da responsabilidade civil, quando há uma parcialidade na indenização subentende-se que o indivíduo suportará o restante do dano, o que irá em conflito com a função desse instituto. (FILHO CAVALIERI, 2015)

Para corroborar a ideia de integralidade da reparação, o artigo 944, caput, do CCB, dispõe que: “a indenização mede-se pela extensão do dano”, ou seja, a medida em que o indivíduo sofre o dano, este deve ser compensado na mesma proporção.

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Assim nota-se que a ADI 4815, a ser analisada, confronta os princípios acima citados, sendo que a mesma ao dispensar a autorização prévia para a escrita de biografias, postula uma reparação somente de forma posterior, não se atentando para uma biografia irresponsável, sem qualquer limite.


5- ADI 4815

A ADI 4815/DF, foi proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros, que teve por objeto a declaração de Inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil para que, conforme interpretação a Constituição Federal, fosse afastada a autorização prévia do biografado, para a escrita de biografias, bem como também o afastamento de coadjuvantes, ou de familiares em caso de pessoa falecida.

A discussão da referida ação direta de inconstitucionalidade, gira em torno do exercício do direito constitucional a expressão livre do pensamento da atividade intelectual, artística e de comunicação dos biógrafos, editores.

Embora se tratar de uma discussão de cunho privado, o embate entre normas é de status constitucional, visto que de outro lado encontra-se os direitos da personalidade, sejam eles a vida privada, a honra e a imagem. 

A relatora Ministra Carmen Lúcia, fundamentou sua decisão no fortalecimento do regime democrático de direito. O Brasil passou por um período ditatorial, censurador, no qual vários direitos foram suspensos, assim como garantias e liberdades individuais. Logo após houve uma redemocratização que construía uma sociedade livre em que todos poderiam dar sua opinião. (BRASIL, STF, 2015)

Corroborando com a relatora o ministro Dias Toffoli, acentuou que a corte estava naquela ocasião afastando a censura e fortalecendo a democratização. No mesmo raciocínio a ministra Rosa Weber, manifestou no entendimento de que a autorização prévia para escrita de biografias, constituía uma forma de censura, portanto incompatível com o Estado Democrático de Direito. (BRASIL, STF, 2015)

Para o Ministro Luís Roberto Barroso, a liberdade de expressão deve ser tratada de modo preferencial por três motivos, primeiro que esta é tão acidentada e sofrida, que precisa ser reafirmada em ato contínuo, segundo que a liberdade de expressão é um pressuposto democrático, e em terceiro é essencial para o conhecimento da história. (BRASIL, STF, 2015)

Em sentido estrito pode se dizer que há duas teorias em torno dos limites aos direitos fundamentais, uma interna e outra externa. Para a primeira teoria, não há um conflito entre os direitos, e sim uma limitação na incidência de cada um. Para a segunda teoria, há sim uma colisão entre direitos, assim admitindo-se uma restrição por meio da ponderação de bens. Pela análise dos votos proferidos a teoria utilizada foi a teoria externa, que colocou a liberdade de expressão e patamar maior que os direitos da personalidade. (BRASIL, STF, 2015)

Gilmar Mendes adverte que a liberdade de expressão e informação, mesmo tendo um patamar superior, não são absolutos, portanto podem ser sobrestados, quando em conflito com os direitos das personalidades, quando houver abuso, assim ele assegura que há diversas formas de reparação em caso de lesão. (BRASIL, STF, 2015)

Por fim, verifica-se que em relação aos votos proferidos e aqui citados, todos os Ministros ao embasarem suas decisões na necessidade de redemocratização do Estado Democrático de direito colocando os princípios da liberdade de expressão e informação em patamar superior aos direitos da personalidade, ambos assegurados constitucionalmente, onde o poder constituinte concedeu patamar de igualdade para estes, não devendo um sobrepor ao outro, como feito no julgamento da referida ação.

A ADI 4815, julgou ser mais importante assegurar o direito à liberdade de expressão e informação, do que garantir a honra, a vida privada e a imagem do indivíduo. Sob o argumento de que ficaria permanecido o direito a reparação posterior.

Vale ainda ressaltar que a decisão não delimitou de forma expressa quais seriam os limites para a publicação de biografias sem autorização dos biografados, dando assim, margem para abusos, dos quais nem os institutos reparadores, não poderão restituir. Pois violações tais como contra a honra, a pecúnia ou uma simples retração não podem restituir o “status quo ante”. Portanto reforça-se a ideia de privacidade como sendo o direito de ser deixado em paz, em que os fatos íntimos do indivíduo, tais quanto ele deseja que sejam guardados na sua intimidade ou apenas esquecidos.

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Sobre as autoras
Raquel Santana Rabelo

Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2008). Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2009). Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa (2017). Professora na Faculdade Kennedy de Minas Gerais de Direito Econômico, Processo Civil IV , Direitos Humanos e Teoria Geral do Processo. Professora de PIN III no curso de Administração da Faculdade Promove. Professora de Ciências Sociais e Etnia no curso de Engenharia de Produção. Professora orientadora do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade Promove e da Faculdade Kennedy de Minas Gerais. Mediadora Voluntária do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Bárbara Lacerda Ferreira Lobato

Bacharel em Direito pela Faculdade Kennedy de Minas

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo elaborado como trabalho de conclusão do curso de Direito das Faculdades Kennedy de Minas Gerais pela discente, orientanda e principal autora Bárbara Lacerda Ferreira Lobato

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