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A (im)possibilidade da mulher transgênero figurar como vítima de feminicídio

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4. O FEMINICÍDIO E A MULHER TRANS

4.1 Condição de sexo feminino

Segundo o artigo 121, VI do Código de Processo Penal, o feminicídio não se trata pura e simplesmente de matar uma mulher, mas de um homicídio cometido contra mulher em razão da condição de sexo feminino, tanto em razão de violência doméstica e familiar, como por menosprezo ou discriminação por ela ser mulher. Insta rememorar que durante a tramitação da Lei 13.104/15 no Congresso Nacional retirou-se o vocábulo “gênero” substituindo-o pela expressão “sexo feminino”. Todavia, a interpretação do dispositivo não foi modificada, persistindo a ideia de proteção ao gênero. Consoante este entendimento, afirma Ela Castilho (2015, p. 5):

Elemento fundamental do tipo é a motivação da conduta, consistente em “razões da condição de sexo feminino”, expressão objeto de conceituação legal no § 2.º. A expressão substituiu, a título de emenda de redação, a anterior “razões de gênero”. Todavia, na aplicação da Lei 13.104 não se poderá fugir totalmente do conceito de gênero, uma vez que a “condição de sexo feminino” é uma construção social tal como o papel social atribuído às mulheres na sociedade e que constitui o chamado gênero feminino.

O termo “mulher” é bastante abrangente, visto que seu conceito pode ser restringido somente ao sexo, limitando-se ao campo biológico, mas também pode ser interpretado como uma construção social da identidade de gênero. A filósofa existencialista Simone de Beauvoir (1967, p.9) assevera que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, ratificando o entendimento de que ser mulher não é apenas uma definição da natureza biológica, vai muito além do corpo ou órgãos genitais, é uma associação de valores, atitudes e sentimentos.

A mulher transgênero, não obstante sua condição biológica, se identifica social e psicologicamente como mulher, portanto, se a finalidade da qualificadora é justamente a proteção ao gênero, não assiste razão a desclassificação das mulheres trans como vítimas do feminicídio.

De acordo com Alice Bianchini e Luiz Flavio Gomes (2014):

A Lei do Feminicídio faz referência expressa à vítima mulher. Tal também se dá no âmbito da Lei Maria da Penha (LMP - Lei 11.340/2006). Quando se trata da aplicação da LMP, há decisões jurisprudenciais e parte da doutrina que se posiciona no sentido de aplica-la para situações que envolvem transexuais, travestis (...).

Neste sentido, a doutrina se divide em dois posicionamentos. A primeira corrente, mais conservadora, afirma que o transgênero, apesar de realizar a cirurgia de redesignação sexual, não pode figurar como vítima do feminicídio, pois, segundo Francisco Dirceu Barros (2014), a mulher é identificada em sua concepção genética ou cromossômica e a neocolpovulvoplastia (mudança da genitália masculina para feminina) altera a estética, mas não a concepção genética.

A segunda corrente entende que se a mulher transgênero realizou a neocolpovulvoplastia e a retificação em seu registro civil, ela obtém o direito de ser reconhecida civilmente como mulher, portanto, pode ser considerada sujeito passivo do feminicídio. Contudo, mesmo seguindo um viés mais moderno que a primeira, esta corrente acaba por ser discriminatória e excludente, uma vez que vincula a condição de mulher apenas à genitália feminina.

Além disso, o Superior Tribunal de Justiça, em análise de recurso especial, entendeu que há a possibilidade de mudança no registro civil para fazer constar o gênero com o qual o indivíduo se identifica, sem que para isso este precise realizar a cirurgia de redesignação sexual. É importante ressaltar que nem todo transgênero deseja fazer a cirurgia de mudança de sexo, muitas das vezes por motivos financeiros ou até mesmo em razão de essa cirurgia ser bastante delicada e arriscada, acarretando alguns efeitos colaterais. Obrigar uma pessoa a mutilar seu próprio corpo para ter reconhecido o seu direito de personalidade é um claro desrespeito do Estado ao princípio da dignidade da pessoa humana.

4.2 Índices de violência contra mulheres trans e travestis

A sociedade contemporânea por ainda conviver com a cultura do machismo que confere ao homem o poder de se sentir superior a mulher, acredita devotamente que mulheres trans e travestis abdicaram do papel masculino e optaram para viverem e comportarem-se no gênero feminino. Diante dessa intolerância surgem os altos índices de assassinatos contra essas pessoas e o motivo resulta do gênero.

Atualmente, o Brasil lidera o ranking do país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo, segundo uma pesquisa feita pela ONG Internacional Transgender Europe, entre janeiro de 2008 e julho de 2016, foram contadas 868 mortes, o triplo de mortes do segundo colocado, o México, com 256 mortes. Além disso, 65% dessas pessoas assassinadas são profissionais do sexo, que se encontram vulneráveis por trabalharem a maior parte do tempo nas ruas em condições marginalizadas.

De acordo com os dados coletados em 2016, afirma-seque a região brasileira que lidera os números de homicídios é a do Nordeste, com 36% dos casos, não desclassificando as outras regiões, como Sudeste com 29%, a região Sul com 17%, Centro-Oeste com 12% e a região Norte contando com 9% dos casos (Euclides Cabral, 2016).

A figura do gênero feminino é desvalorizada diariamente pela sociedade, principalmente quando se nasce com a genitália masculina, pois agrava o sentimento de ódio por essas transexuais e travestis se comportarem como mulher, gerando a exclusão destas pelo meio social. A vida inteira essas pessoas lutam pelo reconhecimento do gênero com o qual se identificam, que é o feminino, porém quando mortas não são reconhecidas como mulheres, mas como homens, e em nenhum momento é ressaltada a importância do gênero vivido por elas.

No tocante a essas mortes, é de suma importância falar que a contabilidade dos assassinatos de mulheres transexuais e travestis é bem maior que o de homens trans. Na cabeça desses assassinos o fato de um "homem" abrir mão da sua masculinidade, que socialmente é privilegiada, para "ser mulher", torna-se incompreensível. "Para as mulheres lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis, a possibilidade da violência dentro ou fora de casa é um dado da existência devido à conjugação dos vários preconceitos que enfrentam no cotidiano" (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2016, p.64).

O motivo desses assassinatos, para melhor entendimento, está ligado ao gênero e não à sexualidade da vítima. Tanto mulheres trans quanto mulheres cisgênero são mortas por indivíduos que possuem aversão e desprezo àquilo que a figura feminina representa. O mesmo risco que está para mulheres cis se amplia para mulheres trans e travestis, entretanto, estas últimas são ainda mais violentadas pela falta de respeito à sua identidade de gênero.

4.3 A luta pela erradicação de crimes contra a mulher transgênero

A lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 mais conhecida como Maria da Penha trouxe avanços significativos para a sociedade trazendo consigo pontos importantes ao destacar:

Art. 2° “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. ”

Art. 5° Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

As transexuais e travestis também fazem parte de um grupo social repleto de fragilidades, tanto pelo fato da discriminação do gênero como da orientação sexual, portanto, a violência ocorre em vários âmbitos sociais, como na doméstica e familiar. Diante desta lei é notório que o gênero feminino recebeu um pouco mais de atenção mediante o Estado brasileiro por intermédio da atuação de ações efetivas, tendo aplicabilidade da lei às transexuais ao deixar específico que a proteção da mulher independente de sua orientação sexual e identidade de gênero.

Logo, mulher é pertinente ao gênero feminino e não apenas ao sexo feminino, devendo sendo aplicada a lei Maria da Penha às transexuais femininas que tenham sido vítimas desse tipo de violência. Nesta perspectiva, já existem aplicações que atuam nesse viés:

  • Decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:

Conflito negativo de competência. Violência doméstica e familiar. Homologação de auto de prisão em flagrante. Agressões praticadas pelo companheiro contra pessoa civilmente identificada como sendo do sexo masculino. Vitima submetida à cirurgia de adequação do sexo por ser hermafrodita. Adoção do sexo feminino. Presença de órgãos reprodutores femininos que lhe conferem a condição de mulher. Retificação do registro civil já requerida judicialmente. Possibilidade de aplicação, no caso concreto, da Lei n.11.340/06. Competência do juízo suscitante. Conflito improcedente.”

(TJSC, CJ 2009.006461-6, j.14.08.2009, 3ª Câmara Criminal,rel.Des.Roberto Lucas Pacheco).

  • Decisão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

O desembargador João Ziraldo Maia proferiu medidas protetivas a uma mulher transgênero contra o ex-namorado que a agrediu, também trans. A vítima apresentou-se à polícia logo após o ocorrido, com documentos que comprovavam o nome social feminino, auferindo a proteção da lei Maria da Penha, demonstrando que a decisão deve ser pautada na fragilidade do gênero independentemente do sexo biológico portanto, identificar socialmente como mulher, ainda que nascido no corpo masculino está amparado pela lei nº11.340/06.

  • Decisão da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Gonçalo (RJ):

No Brasil outro caso ocorreu, no qual foi estabelecida medida protetiva a uma mulher transgênero em face da sua mãe, que internou compulsoriamente em uma clínica de psiquiatria a filha transgênero, por não aceitar a sua identidade de gênero, entendendo o Juiz que as protetivas da Lei Maria da Penha podem ser aplicadas àquelas do gênero feminino.

  • Decisão da 3° Vara do Júri do Foro da Capital do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP):

O promotor de justiça da terceira vara denunciou o ex-companheiro da vítima, uma mulher transexual, por ter estrangulado e assassinado a companheira de 10 anos e ainda ter ocultado o cadáver, após uma discussão. Essa é a primeira ação penal apresentada ao estado brasileiro em que é aceita a denúncia por feminicídio de uma mulher transexual, oferecida pelo Ministério Público de São Paulo, sendo aplicada a qualificadora no caso por conta da violência doméstica e familiar.

Diante de tantos casos citados e eivados de tamanha barbaridade e violência, mas, sobretudo com a nova forma de aplicabilidade do ordenamento jurídico às pessoas ligadas ao gênero feminino, fica comprovado que estas são pessoas com grande potencial a serem vítimas de crimes de violência de gênero. No entanto, é necessário observar que ainda é usado o entendimento de que, para caracterizar a qualificadora, é recomendável a alteração no registro civil e sexo do transexual, por isso, neste momento, deve-se atentar para o questionamento de Paul Ricoeur se: “as pessoas são corpos ou possuem corpos?”, demonstrando que os seres humanos são a junção psíquica, social e moral e o corpo é a descoberta física.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, compreende-se que o termo “mulher” possui uma definição complexa e seu conceito na Lei 13.104/15 ainda é bastante impreciso, engendrando diversas discussões acerca do tema. Por isso, é necessário reconhecer que o Direito é uma ciência evolutiva que deve adaptar-se às questões debatidas nos dias atuais e que, embora a redação das leis não seja compatível com a modernidade da sociedade contemporânea, sua interpretação deve ser.

Pode-se perceber que há uma lacuna na Lei do Feminicídio, deixando nítida a inaptidão do legislador quando o assunto versa sobre mulheres transexuais e travestis. Não existe uma garantia quanto a sua identidade de gênero muito menos quando a morte se dá em razão dela. Por esse motivo, tal qual a Lei Maria da Penha, o feminicídio deve ser aplicado ao sujeito que tira a vida dessas vítimas em razão do seu gênero feminino.

É visível que esse desamparo legal se deve ao fato do não reconhecimento da identidade de gênero dessas mulheres transexuais e travestis, colocando as mesmas numa posição de exclusão não só social como legal, o que consequentemente acaba gerando sua marginalidade. Importa lembrar que o princípio da igualdade não veda à lei o tratamento diferenciado entre grupos com distinção social, de sexo, de profissão, de condição financeira ou de idade, assim como não admite que este tratamento diferenciado seja de cunho discriminatório.

Em virtude do reconhecimento pelo STJ da dispensa de cirurgia de mudança de sexo para reconhecimento do direito dos transexuais à alteração em seu registro de nascimento, assim como, o recebimento da denúncia de feminicídio pela 3ª Vara do Júri de São Paulo, na qual a vítima era um transexual, conclui-se que, a cada dia, a doutrina e a jurisprudência brasileira se posicionam da forma que melhor atende à finalidade social da norma que tipifica o feminicídio, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Portanto, em face da interpretação dada à redação da norma em comento, é perfeitamente possível que o transgênero, levando em consideração os aspectos psicológico e social, possa ser considerado sujeito passivo do feminicídio, ainda que não tenha realizado a cirurgia de redesignação sexual.


REFERÊNCIAS

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Sobre as autoras
Rosária Bruna Conceição Marques

Bacharelanda em Direito do 9º período da Faculdade Estácio de Teresina-PI

Paula Richelle Almeida Silva

Bacharelanda em Direito do 9º período da Faculdade Estácio de Teresina-PI.

Ana Beatriz de Souza Santos

Bacharelanda em Direito do 9º período da Faculdade Estácio de Teresina-PI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Ana Beatriz Souza ; MARQUES, Rosária Bruna Conceição et al. A (im)possibilidade da mulher transgênero figurar como vítima de feminicídio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5641, 11 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70283. Acesso em: 20 abr. 2024.

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