Os fogos de artifício foram criados por chineses há milênios para espantar maus espíritos e atualmente são usados em celebrações no mundo todo. Nos últimos anos, porém, têm sido recorrente campanhas promovidas por entidades e militantes de defesa dos direitos dos animais contra queima de fogos de artifício, em especial nas festividades de fim de ano, sendo de conhecimento notório que animais se afligem com o som ensurdecedor, sendo comuns relatos e registros de ferimentos, ataques de pânico e desmaios. Veterinários alertam que sobretudo cães e gatos, cuja audição é bastante sensível, podem apresentar problemas neurológicos e cardíacos. Propõe-se como opção o uso de fogos silenciosos, que, ao mesmo tempo, evitaria estrondos pirotécnicos e proporcionaria a mesma beleza do espetáculo.
A crescente preocupação com animais revela mudança de perspectiva da relação entre o homem e o meio ambiente. Segundo Frederico Amado, "o Direito é tradicionalmente informado por uma visão antropocêntrica, ou seja, o homem é o ser que está no centro do Universo, sendo que todo o restante gira ao seu redor". Todavia, outras doutrinas éticas vêm ganhando corpo, como chamado biocentrismo, no qual se sustenta a existência de valor não só do ser humano, como dos demais seres vivos, a exemplo dos mamíferos, que são seres sencientes (têm percepção, como dor e prazer). "Por essa linha, a vida é considerada um fenômeno único, tendo a natureza valor intrínseco, e não instrumental, o que gerará uma consideração aos seres vivos não integrantes da raça humana", leciona Amado. O ordenamento jurídico brasileiro não trata animais como sujeitos de direito, mas os submete a um regime peculiar (2016, pp. 5-6).
Diversos municípios têm editado leis que procuram restringir o uso de fogos, não só para proteção de animais domésticos e silvestres, mas também de crianças, idosos e enfermos em face do barulho elevado causado por explosões que prejudica a paz e a tranquilidade. É o caso da Lei do Município de São Paulo n. 16.897, de 23 de maio de 2018, que proíbe o manuseio, a utilização, a queima e a soltura de fogos de estampido e de artifícios, assim como de quaisquer artefatos pirotécnicos de efeito sonoro ruidoso. Leis dessa natureza, apesar de contarem com amplo apoio da sociedade, sobretudo de entidades ligadas à defesa do animal, têm sido objeto de ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela indústria de explosivos.
Um dos principais pontos da corrente que sustenta a inconstitucionalidade se relaciona à competência legislativa sobre a matéria. Explica Marcelo Novelino que se adotou no país o modelo de Estado Federal, caracterizado pela descentralização político-administrativa fixada pela Constituição, pela participação das vontades parciais na vontade geral e pela auto-organização dos Estados-membros (2013, p. 700). Em decorrência disso, o texto constitucional traz repartição de competências entre os entes federativos, enumerando-se poderes à União (arts. 21 e 22) e aos Municípios (art. 30) e poderes remanescentes ou residuais aos Estados-membros (art. 25, § 1º), e, ao mesmo tempo, prevê possibilidade de delegação (art. 22, parágrafo único), competência administrativa comum (art. 23) e competência legislativa concorrente (art. 24). Nesse sentido, setores de fabricação e comércio de explosivos argumentam que leis municipais invadiriam a esfera de competência administrativa e legislativa da União, a quem competiria "autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico" (art. 21, VI) e legislar privativamente sobre "normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares" (art. 22, XXI). Também asseveram que, ao regular comércio de explosivos, os Municípios invadiriam a competência legislativa concorrente de União e Estados sobre produção e consumo (art. 24, V) e não haveria interesse local que justificasse a edição de leis municipais.
Com efeito, apesar de os fogos de artifícios não serem comumente utilizados para fins bélicos, a sua composição e natureza os tornam compatíveis com aqueles materiais, sujeitos ao controle de fabricação e comercialização por parte do Exército. O Decreto-lei 4.238/42 - recepcionado pela Constituição Federal de 1988 como lei ordinária - permite, em todo o território nacional, a fabricação, o comércio e o uso de fogos de artifício nas condições nele estabelecidas, que envolviam atividades por parte do Exército. O Decreto Federal 3.665/00, ao dar nova redação ao Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados, permite expressamente a fabricação e a comercialização de fogos de artifício, somente proibindo aqueles que contenham altos explosivos em suas composições ou substâncias tóxicas (art. 112), estabelecendo competir às Secretarias de Segurança Públicas estaduais a cooperação com o Exército no controle da fabricação de fogos de artifício e artifícios pirotécnicos e fiscalizar o uso e o comércio desses produtos (art. 33, VI).
O Poder Judiciário, majoritariamente, tem acolhido tais pleitos. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, já repeliu do ordenamento jurídico leis de diversos Municípios, como Guarulhos, Socorro, São Manuel, Itapetininga, Bauru e, mais recentemente, Tietê, cuja inconstitucionalidade (ADI 2223339-77.2017.8.26.0000, rel. Des. Amorim Cantuária, j. 07.03.2018) serviu de parâmetro para o deferimento do pedido de liminar e a suspensão da Lei 16.897/18, do Município de São Paulo, na ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Sindicato de Indústria de Explosivos do Estado de Minas Gerais (ADI 2114760-98.2018.8.26.0000). Asseverou o relator da ação, Des. Elcio Trujillo, que "a norma viola o princípio do pacto federativo, porquanto referidas matérias, por se enquadrarem no conceito de material bélico, são de competência privativa da União. Ademais, a legislação acerca de comércio e produção, em geral, têm sua competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal. A questão já foi regulamentada pela União e não há peculiaridades locais a autorizarem o Município a legislar a respeito". Além disso, para o magistrado, a proibição se afiguraria demasiadamente restritiva, inviabilizando a atividade econômica e invadindo a livre iniciativa e o exercício da atividade empresarial (j. 11.06.2018).
Entretanto, a decisão liminar foi reformada pelo colegiado no julgamento do agravo interno, cujo relator, Des. Celso Aguilar Cortez, fundamentou que, “ao contrário do que ponderou o sindicato autor, verifica-se que a lei mencionada visou precipuamente a impedir a utilização, queima e soltura de fogos de artifício que produzam poluição sonora (estouros, estampidos), os quais são, notadamente, os artefatos dessa natureza que mais malefícios trazem à comunidade e ao meio ambiente, incluída aqui a fauna silvestre e doméstica. Não pretendeu o legislador local proibir a soltura de fogos de artifício de efeito puramente visual nem os similares que acarretam barulho de baixa intensidade” (j. 05.09.2018). Tendo em vista o indeferimento do recurso interposto pelo sindicado contra essa decisão, a lei paulistana mostra-se perfeitamente aplicável até o deslinde a questão, inclusive nos festejos deste fim de ano, como anunciou a Prefeitura de São Paulo para o evento Réveillon na Paulista.
De fato, o que se verifica, ao menos na lei paulistana, é mero poder de polícia, que é o mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração Pública para deter as atividades individuais contrárias ou nocivas ao interesse geral. Nessa esteira, é legítimo exercício do poder de polícia pelo Município, que, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, se presta à "ordenação da vida urbana, regulamentando e policiando todas as atividades, coisas e locais que afetem a coletividade de seu território, visando propiciar segurança, higiene, saúde e bem-estar à população local" (2017, p. 516). Relativamente à poluição sonora, ensina o jurista que "certo é que quem elege uma cidade para sua residência deve suportar os ônus que ela apresenta; mas é dever do Poder Público amenizar, tanto quanto possível, a propagação de ruídos incômodos aos habitantes, especialmente nas horas de repouso . [...] Além das medidas diretas de abafamento de ruídos pelo uso de aparelhos especiais e a detenção de sua propagação pelo emprego de materiais refratários nas construções, o zoneamento das cidades, com a separação de bairros industriais, comerciais e residenciais, é a providência mais aconselhável para se obter o sossego necessário à saúde e à tranquilidade públicas" (2017, p. 528).
De se notar que a Lei Municipal 16.897/18 não proíbe o comércio de fogos de estampido e de artifícios, assim como de quaisquer artefatos pirotécnicos de efeito sonoro ruidoso, sob pena de incorrer em ofensa à competência concorrente da União, os Estados e do Distrito Federal de legislar sobre produção e consumo. O que a lei proíbe é o manuseio, a utilização, a queima e a soltura, sendo legítimo o Município fazê-lo em atendimento ao bem-estar da população local, em especial a crianças, idosos, enfermos e animais. Não há espaço também para suscitar violação da livre iniciativa, ainda que por via reflexa. O meio ambiente foi erigido a um valor de maior importância pela Constituição Federal de 1988, cuja proteção é dever de todos os entes federativos, inclusive Municípios (art. 23, VI), e constitui um dos princípios da ordem econômica (art. 170, VI). Leciona Eros Grau que "o princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, em si, é instrumento necessário - e indispensável - à realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos existência digna. Nutre também, ademais, os ditames da justiça social. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum ao povo - diz o art. 225, caput" (2018, pp. 248-9).
Ademais, a falta de previsão de aplicação de regras de competência legislativa concorrente (art. 24, §§ 1º a 4º) para os Municípios, cuja competência foi estabelecida para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I) e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (art. 30, II) não é óbice intransponível para que o Município de São Paulo ou qualquer outro com iniciativa semelhante possa legislar sobre assunto arrolado como de competência da União e dos Estados. Observa bem Pedro Lenza que o Supremo Tribunal Federal "firmou a tese de que o Município é competente para legislar sobre o meio ambiente com a União e Estado, no limite do seu interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, inciso VI, c/c 30, incisos I e II, da Constituição Federal" (RE 586.224, rel. Min. Luiz Fux, j. 05.03.2015). Conclui o constitucionalista que, "no caso, como já existe legislação federal prevendo a eliminação planejada e gradual da queima de palha de cana-de-açúcar (art. 40 da Lei n. 12.651/2012 - Código Florestal), não poderia a lei municipal ter fixado a proibição total e imediata, especialmente por não se enquadrar a matéria como de interesse local e específico daquele município. Estamos diante de importante precedente que inova, em nosso entender, a leitura sobre o tema da competência entre os entes federativos, procurando harmonizar as regras de competência concorrente (art. 24) com aquelas de interesse local e suplementar dos Municípios (art. 30, I e II)" (2018, p. 507).
Foi nessa linha que o Tribunal de Justiça de São Paulo, mais uma vez, não vislumbrou inconstitucionalidade em caso semelhante. Ao julgar uma lei municipal de Serra Negra que proíbe a soltura e manuseio de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos, a Corte Bandeirante entendeu que se tratava de polícia administrativa sobre gestão sonora, logo, competente o município para legislar sobre o assunto, declarando inconstitucional apenas a proibição de venda.
Eis a ementa:
"DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei nº 4.053, de 16 de fevereiro de 2018, do Município de Serra Negra, que dispõe sobre a proibição da soltura e manuseio de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos. Vício quanto à matéria cuidada. Inexistência. Exercício da função de polícia administrativa voltada à gestão da poluição sonora. Assunto de evidente interesse local. Princípio da razoabilidade. Inexistência de desrespeito. Proibição adequada, necessária e proporcional. Proibição plena. Possibilidade. Entendimento deste Colendo Órgão Especial. Não cabimento, todavia, da restrição de venda. Precedentes. Regulamentação. Cominação de prazo. Invalidade. Comando inaceitável. AÇÃO PROCEDENTE em parte." (TJSP, Órgão Especial, ADI 2137239-85.2018.8.26.0000, rel. Des. Beretta da Silveira, j. 05.12.2018).
Segundo o relator em seu voto, "o escudo do meio ambiente e o combate da poluição estabelecida em seu sentido lato integram a competência legislativa municipal, a exercer, dita postura, atividade de polícia administrativa, respeitados, à farta, os parâmetros trazidos pelas normas da União". Sendo um dever de todos os entes federativos, incluídos os Municípios, o dever de proteger o meio ambiente, regular o uso de artefatos, impedindo que sejam dotados de mecanismos que provoquem estouros e estampidos, constitui medida que não foge da razoabilidade. Prossegue o relator que o Decreto-lei 4.238/42 foi editado sem qualquer preocupação com o meio ambiente, cuidando apenas de classificar o material, estabelecer os sítios de fabricação e venda, impor licença à comercialização, limitar a aquisição dependendo da modalidade de artefato, e fixar, em raras hipóteses, locais inapropriados à queima, com ou sem a necessidade de alvará do Poder Público. Somente a proibição da venda estaria eivada de inconstitucionalidade, eis que é matéria afeta a relações de consumo, de competência da União, dos Estados e do Distrito Federal.
Dessa forma, entendo que a proibição pelo município de manuseio, utilização, queima e soltura de fogos de estampido e de artifícios de efeito sonoro encontra-se no regular exercício do seu poder de polícia, visando ao bem-estar de sua população local. O que resta vedado é a proibição de alcançar o próprio comércio dessa espécie de artefato, cuja licitude é garantida pelo arcaico Decreto-lei 4.238/42. Esse é o limite do exercício da competência municipal que tem que ser claramente compreendido. Sem prejuízo, urge atualização legislativa em nível nacional, adequando-a aos valores ambientais propugnados pela Constituição Federal de 1988, a exemplo de tratamento especial dado a animais, e espancando dúvidas e decisões contrárias à defesa do meio ambiente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 19ª ed., São Paulo: Malheiros. 2018.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 2018.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 18ª ed./atual. por Giovani da Silva Corralo, São Paulo: Malheiros, 2017.
NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8ª ed., São Paulo: Método, 2013.