2. A evolução dos investimentos diretos brasileiros no exterior
2.1. As origens dos investimentos diretos brasileiros no exterior: contexto histórico
A internacionalização produtiva das empresas brasileiras por meio do investimento direto no exterior é um fenômeno bastante recente. Ainda que seja possível constatar uma fase incipiente e pontual desse processo na década de 1970 (LUSSIEU da SILVA, pp. 148), pode-se afirmar que, de forma quantitativamente relevante, a internacionalização de empresas nacionais começa a ocorrer nos anos 1990 e, principalmente, no primeiro decênio do século 21 (CORRÊA e LIMA, pp. 249).
Como a industrialização brasileira baseou-se, em seus primórdios, no processo de substituição de importações, a produção nacional, até a década de 1990, era direcionada, preponderantemente, para o mercado doméstico, o qual, até o período de reformas neoliberais, gozava de ampla proteção tributária e, por conseqüência, enfrentava pouca competição interna e escassa exposição ao ambiente internacional. Ana Lúcia Guedes afirma, com base em Celso Furtado, que o coeficiente de abertura da economia brasileira, até o início dos anos 1990, era um dos mais baixos do ocidente. (GUEDES, pp. 338) Em decorrência desse cenário, a internacionalização mediante investimentos externos diretos não constava da agenda do empresário nacional, ainda que tenha ocorrido importante internacionalização produtiva por meio da exportação de bens manufaturados durante a década de 1970, principalmente por causa da necessidade imperiosa de obtenção de divisas.
Os esforços de integração econômica na América Latina, formalizados nos dois Tratados de Montevidéu, que instituíram, respectivamente, a ALALC (1960) e a ALADI (1980), não alteraram o perfil introspectivo dos investimentos brasileiros. Esses dois acordos tinham finalidade meramente comercial, uma vez que devem ser compreendidos, principalmente no caso do primeiro, conforme a lógica de desenvolvimento econômico advogado pelos economistas cepalinos. Os dirigentes latino-americanos almejavam aumentar o tamanho de seus mercados, por meio da eliminação das barreiras alfandegárias entre os países membros e da proteção tarifária em relação aos produtos cuja origem era externa ao bloco. O resultado desses esforços, no entanto, foi limitado, ainda que a ALADI, acordo multilateral flexível, esteja vigente e em funcionamento, na qualidade de tratado guarda-chuva, sob o qual foram instituídos, posteriormente, outros acordos regionais (e.g. Mercosul, Comunidade Andina).
A lógica da integração da ALALC e da ALADI era diversa, principalmente, daquela que predominou nos anos 1990. Os promotores dos pioneiros processos integrativos na região objetivavam mitigar as deficiências quantitativas e qualitativas dos mercados domésticos dos países da região, mediante o alargamento das fronteiras alfandegárias. Havia, dessa forma, preocupação efetiva com o desenvolvimento industrial e com o incremento da capacidade de absorção do empobrecido e incipiente mercado regional. Os investimentos produtivos, por sua vez, deveriam ser destinados, preferencialmente, ao próprio mercado interno.
A crise internacional do pensamento desenvolvimentista, os problemas econômicos domésticos (inflação, endividamento externo, perda de competitividade da produção industrial brasileira) e as grandes mudanças na estrutura da ordem internacional, ocasionadas pelo fim da guerra fria, ocasionaram o fim do ciclo de desenvolvimento econômico autárquico que caracterizou o país por quase meia década. A dissolução da URSS e o predomínio do pensamento neoliberal, formalmente consolidado no Consenso de Washington, foram aspectos importantes para desacreditar o modelo econômico de planejamento central e de desenvolvimento induzido pelo Estado. A relação, freqüentemente problemática, entre economia planejada e autoritarismo político foi determinante para que a consolidação democrática viesse acompanhada da adoção (acrítica e inercial, no entendimento de autores como Amado Luiz Cervo e Fagundes Vizzentini) dos preceitos neoliberais divulgados por teóricos e políticos ortodoxos dos países desenvolvidos.
Após as reformas liberalizantes iniciadas durante o governo Collor, as empresas nacionais são forçadas a se adaptarem, sob circunstâncias bastante desfavoráveis, à nova realidade econômica, caracterizada pela forte exposição à concorrência externa. Depois do primeiro choque liberalizante que causou danos relevantes ao setor produtivo brasileiro e da privatização de empresas estatais, as grandes empresas de capital nacional remanescentes iniciaram um canhestro processo de internacionalização produtiva, fase que durou até meados de 2002, ano em que foram definidas diretrizes de fomento público á internacionalização.
O fortalecimento da economia brasileira, o aumento da produtividade de grandes empresas nacionais, o enfraquecimento relativo da economia dos países desenvolvidos, os impasses nas negociações multilaterais de liberalização comercial, o recrudescimento do protecionismo comercial foram aspectos que influenciaram a internacionalização produtiva de algumas empresas brasileiras no primeiro decênio do século 21. O apoio oficial do BNDES – cujo programa específico surgiu no ano de 2002, após a aprovação de diretrizes ao financiamento do processo de internacionalização de empresas brasileiras que apresentassem viabilidade econômica e consistente plano de negócio – foi fundamental para garantir recursos à expansão das companhias nacionais. (ALÉM e CAVALCANTI, 2005).
2.2. As fases do investimento direto brasileiro no exterior
Márcia Tavares, em artigo baseado em estudo da CEPAL sobre o tema, explica que, tradicionalmente, a evolução dos investimentos brasileiros no exterior é dividida em três períodos: dos primeiros investimentos até 1982; de 1983 a 1992; e de 1993 em diante. Essas fases, de certa forma, coincidem com os momentos de grandes mudanças econômicas ocorridas no Brasil. A primeira fase é caracterizada pelo desenvolvimento autárquico, induzido e gerenciado pelo Estado. Na década de 1980, o projeto desenvolvimentista, baseado, fundamentalmente, na substituição de importações, na proteção do mercado doméstico e na relevante participação do Estado na economia começa a apresentar problemas (muitos deles decorrentes do elevado endividamento externo), o que gera contestação por parte de alguns grupos. Nos anos 1990, após as opções neoliberais do governo Collor, algumas empresas de capital privado nacional passam a investir de forma mais agressiva em mercados externos, característica que, com algumas alterações (a atuação direta e indireta do Estado brasileiro volta a ser relevante), conserva-se na atualidade.
Na fase inicial (até 1982), conforme Márcia Tavares, os investimentos foram feitos por empresas financeiras, construtoras e pela Petrobrás. Esta objetivava encontrar e explorar fontes de petróleo para abastecer o mercado doméstico, o qual, em plena expansão, carecia, principalmente após os choques do petróleo, de recursos energéticos. As empresas financeiras, por sua vez, entendiam que a atuação direta fora do país facilitaria a captação de recursos no mercado financeiro internacional. As construtoras eram aquelas que tinham estratégia menos defensiva, uma vez que investiam no exterior com a finalidade de conquistar novos mercados e de usufruir, em maior escala, da expertise em grandes obras de engenharia. O know how desenvolvido no mercado doméstico, principalmente durante o auge do “milagre econômico” brasileiro, garantia às construtoras importantes vantagens competitivas nos mercados externos, o que, juntamente com as perspectivas de altas taxas de lucro, estimulava a instalação de unidades em países produtores de petróleo, carentes de infra-estrutura para exploração do recurso (e.g. participação da Camargo Corrêa no projeto da usina hidrelétrica de Guri, na Venezuela) (Camargo Corrêa).
O segundo período (de 1983 a 1992), por sua vez, foi caracterizado, em razão das dificuldades econômicas do país, pela baixa capacidade de investimentos das empresas brasileiras. Além dos três setores destacados no período anterior, Tavares destaca os seguintes setores: de autopeças, de metal-mecânica, de têxteis e de embalagens, o que indica maior participação do setor industrial, o qual, no período, foi responsável por 10% dos investimentos brasileiros no exterior. A autora, além disso, explica que, nesse interregno, duas mudanças qualitativas foram importantes no conjunto dos investimentos: maior participação de empresas de médio porte e maior relevância da América do Sul como destino dos aportes brasileiros.
No terceiro período (de 1993 em diante), Tavares afirma que, em razão do processo de abertura econômica, as empresas mais competitivas sofreram um processo de reestruturação, por meio da profissionalização de sua administração, da diversificação de suas fontes financiadoras e da inovação de seus produtos. Essas mudanças possibilitaram a internacionalização da atividade dessas empresas. A estabilidade monetária, por sua vez, consolidada após 1994, foi fundamental para a capacidade de planejamento dessas firmas. No entendimento da autora, a maturidade das estratégias de investimento dessas empresas foi alcançada, no entanto, apenas na década seguinte, o que também é confirmado por Corrêa e Lima (pp. 249-250).
2.3. Características gerais dos investimentos brasileiros no exterior
Conforme estudo realizado, em 2006, por Corrêa e Lima (pp. 249), os investimentos brasileiros no exterior, de forma geral, apresentam evolução positiva constante desde 2001, ano em que o Banco Central do Brasil passou a publicar os números referentes ao estoque de capitais brasileiros no exterior. Seus principais destinos, excluídos paraísos fiscais, eram Argentina, Estados Unidos, Espanha, Portugal e Uruguai. No entendimento dos autores, a proximidade geográfica, a consolidação dos marcos institucionais do Mercosul, a afinidade cultural e a precedência de relações comerciais relevante foram aspectos que determinaram a posição de destaque recebida por esses países.
No caso de Argentina e de Uruguai, a proximidade geográfica e a existência do Mercosul foram, certamente, os aspectos principais para escolha do investidor. Como, entre os países pertencentes à união aduaneira, não há, em tese, barreiras alfandegárias, o empresário brasileiro pode instalar unidades produtivas nos dois países vizinhos, sem que seja penalizado pela perda do mercado de seu país de origem. O investimento nos Estados membros do Mercosul, por isso, não pode ser explicado por meio da teoria segundo a qual a decisão pelo IED é determinada, principalmente, por políticas protecionistas do Estado receptor. Os investimentos brasileiros na Argentina e no Uruguai não são soluções para vencer barreiras comerciais impostas por esses países, uma vez que ambos, juntamente com Brasil e Paraguai, constituem união aduaneira, a qual é incompatível com medidas protecionistas internas ao bloco, ainda que, no âmbito do Mercosul, haja inúmeras listas de exceções que, na prática, derrogam as regras da zona de livre comércio.
Os investimentos direcionados a Portugal e a Espanha, por sua vez, foram determinados pela proximidade cultural entre o país emissor e os países receptores do investimento. Com freqüência, aspectos culturais são fundamentais para o êxito da atividade empresarial. (CASTELLS, pp. 174-175) Proximidade lingüística, afinidade de princípios empresariais, semelhança de rotinas de trabalho podem facilitar o início e determinar a prosperidade da empreitada em território estrangeiro. Portugal e Espanha, além disso, são membros da União Européia, o que constitui características importante para as empresas que buscam penetrar em mercados afluentes e bem protegidos. Quando transnacionais brasileiras instalam-se em território português e espanhol, elas passam a usufruir das condições benéficas garantidas pelas normas comunitárias, as quais possibilitam acesso irrestrito aos mercados dos vinte e sete membros da União e proteção contra concorrência externa ao bloco. Nesse caso, por isso, as empresas que optam pelo investimento direto, por meio da constituição legal de unidades produtivas em território europeu, objetivam, de fato, neutralizar as políticas protecionistas - que, na atualidade, são exemplificadas pela imposição de rigorosas barreiras sanitárias, fitossanitárias e técnicas - dos membros da União Européia.
Os Estados Unidos constituem o outro receptor importante dos investimentos brasileiros diretos. As empresas brasileiras, como aquelas de outras origens, são fortemente atraídas pelo rico mercado e pelas facilidades de empreendedorismo nos EUA. Estes, na atualidade, constituem o maior receptor de investimentos estrangeiros diretos do mundo, à frente de China e de outros grandes países emergentes. No caso específico das empresas brasileiras, deve-se destacar que, em regra, os investimentos diretos de empresas como Petrobrás, Weg, Vale e Gerdau foram precedidos relevante fluxo de exportações, o que possibilitou conhecimento prévio da amplitude e das peculiaridades do mercado norte-americano. Como ocorre com as transnacionais brasileiras que direcionam investimentos diretos para a Europa, aquelas que investem nos Estados Unidos também objetivam transpor as barreiras impostas às exportações brasileiras, bem como se beneficiar dos vários acordos de livre-comércio dos quais os EUA fazem parte. O caso da Gerdau é paradigmático, pois a empresa, cujas principais unidades produtivas, em solo americano, estão sediadas em Michigan e na Flórida, transformou suas unidades estadunidenses em plataformas de exportação de aços longos (long steels) e de aços especiais (special steels). (Gerdau)
Deve-se notar que, conforme informado e explicado por Corrêa e Lima (pp. 250-251), os investimentos brasileiros no exterior apresentam as mesmas características dos fluxos mundiais de investimento: alta concentração no setor terciário, com destaque para operações financeiras e formação de holdings e de joint ventures, característica da economia internacional contemporânea criticada por autores que, como François Chesnais, explicitam a problemática relação de subordinação entre o capital produtivo e o capital financeiro.
No que concerne, especificamente, aos investimentos feitos pelo setor secundário da economia brasileira, Corrêa e Lima (pp. 253-256), com base em estudos publicados na década de 1990, divide a atuação das empresas nacionais em quatro grandes áreas: commodities, bens duráveis, tradicionais e difusores de tecnologia. As indústrias da área de commodities, apesar de apresentarem elevado índice de produtividade e grande penetração no comércio exterior, são caracterizadas pelo baixo esforço tecnológico. Na área de bens duráveis, as indústrias, no Brasil, são, em regra, subsidiárias de empresas estrangeiras, as quais apresentam elevada produtividade e prestação de assistência técnica rápida e eficiente. Por sua vez, as indústrias tradicionais - constituídas por empresas do setor têxtil, calçadista, mobiliário - caracterizam-se pela grande heterogeneidade produtiva. As indústrias área de difusores de progresso técnico são aquelas que abarcam os produtores de bens de capital. Sua principal característica é a capacidade de elevar a produtividade das outras áreas.
As indústrias da área de commodities são aquelas que apresentam maior representatividade nos investimentos diretos no exterior, seguidas das indústrias tradicionais e das difusoras de progresso técnico. Essa preponderância das indústrias de commodities em parte pode ser explicada pela atuação da Petrobrás e da Vale, duas empresas gigantes, freqüentemente listadas entre as maiores do mundo.
Deve-se notar que, com base nessa classificação, se comparados com o total dos investimentos diretos brasileiros no exterior, os investimentos do setor secundário são bastante pequenos e proporcionalmente decrescentes (de 8,0% para 3,7% entre os anos de 2001 e 2005). Os investimentos do setor secundário, no entanto, continuam sendo o melhor indício do grau de internacionalização produtiva de um país.