Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade jurídica de reconhecimento das entidades familiares poliafetivas. Primeiramente se faz uma análise das relações sociais poliafetivas com os elementos mais significativos da sociedade contemporânea, de forma a situá-las como um fenômeno característico da contemporaneidade. Em seguida, a poliafetividade é dissecada sob uma ótica multidisciplinar, de forma a diferenciá-la de fenômenos como a poligamia cultural e o paralelismo afetivo. A partir daí, é analisada a possibilidade de, ao menos no campo socioantropológico, haver a formação de uma entidade familiar a partir dos relacionamentos poliafetivos. Passa-se, em seguida, à contextualização jurídica do conceito de família no direito brasileiro, com a abordagem sintética do seu desenvolvimento desde as ordenações reais até a contemporaneidade, em especial quanto à adoção do critério afetivo em detrimento do patrimonial pela Constituição de 1988. Segue-se a análise crítica dos argumentos trazidos pela ADFAS e pelo IBDFAM no processo nº 0001459-08.2016.2.00.0000, que trata da possibilidade ou não de reconhecimento das famílias poliafetivas. Por fim, é feita uma análise da possibilidade de reconhecimento à luz da tese de superação da monogamia como princípio e da origem epistemológica do conceito de dignidade da pessoa humana. Conclui, enfim, pela possibilidade de reconhecimento das famílias poliafetivas no direito brasileiro.
Palavras-chave: Famílias poliafetivas; possibilidade de reconhecimento; princípio da monogamia; dignidade da pessoa humana; sociedade contemporânea.
Introdução
A discussão acerca da possibilidade jurídica de reconhecimento das famílias poliafetivas é recorrente perante a doutrina contemporânea no campo do Direito das Famílias. São encontradas, com frequência, opiniões das mais diversas sobre o assunto. Todavia, muito poucos estudos foram, até o momento, desenvolvidos com a necessária profundidade e embasamento teórico, o que leva tal problemática a ser constantemente interpretada de acordo com o senso comum, mesmo no meio jurídico.
Diante desse vácuo teórico, este trabalho tem como objetivo geral proceder à análise aprofundada dos núcleos familiares poliafetivos perante o Direito das Famílias contemporâneo, bem como avaliar a possibilidade do seu reconhecimento jurídico.
Para atingir este fim, é necessário traçar também alguns objetivos específicos: fazer um levantamento bibliográfico acerca da concepção de família poliafetiva e das suas principais modalidades; abordar a possibilidade de se reconhecer juridicamente o núcleo familiar baseado em relações poliafetivas; destrinchar os aspectos particulares de cada modelo de relacionamento poliafetivo, e a análise da possibilidade do seu reconhecimento em face dos argumentos trazidos no Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, que trata do assunto, bem como dos seus aspectos constitucionais.
O interesse pelo tema em questão surgiu durante um estágio jurídico desenvolvido no Ministério Público baiano, perante a 5ª Procuradoria de Justiça Cível, em setembro de 2015, quando me deparei com um processo no qual o MP viria a atuar como fiscal da lei e cujo tema versava sobre o reconhecimento de uma união estável em relação a um homem que já possuía outra união reconhecida juridicamente, em simultaneidade com esta, cientes e anuentes ambas as companheiras da situação em que o homem vivia. O processo visava a discussão da incidência de efeitos previdenciários apenas sobre a união mais antiga.
No primeiro grau, foi negado o reconhecimento à união mais recente, que teria ficado a par de qualquer tipo de tutela jurídica, a despeito da existência da vida em conjunto, o que levou a acionante a apelar da decisão de piso. Pelo sorteio, o processo terminou nas mãos do meu então orientador de estágio, que me repassou o caso para a elaboração do opinativo ministerial.
À época, elaborei um parecer favorável ao reconhecimento das uniões estáveis simultâneas, ratificado na íntegra pelo Procurador de Justiça e, assim, colacionado aos autos. Contudo, neste caso, como em tantos outros similares, o Tribunal de Justiça baiano entendeu não ser cabível tal reconhecimento, seguindo o entendimento jurisprudencial vigente e, como resultado, restou negado um direito que, em meu entender, seria decorrente de toda uma vida construída em comunhão, ainda que parcial. Inobstante o desapontamento momentâneo quanto ao resultado da demanda, constantes reflexões sobre a invisibilidade jurídica dos modelos de família não monogâmicos me acompanhariam nas próximas etapas do desenvolvimento acadêmico.
Eventualmente, após polêmica gerada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao recomendar a suspensão das emissões de escrituras públicas de reconhecimento de uniões civis entre mais de duas pessoas, renovou-se a indagação, mas com novo direcionamento: por que não poderiam ser reconhecidas as configurações familiares poliafetivas? Qual o posicionamento mais atual da doutrina sobre a poliafetividade? Haveria possibilidade jurídica de reconhecimento ao final do processo perante o CNJ? Se sim, quais os modelos de família poliafetiva reconhecíveis? Qual seria a melhor interpretação da temática sob a tutela constitucional? A atual sistemática do direto das famílias comportaria tal mudança?
Daí se originou a necessidade de desempenhar uma reflexão jurídica acerca deste tema, com o necessário aprofundamento teórico, visto que a sua presença na dinâmica da sociedade contemporânea é crescente, em sentido contrário à profundidade com a qual é frequentemente discutido perante o direito civil-constitucional.
metodologia
Quanto à metodologia, o caminho percorrido durante este trabalho foi, principalmente, o da pesquisa bibliográfica. Esta categoria de análise se define, segundo Telma de Lima e Regina Mioto, não como uma mera revisão de literatura, a qual é “um pré-requisito para a realização de toda e qualquer pesquisa”, mas por “um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao objeto de estudo” (LIMA e MIOTO, 2007, p. 38).
Para Salvador (1986), o método bibliográfico consiste na leitura sucessiva do material coletado, em um processo de cinco etapas: leitura de reconhecimento, que consiste em uma leitura rápida para filtrar o material que pode conter informações relevantes; leitura exploratória, também rápida, cujo objetivo é confirmar a relevância; leitura seletiva, que procura separar aquilo que é pertinente dentro do texto; leitura crítica do material, com base no ponto de vista do autor da obra; e, por fim, leitura interpretativa, em que são relacionadas as ideias expressas na obra com o problema da pesquisa, de forma entrecruzada com as demais fontes escolhidas.
A leitura de reconhecimento e a exploratória foram feitas majoritariamente pela via digital, com a utilização do termo chave “famílias poliafetivas” em conjunto com as demais palavras pertinentes, principalmente “reconhecimento”, “direito”, “modalidades”, “separação”, “filhos” e “sucessão” em indexadores de informações contidos na rede mundial de computadores. Além disso, houve a consulta bibliográfica física na biblioteca da Universidade do Estado da Bahia, com a seleção das obras de Maria Berenice Dias, Flávio Tartuce e Paulo Luís Netto Lôbo como referenciais teóricos para o desenvolvimento das etapas subsequentes da pesquisa.
Já as leituras seletiva e crítica foram empregadas no decorrer da pesquisa para a construção dos conceitos centrais e adjacentes, bem como à estruturação fundamental da monografia, servindo de base à etapa derradeira e ao subsequente aperfeiçoamento da pesquisa.
A fase de leitura interpretativa, por fim, envolveu a apreciação qualitativa dos dados apresentados. Segundo Chizzotti (2006), a análise de dados consiste na decodificação de um documento por um dentre diferentes meios, escolhido com base no material a ser analisado, nos objetivos da pesquisa e na posição ideológica e social do analisador.
Além da pesquisa bibliográfica, interessa a este trabalho desempenhar, com base no mesmo método e rigor, a pesquisa documental. Trata-se, como definem Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009), do método pelo qual se tem por objetivo a extração de informações de documentos, por meio do seu manuseio e análise sistemática.
A distinção entre a pesquisa bibliográfica e a documental é trazida por Oliveira (2007), que afirma ser a primeira uma modalidade de estudo e análise de documentos de domínio científico como livros, periódicos, etc., enquanto a segunda caracteriza-se pela busca de informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico, como é o caso das manifestações processuais que serão analisadas no terceiro capítulo.
Como meio mais adequado para balizar a análise desses documentos, adota-se neste trabalho análise de conteúdo teorizada por Bardin (1991). Os objetivos desta forma de análise, segundo a autora, são: a superação da incerteza, em que o pesquisador determina se a sua análise pessoal é válida e generalizável; e o enriquecimento da leitura, na qual essa se faz mais atenta aos detalhes do objeto de pesquisa que podem confirmar ou invalidar aquilo que buscam demonstrar.
Se trata, portanto, de um conjunto de técnicas de análise de comunicação que tem uma função heurística, pois aumenta a propensão do descobrimento e a cautela exploratória, bem como uma função de verificação probatória, por meio da análise sistemática das hipóteses formuladas para confirmá-las ou invalidá-las.
A análise do conteúdo, segundo Bardin (1991), se divide em três etapas. A pré-análise, que se traduz nas três primeiras fases da pesquisa bibliográfica, já relacionadas, consiste em organizar o material a ser analisado e torná-lo operacional. Em seguida, passa-se à exploração do material, com a codificação, classificação e categorização dos textos por meio de estudos aprofundados. A terceira fase é destinada ao tratamento dos resultados, culminando na análise reflexiva e crítica. A observação destas três fases é de suma importância para que o processo de análise tenha confiabilidade e valor como método de pesquisa.
Este trabalho está estruturado em três itens. O primeiro trata das questões relativas à formação dos elos familiares poliafetivos na dinâmica da sociedade contemporânea. O segundo aborda a evolução jurídica do conceito de família no Brasil como forma de contextualizar a discussão. Já o terceiro tem como foco a análise dos argumentos acerca da possibilidade ou não de reconhecimento das famílias poliafetivas trazidos pela ADFAS e pelo IBDFAM no Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, em tramitação perante o CNJ até o momento da conclusão deste trabalho, bem como da análise do tema sob o aspecto constitucional, com a conclusão pela possibilidade de reconhecimento.
ENTIDADES FAMILIARES POLIAFETIVAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E SUAS BASES
O advento da sociologia da contemporaneidade trouxe consigo a superação da visão pós-moderna de realidade e tem por base a análise das relações interpessoais dentro de um contexto globalista e voltado à sociedade de consumo. Tem-se, assim, um contexto de “fim dos padrões, da estabilidade, da segurança e das certezas. Surge o tempo da indefinição, do medo e da insegurança” (SILVA, A., p. 32).
Dentre os expoentes do pensamento sociológico contemporâneo, destaca-se Zygmunt Bauman, autor da obra “Modernidade Líquida”, publicada em 2000. Nesta, afirma que “a sociedade que entra no século XXI não é menos "moderna" do que a sociedade que entrou no século XX” (p. 28). Para tanto, destaca que o elemento definidor da modernidade é a compulsiva e obsessiva continuidade do processo de destruição criativa, que diferencia o período em questão dos anteriores.
Entretanto, Bauman (2000) distingue a modernidade contemporânea por dois aspectos. O primeiro é “o colapso gradual e o rápido declínio da ilusão moderna inicial: da crença de que existe um fim da estrada ao longo do qual procedemos, um telos atingível da mudança histórica” (p. 29). Assim, o autor destaca que na sociedade contemporânea não existe mais a ideia de que se atingirá um eventual estado de ordem perfeita, ou seja, não se acredita mais na utopia.
O segundo aspecto da sociedade contemporânea é a “desregulamentação e privatização das tarefas e deveres de modernização” (BAUMAN, 2000, p. 29). Assim, define que a visão de modernização passou do imaginário coletivo para uma visão individualista e, portanto, fragmentada.
Dessa forma, Bauman (2000) assevera que a sociedade contemporânea é marcada pela desintegração das relações sociais e pela destruição das formas eficazes de ação coletiva. Essa desintegração social é tanto uma condição quanto o resultado da liquidez típica da contemporaneidade: ao passo que o referido desmonte deve ser contínuo para que se mantenha um estado de crescente fluidez, foi a fragilização das ligações humanas - em face do advento do consumismo e da globalização - que permitiu, em primeiro lugar, o seu surgimento.
A família, como fenômeno social, evidentemente sofreu adaptações diante da contemporânea liquidez das relações humanas. É como expõe o sociólogo Ulrich Beck (2001), ao falar sobre a família:
Pergunte-se o que realmente é uma família hoje em dia? O que isso significa? Claro que existem seus filhos, meus filhos, nossos filhos. Mas até mesmo a paternidade, núcleo da vida familiar, está começando a se desintegrar por conta do divórcio. Famílias podem ser constelações de relacionamentos muito diversos. (...)
Se você perguntasse a definição de lar há 10 ou 20 anos, a resposta era bem direta. Hoje não existe resposta simples. Pode-se defini-lo como uma unidade geográfica, uma unidade econômica em que indivíduos são economicamente suportados e dependentes uns dos outros, ou uma unidade social de indivíduos que querem viver juntos. E, claro, essas definições podem contradizer umas às outras. (BECK, 2001, p. 204)
Como destaca Beck (2001), não se pode mais avaliar a família sem que se atente à recente inconstância dos próprios relacionamentos que, antes rígidos, compunham-lhe o núcleo. Pelo contrário, a flexibilização do matrimônio trouxe à família, primeiro lugar de formação dos indivíduos, a liquidez característica da modernidade, com a possibilidade de que a mesma pessoa se case duas vezes ou mais e constitua, dessa forma, diversas famílias que se interseccionam em uma teia de relações cujos laços terminam invariavelmente enfraquecidos.
A ideia de uma teia de relações típica da contemporaneidade pode ainda ser utilizada de forma a compreender os relacionamentos poliafetivos ante a modernidade líquida de Bauman. A palavra “poliafetividade” é, em si, um neologismo cunhado para designar casos em que há um único relacionamento afetivo entre mais de duas pessoas, que se aceitam e convivem entre si, em configurações que, muitas vezes, assumem o caráter de um núcleo familiar. Trata-se, portanto, de um termo distinto da “poligamia” que é pautada na simultaneidade de relações matrimoniais, independentemente dos demais requisitos para a constituição familiar.
Verifica-se, assim, que o termo “poliafetividade” se distingue dos demais utilizados pela literatura na medida em que descreve o fenômeno de relacionamento eminentemente típico da contemporaneidade ocidental, que não se confunde com os demais modos de relacionamento estabelecidos de forma histórica ou cultural. Desse modo, a poliafetividade foi selecionada como foco deste trabalho, que o trabalhará dentro das suas peculiaridades.
A POLIAFETIVADE COMO FENÔMENO SOCIAL CONTEMPORÂNEO
Para situar a poliafetividade como fenômeno contemporâneo, é necessário, antes, abordar a multiplicidade de parceiros afetivos em seu aspecto histórico-cultural. O ser humano surgiu, como espécie, no continente africano, há cerca de 200.000 anos, conforme estudos envolvendo a análise comparativa de sequências do DNA mitocondrial (PENNY et al., 1995). Contudo, estudos genéticos mais recentes (DUPANLOUP et al., 2003) demonstram que a monogamia apenas se desenvolveu entre 20.000 a 10.000 atrás, o que representa apenas entre 5% a 10% de toda a história humana.
Ademais, mesmo com o surgimento cultural da monogamia, não se pode afirmá-la como regra majoritária. O antropólogo estadunidense George Murdock, em sua obra “Social Structure”, publicada pela primeira vez em 1949, fez um trabalho etnográfico que envolveu a análise de 250 comunidades de origens totalmente distintas, cujas bases iam da caça e coleta ao desenvolvimento industrial. Destas, em 195 eram permitidos, ao menos, casamentos plurais limitados, ao passo que a monogamia estrita apenas incidiu em 43 casos. O autor é preciso ao destacar que:
A família poligâmica pode aparecer, naturalmente, somente em sociedades que permitem casamentos plurais. Não pode coexistir com a monogamia estrita, que prevalece em 43 sociedades da nossa amostragem, em oposição a 195 que permitem, ao menos, casamentos plurais limitados. (MURDOCK, 1949, p. 24, em tradução livre)
Fica bem evidenciado nesse estudo que nem todos os modelos de famílias estruturadas com base na multiplicidade de parceiros afetivos são culturalmente aceitos na mesma proporção. A “poliginia”, que envolve o casamento de um homem com várias mulheres, aparece em 193 casos, ao passo em que a “poliandria”, inversa à anterior, apenas incide em 2 das 250 comunidades estudadas.
Os casamentos grupais, que constituem um modelo mais similar à poliafetividade no sentido de que não existem normas sociais que limitem a formação de lações afetivos, são uma peculiaridade antropológica que apenas ocorre de forma significativa nos índios Kaingang, cujo território histórico situa-se entre o Rio Tietê, em São Paulo, e o rio Ijuí, no nordeste do Rio Grande do Sul. Murdock é incisivo em destacar, na sua obra, o caráter singular desta modalidade de relacionamento, quando afirma que:
O casamento grupal, apesar de ocupar um lugar proeminente na literatura teórica inicial da antropologia, parece nunca existir como norma cultural. Ocorre em apenas um punhado de tribos em nossa amostra, e então apenas sob a forma de instâncias individuais altamente excepcionais. Sua ocorrência mais freqüente está entre os Kaingang do Brasil, uma tribo com associações sexuais extremamente livres e fluidas. Uma análise estatística das genealogias Kaingang durante um período de 100 anos mostrou que 8% de todas as uniões gravadas eram uniões em grupo, comparado com 14% para poliândricas, 18% para poligínicas, e 60 por cento para uniões monogâmicas. (MURDOCK, 1949, p. 24, em tradução livre)
No trecho destacado, se pode ver que, mesmo na comunidade mais aberta a diferentes modalidades de relacionamento, a maior parte é monogâmica e menos de um décimo das uniões é composta por casamentos em grupo. Diante disso, é evidente que, apesar de a maior parte das 250 comunidades estudadas não adotar a monogamia estrita, a institucionalização da poliafetividade por meio do casamento costuma ser excepcional.
De acordo com os resultados da pesquisa de MUDOCK (1949), pode ser visto também que o fenômeno cultural poligâmico, como um todo, tem um caráter historicamente patriarcalista: se considerado o valor percentual de incidência das suas diferentes modalidades, apenas 1,2% possibilita às mulheres que tenham mais de um parceiro e somente na comunidade Kaingang, representativa de 0,4% de todas comunidades estudadas, há a plena liberdade de constituição de relacionamentos para homens e mulheres.
Com o advento da contemporaneidade, a poliafetividade começou a ganhar adeptos em sociedades em que não se verifica uma tradição poligâmica. Tal disseminação teve, como principais fundamentos, ideias próprias da nova modernidade, como igualdade de gênero e liberdade sexual, que deram ao fenômeno uma identidade totalmente diferente da mera poligamia cultural. Nikó Antalffy e Lola Houston (2016), destacam, nesse sentido, a diferença entre o poliamor, que representa o fenômeno social contemporâneo, e a poligamia, fenômeno estritamente cultural:
A poligamia é geralmente uma instituição associada à religiosidade e tradições pré-modernas, enquanto o poliamor é um fenômeno secular moderno associado ao pensamento liberal progressivo. Consequentemente, enquanto a poligamia é a reserva das religiões tradicionais e fervorosamente heterossexuais (principalmente religiões islâmicas em várias sociedades e mórmons minoritários no ocidente), muitas pessoas bissexuais, gays, lésbicas e transgêneros são atraídas pelo poliamor. Embora, ocasionalmente, as estruturas de relacionamento da poligamia e do poliamor tenham alguma semelhança entre si (e os termos são freqüentemente usados indistintamente), os valores subjacentes e a filosofia diferem-se muito. (ANTALFFY; HOUSTON, 2016, p. 2, em tradução livre)
Assim, corrobora-se a ideia de que os modelos poliafetivo e poligâmico possuem valores e filosofias totalmente distintas. Outro aspecto que difere o modelo contemporâneo do modelo histórico-cultural é a possibilidade de que haja uma classificação hierárquica dos relacionamentos. Com isso, Antalffy e Houston destacam ser possível a ampliação dos modelos de relacionamento poliafetivo, quando falam que:
Alguns praticam o poliamor não hierárquico, em que todos são considerados parceiros iguais independentemente da coabitação e de outros padrões. Outros mantêm uma hierarquia com relações primárias, secundárias e terciárias que podem diferir em força, frequência de contato, coabitação, finanças, uso proteção no ato sexual, etc. As formações fechadas que restringem as relações adicionais são referidas como polifidelidade. (ANTALFFY; HOUSTON, 2016, p.2, em tradução livre)
A possibilidade de que os relacionamentos sejam hierarquizados por importância e significado também se configura como um elemento indicativo da relação entre a poliafetividade e o mundo contemporâneo. Enquanto a “polifidelidade” a que se referem os autores, permite o desenvolvimento de relações de afeto e confiança de caráter duradouro, a poliafetividade hierarquizada guarda uma correlação extremamente clara com o conceito de liquidez dos relacionamentos cunhado por Bauman (2003).
Um dos exemplos de fluidez dos relacionamentos contemporâneos trazidos pelo autor é o do échangisme, que pode ser traduzido como troca de casais. Neste, há um afrouxamento do compromisso matrimonial de forma a minimizar as incertezas relacionadas às expectativas ligadas à relação:
Les échangistes estão matando dois coelhos com uma só cajadada. Em primeiro lugar, eles afrouxam um pouco os grilhões do compromisso matrimonial, concordando em tornar menos obrigatórias as suas conseqüências e, portanto, um pouco menos angustiante a incerteza gerada pela obscuridade endêmica das expectativas. Em segundo lugar, conseguem cúmplices leais em seu esforço para rechaçar as conseqüências incertas, e portanto irritantes, do encontro sexual — já que todas as partes interessadas, tendo participado do evento e portanto desejosas de evitar que escape à moldura do episódio, seguramente estarão juntas nesse rechaço. (BAUMAN, 2003, p. 34)
Com base no que Bauman traz sobre a prática do échangisme, pode ser feita também uma interpretação das relações poliafetivas. O ponto de ligação é, justamente a sua existência como alternativa de enfrentamento da incerteza, ao passo em que afrouxa ou elimina as consequências obrigatórias do compromisso monogâmico. Com isso, se verifica que há nas relações poliafetivas uma maior fluidez das relações, o que traz à tona o seu aspecto contemporâneo.
A poliafetividade contemporânea pode ser considerada também sob a égide do consumismo. De acordo com BAUMAN (2003), “a vida consumista favorece a leveza e a velocidade. E também a novidade e a variedade que elas promovem e facilitam. É a rotatividade, não o volume de compras, que mede o sucesso na vida do homo consumens” (p. 32). Para o autor, esse estilo de vida típico da contemporaneidade se traduz na forma como se vislumbram as relações sexuais, ao afirmar que:
O "sexo puro" é construído tendo-se em vista uma espécie de garantia de reembolso — e os parceiros do "encontro puramente sexual" podem se sentir seguros, conscientes de que a inexistência de "restrições" compensa a perturbadora fragilidade de seu engajamento.
Graças a um inteligente estratagema publicitário, o significado vernáculo de "sexo seguro" foi recentemente reduzido ao uso de preservativos. O slogan não seria o sucesso comercial que é se não atingisse um ponto sensível de milhões de pessoas que desejam que suas explorações sexuais sejam garantidas contra conseqüências indesejáveis (já que incontroláveis). (BAUMAN, 2003, p. 33)
A relação feita pelo autor entre o consumismo e a liquidez das relações interpessoais contemporâneas pode ser observada, na prática, quanto aos relacionamentos poliafetivos abertos, que permitem uma rotatividade de relacionamentos secundários. Neste modelo, pode-se estar com quem quiser, no momento que for mais conveniente, sem qualquer tipo de compromisso: os parceiros são tratados, efetivamente como objetos de consumo plenamente descartáveis. Trata-se, portanto, de uma liquidez absoluta.
Mesmo nas relações poliafetivas que pressuponham uma fidelidade interna, existe, em certo grau, a liquidez de Bauman. A razão para tal é que, invariavelmente, o relacionamento poliafetivo é uma dissolução do modelo monoafetivo rígido, típico da modernidade primária. A poliafetividade é, nesses termos, um fenômeno social eminentemente contemporâneo, mesmo que sua aceitação no contexto social seja ainda minoritária.
ASPECTOS DA POLIAFETIVIDADE SOB UMA ÓTICA MULTIDISCIPLINAR
No aspecto psicológico, em nenhum dos estudos apreciados acerca do tema foi identificada, nos adeptos da poliafetividade, a incidência de quaisquer características negativas distintas das que também se apresentam na população geral.
Weitzman, Davidson e Phillips Jr. (2009), ao trazer os problemas mais enfrentados pelo grupo, destacam que as principais dificuldades psicológicas enfrentadas geralmente envolvem o sentimento de culpa relacionado tanto à divergência do modelo social tradicional, que condena os relacionamentos não monogâmicos, quanto ao próprio ideal de que os ciúmes e a possessividade seriam sentimentos imaturos.
Sob uma perspectiva crítica, tem-se ainda que a quebra da monogamia é uma forma de emancipação sexual e emocional. Neste sentido, foi publicado na revista “Sexualities” um artigo de Haritaworn, Lin e Klesse (2006), em que são destacados os papéis desempenhados pelos diferentes movimentos sociais quanto à defesa do estilo de vida poliafetivo.
Apresentam ainda estes autores a crítica da monogamia tradicional, desempenhada pelo movimento feminista, que traz o casamento como uma forma de institucionalização da posse masculina sobre a mulher. O contraponto que as feministas colocam, nesse aspecto, é “a promoção de relacionamentos baseados em valores como cuidado, intimidade, honestidade, igualdade, não exclusividade e autonomia de relacionamento” (HARITAWORN et al., 2006, p. 518). Também se destaca no estudo a alta incidência de relacionamentos não monogâmicos na cultura gay masculina e nos adeptos da subcultura BDSM.
Na teoria desenvolvida por Haritaworn, Lin e Kleese (2006), para a construção da poliafetividade como método emancipatório para os que mais necessitam, ainda é necessário um maior esforço dos setores sociais sexualmente privilegiados. É como afirmam:
Se quisermos construir comunidades poliamorísticas abertas àqueles cujas intimidades são mais necessitadas de emancipação - aqueles cujos corpos e sexualidades foram violentamente explorados, demonizados e reprimidos através do racismo, transfobia, capacitismo e outros sistemas de opressão -, há muito trabalho a ser feito. Dado que o empoderamento sexual é muitas vezes considerado como um luxo dos sujeitos sexuais mais privilegiados, cabe aos brancos, às pessoas não-trans e às pessoas não-deficientes abrir radicalmente os espaços poliamorísticos, redistribuir recursos sexuais positivos e compartilhar ativamente o poder de definir diretamente o poliamor e outros discursos sexuais radicais. (HARITAWORN et al., 2006, p. 518, em tradução livre).
Entendem, dessa forma, que a emancipação sexual por meio da poliafetividade passa pela abertura dos seus espaços às minorias sexualmente desfavorecidas: transexuais, negros e deficientes. Nestes casos, destacam ser necessário que as pessoas que não sofrem com a estigmatização social comum aos grupos apresentados possibilitem e estimulem diretamente o empoderamento sexual dessas minorias.
Os relacionamentos poliafetivos podem também ser classificados de formas muito distintas entre si. Desse modo, é importante alertar que nem todas as suas subdivisões podem assumir caráter familiar entre todos os envolvidos, razão pela qual se torna imprescindível analisar as peculiaridades de cada uma.
O estudo de Labriola (1999) sobre os tipos de relacionamentos poliafetivos consensuais os divide em três modelos: o primário/secundário, em que a um casal tem primazia sobre as demais relações; o primário múltiplo, em que existe um relacionamento entre mais de duas pessoas; e o múltiplo não-primário, em que não há qualquer tipo de compromisso.
Ao tratar do modelo primário-secundário, entende a autora se tratar da “mais comumente praticada forma de relacionamento aberto e a mais similar ao casamento monogâmico” (LABRIOLA, 1999, p. 218). Neste, os membros do casal primário pactuam que não há problemas quanto à manutenção de uma ou mais relações paralelas, de longo ou curto prazo, com a mesma pessoa ou não, contanto que fique claro para todas as partes que se trata de um consenso e que há apenas um casal principal, o qual sempre tem prioridade sobre os outros na tomada de decisões.
Comenta que a popularidade deste modelo se deve à similaridade com o casamento tradicional, com a coabitação a dois e a possibilidade de uma vida “normal” e sem maiores implicações sociais. Contudo, esse tipo de relacionamento não é sem dificuldades, a ponto de chamar a autora a atenção de que:
No entanto, um grande inconveniente deste modelo é que as relações externas não são tão simples ou fáceis de prever ou controlar. Ter uma relação sexual com outra pessoa muitas vezes leva a se tornar emocionalmente envolvido e até mesmo se apaixonar, freqüentemente causando uma crise no relacionamento primário e até mesmo divórcio. [...] Para que este modelo seja bem sucedido, os casais devem estar muito convencidos de que sua relação é forte o suficiente para resistir a esses altos e baixos. Inversamente, alguns pares que começam com este modelo decidem eventualmente mudar para alguma forma do modelo primário múltiplo e permitir que as relações secundárias se tornem iguais à do casal primário. (LABRIOLA, 1999, p. 220/221, em tradução livre)
Quanto ao modelo primário múltiplo, a autora mostra que abrange as unidades de convívio formadas por mais de duas pessoas, que se traduzem em duas formas diferentes: a polifidelidade e a aberta. A primeira é composta por mais de duas pessoas em comunhão de vida e responsabilidades e vivendo sob o mesmo teto. A orientação sexual determina quais relações sexuais podem ser mantidas: “se todos os membros são heterossexuais, todas as mulheres têm relações sexuais com todos os homens. Se as mulheres são bissexuais, eles podem ter relações sexuais com as mulheres, bem como os homens. E assim por diante” (LABRIOLA, 1999, p. 221).
Conforme indica o estudo, a polifidelidade admite uma quantidade bastante flexível de pessoas, que a autora limita entre três e seis, mas que pode chegar a abranger todos os membros de determinada comunidade, embora se trate de uma situação extremamente atípica. Um exemplo é a comunidade mórmon de Oneida, ativa no final do século XIX, que “tinha a monogamia como restritiva e praticava a pantagamia [...] onde cada mulher é considerada a esposa de cada homem e cada homem é considerado o marido de cada mulher” (SMITH, 1999, p. 58).
Aponta esta mesma autora que a principal qualidade da polifidelidade seria o senso de comunidade entre as pessoas da família composta e a facilidade da distribuição de tarefas e responsabilidades. Como principais defeitos, traz a necessidade de um nível muito elevado de compatibilidade e o potencial autodestrutivo decorrente da falta de privacidade e autonomia.
A segunda forma de modelo primário múltiplo que comenta a autora é o aberto, em que há a liberdade plena de se formar relacionamentos primários que podem ou não envolver a coabitação e o compartilhamento de relações sexuais, o que traz infindáveis possibilidades de relacionamento. Sobre seus prós e contras, chega a dizer que:
Há muito mais fluidez nessa abordagem, uma vez que os relacionamentos podem evoluir ao longo do tempo com muito poucas regras para direcionar ou restringir sua direção ou nível de comprometimento. No entanto, também é muito menos previsível e pode causar ansiedade para pessoas que gostam de mais estrutura e preferem uma hierarquia clara. (LABRIOLA, 1999, p. 223, em tradução livre)
Trata-se, assim, de um modelo mais adequado às pessoas que preferem manter seus relacionamentos de forma fluida, com a possibilidade de composição de novos núcleos familiares sem qualquer tipo de limitação. Difere-se do modelo primário-secundário por haver uma paralelização afetiva livre, ao passo em que no primeiro um dos relacionamentos é hierarquicamente superior aos demais e é o único que envolve a coabitação perene.
O terceiro modelo de relacionamento identificado por Labriola (1999) é o múltiplo não primário. Neste, nenhuma das relações de uma pessoa envolve qualquer tipo de compromisso. Para que esse modelo seja bem-sucedido, entende a autora ser crucial a escolha cuidadosa de parceiros que estarão satisfeitos com um relacionamento menos comprometido e que se mantenham ocupadas o suficiente para não querer um relacionamento primário ou que já tenham um e queiram um secundário (modelo primário/secundário).
Apesar de o estudo de Labriola (1999) apenas se limitar a detalhar os relacionamentos de forma horizontal, com breves menções a filhos e à coabitação efetiva, é possível partir dos seus modelos para empreender uma análise mais profunda não apenas dos laços afetivos, mas da formação dos laços familiares de per si, com base na existência ou não da efetiva comunhão de vidas e interesses.
A FORMAÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR A PARTIR DOS RELACIONAMENTOS POLIAFETIVOS
Para que se possa avaliar quais dos modelos de relacionamento poliafetivos descritos no estudo de Labriola (1999) podem ou não formar elos familiares juridicamente reconhecíveis, é necessário estabelecer especificamente o que é a família.
Para Maria Berenice Dias, “a família é um agrupamento informal, de formação espontânea no meio social, cuja estruturação se dá através do direito” (DIAS, 2016, p. 33). Para a autora, a velocidade com a qual a realidade se modifica faz com que a família juridicamente regulada nunca consiga corresponder à natural. É como acertadamente coloca:
Como a lei vem sempre depois do fato e procura congelar a realidade, tem um viés conservador. Mas a realidade se modifica, o que necessariamente acaba se refletindo na lei. Por isso a família juridicamente regulada nunca consegue corresponder à família natural, que preexiste ao Estado e está acima do direito. A família é uma construção cultural. (DIAS, 2016, p. 33)
A revolução industrial, como também destaca a autora, ao elevar a necessidade de mão de obra e forçar a integração da mulher ao mercado de trabalho, alterou significativamente a estrutura da família. Assim surgiu, como consequência, o paradigma da afetividade como principal elemento da formação familiar:
A família migrou do campo para as cidades e passou a conviver em espaços menores. Isso levou à aproximação dos seus membros, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que envolve seus integrantes. Surge a concepção da família formada por laços afetivos de carinho, de amor. A valorização do afeto nas relações familiares deixou de se limitar apenas ao momento de celebração do matrimônio, devendo perdurar por toda a relação. (DIAS, 2016, p. 34)
Contudo, por mais que seja de fundamental importância o estabelecimento da afetividade como elemento principal de constituição dos elos familiares, ao invés da mera necessidade de procriação, não é tal princípio suficiente para delimitar quais relacionamentos poliafetivos poderão ou não ser caracterizados como formadores de uma unidade familiar. Para tanto, devemos retornar à concepção antropológica de núcleo familiar adotada por Murdock, para o qual a família é “o grupo social caracterizado por residência comum, cooperação econômica e reprodução” (MURDOCK, 1949, p.1, em tradução livre).
Entretanto, o conceito apresentado deve ser adaptado aos paradigmas contemporâneos. Conforme já exposto por Maria Berenice Dias (2016), o objetivo de procriar não norteia mais o conceito de família, e sim o afeto entre seus membros. Destarte, é possível concluir que a família contemporânea, ao menos no aspecto horizontal, é constituída como o grupo social que possui residência comum, cooperação econômica e vínculo afetivo.
Não se trata, contudo, de um conceito absoluto, em que os referidos aspectos possam ser considerados pressupostos de formação dos elos familiares. É possível, por exemplo, que haja a interrupção de um ou mais destes os aspectos sem que se desconstitua a união familiar, principalmente em caso de consanguinidade, que elimina totalmente a dita possibilidade. Entretanto, na hipótese de existência concomitante dos três aspectos referidos, é indiscutível a existência daquilo que se entende por família.
Dito isso, Murdock (1949) destaca que a família pode ser reduzida a uma unidade nuclear básica, formada por homem, mulher e prole. Não obstante, a substituição do procriacionismo pela afetividade trouxe a exclusão da prole como pressuposto de formação do núcleo familiar. Assim elucida Maria Berenice Dias:
É necessário ter uma visão pluralista da família, que abrigue os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. [...] A família é um grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas. (DIAS, 2016, p. 37)
Assim, o núcleo familiar ordinário surge com fundamento no afeto, se constitui pela comunhão de vidas. Os filhos não são mais o objetivo da sua formação, mas o compõem na medida em que passem a compor a família, seja pelo nascimento, seja pela adoção.
Além disso, também com fundamento na primazia do afeto sobre a necessidade de procriação, não se encontra qualquer óbice ao reconhecimento das famílias homoafetivas. Trata-se de posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4277/DF:
Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (BRASIL, STF, 2011, p. 4/5)
Desta maneira, é plenamente possível a formação de um núcleo por quaisquer duas pessoas que preencham aos requisitos constitutivos da família, independentemente de gênero. Assim, deve-se adaptar o conceito de Murdock (1949) para que se torne mais apropriado à ordem contemporânea: a família pode ser reduzida a uma unidade nuclear básica, formada por duas pessoas em comunhão de vida e seus filhos eventuais. Definida esta unidade nuclear básica, é necessário destacar que, na maior parte das comunidades estudadas por este autor, existe a possibilidade de que um núcleo familiar se combine a outros de diversas maneiras. Nesse sentido, destaca:
Entre a maior parte dos povos da terra, contudo, as famílias nucleares são combinadas, como átomos em uma molécula, em conjuntos maiores. Estas formas compostas de família podem ser de dois tipos, que se diferem no princípio pelo qual há os núcleos familiares se associam: Uma família polígama consiste em duas ou mais famílias nucleares associadas por maio de mais de um casamento, ou seja, tendo em comum um dos pais. Sob a poliginia, por exemplo, um homem desempenha o papel de marido e pai em várias famílias nucleares e, assim, os une a um grupo familiar maior. Uma família estendida consiste em duas ou mais famílias nucleares afiliadas através de uma extensão da relação parental e não da relação marido-esposa, ou seja, junta-se a família nuclear de um adulto casado à de seus pais. A família estendida patrilocal, muitas vezes chamada de família patriarcal, constitui um excelente exemplo. Abrange, tipicamente, um homem mais velho, sua esposa ou esposas, seus filhos solteiros, seus filhos casados e as esposas e filhos deste último. Três gerações, incluindo as famílias nucleares de pai e filho, vivem sob um único teto ou em um conjunto de moradias adjacentes. (MURDOCK, 1946, p. 01/02, em tradução livre)
Com base no que afirma o autor, verifica-se que o conceito de polinuclearidade familiar não exige necessariamente que estes sejam considerados separadamente, como ocorre no caso das famílias simultâneas, mas também admite a sua ocorrência em um mesmo ambiente de convívio. O próprio autor destaca que a multiplicidade de núcleos familiares, seja esta vertical (por extensão) ou horizontal (poliamor), é apta à constituição de um único conjunto familiar maior.
Para estabelecer quais relacionamentos poliafetivos podem, contudo, compor entidades familiares uni ou polinucleares, é necessário retomar o trabalho descritivo de Labriola (1999), segundo o qual a poliafetividade pode se configurar das seguintes formas: modelo primário/secundário, em que há um relacionamento primário e podem ser formados relacionamentos secundários; modelo primário múltiplo, em que há um conjunto predefinido de relacionamentos primários, formados por mais de duas pessoas, e podem ou não se admitir relacionamentos secundários; e o modelo múltiplo não primário, em que não há qualquer compromisso ou prioridade entre os adotantes.
Destaca-se, neste sentido, que os relacionamentos considerados primários possuem primazia em relação aos demais, e, como afirma a autora, é nestes em que há um pacto de compromisso e confiança duradouros. Nestes ocorrem as principais decisões, inclusive as regras em relação ao que é ou não permitido.
Já os considerados secundários, afirma a autora, podem até ter caráter habitual, mas não há nestes um pacto de compromisso e confiança. Ao contrário, se uma das pessoas em um relacionamento secundário também estiver em um primário, este terá maior importância, inclusive podendo vetar certos tipos de relação secundária. Um exemplo é o veto a relações secundárias habituais, que Labriola (1999) afirma serem comuns nos modelos primário/secundário e primário múltiplo aberto.
Pode-se compreender, portanto, que os relacionamentos primários, definidos por Labriola (1999) como aqueles em que se estabelece uma relação de afeto e confiança duradouros, se associados à efetiva comunhão de vida e de interesses, são aptos à formação de núcleos familiares, enquanto os relacionamentos secundários e os não habituais não comportam o affectio maritalis.
Ante o exposto, no modelo primário/secundário, apesar de existir uma situação de poliafetividade, não há a configuração de uma polinuclearidade familiar, ou seja, não se trata de uma família poliafetiva. Já no modelo secundário múltiplo, sequer é possível vislumbrar a formação de uma unidade familiar, visto que nenhum dos relacionamentos se desenvolve, enquanto tal, como apto a ensejar uma comunhão de vida.
Ao presente estudo interessa, portanto, o modelo primário múltiplo, em que mais de duas pessoas constituem relacionamentos entre si de forma que os diversos relacionamentos tidos entre os envolvidos se unam em um único núcleo familiar, o qual se pode denominar como família poliafetiva. Assim, é possível estabelecer o referido modelo como foco das discussões jurídicas, de forma que, a não ser que seja expressamente indicado em sentido diverso, o termo “família poliafetiva”, usado nas etapas seguintes do trabalho, se refere ao modelo primário múltiplo de Labriola (1999), que traz consigo a possibilidade de efetiva comunhão de vidas entre mais de duas pessoas em um único núcleo familiar.