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A poliafetividade no direito de família.

A possibilidade de reconhecimento jurídico das entidades familiares poliafetivas no direito brasileiro

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19/03/2019 às 15:15
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A EVOLUÇÃO PARADIGMÁTICA DO DIREITO DAS FAMÍLIAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO CONCEITO JURÍDICO DE FAMÍLIA NO BRASIL

A organização do sistema jurídico brasileiro tem origem no processo de colonização, iniciado no século XVI pelos portugueses. Assim, não houve, como em boa parte dos países europeus, o natural desenvolvimento do raciocínio jurídico de forma gradativa e com base em conflitos do dia-a-dia, mas sim o desenvolvimento de um direito paralelo ao lusitano através da transposição integral do seu establishment jurídico.

Nesse sentido, Wolkmer (2003) destaca que as regulamentações acerca da relação de subserviência entre colônia e metrópole eram regidas pelo mercantilismo e pelas suas consequentes relações de monopólio. Nesse contexto, tinha-se como principal objetivo o de evitar que houvesse qualquer relação de comércio entre o Brasil e outras nações europeias e, assim, assegurar a lucratividade dos comerciantes portugueses e, por tabela, da Coroa que lhes taxava. Assim, em razão da adoção integral dos valores sociais e culturais do povo colonizador, não havia “como se registrar, com muita nitidez, uma concepção de idéias justificadoras do mundo autenticamente brasileira” (WOLKMER, 2003, p. 40).

Wolkmer (2003) elucida também que, no primeiro momento da colonização brasileira, especificamente entre 1520 e 1549, época das Capitanias Hereditárias, as disposições legais aplicadas em solo brasileiro eram compostas, basicamente, pela Legislação Eclesiástica, pelas Cartas de Doação e pelos Forais.

Contudo, após o fracasso da grande maioria das capitanias, foi adotado no Brasil o sistema de governadores-gerais, quando enfim se concretizou a utilização mais ampla das demais fontes do direito português, dentre as quais se destacam as Ordenações Reais, principais fontes do direito civil no Brasil do século XVI ao início do século XX, quando houve a promulgação do Código Civil de 1916.

Sobre as Ordenações, André (2007) expõe a dificuldade da tarefa de estabelecer, apenas com base nessa norma, um conceito jurídico de família, em razão, principalmente, da ausência de sistematização. A exemplo disso, verifica-se que o Livro IV das Ordenações Filipinas, que tratava das relações privadas, se limitava, principalmente, a regulamentar as obrigações entre os cônjuges, como a Doação de bens móveis feita pelo marido sem outorga da sua esposa. Contudo, em todos os outros cinco livros do Código Filipino se encontravam, de maneira esparsa e aleatória, disposições diversas acerca da organização familiar no Brasil colonial.

Ainda assim, ante a onipresença da influência canônica nas Ordenações, que determinavam ser o catolicismo a única religião aceita pelo Estado confessional português e, posteriormente, pelo brasileiro, é possível destacar com firmeza o caráter patriarcalista da referida norma, para a qual o pai seria o chefe da família.

Não obstante a falta de sistematização, a conceituação da família no período que precede o Código Civil de 1916 é possível mediante o estudo da doutrina civilista portuguesa do século XIX, ante a aplicação simultânea das ordenações em Portugal e no Brasil. Nesse sentido, o jurista português Manuel Antonio Coelho da Rocha, em obra de 1857, trazia o seguinte conceito de família:

Diz-se familia, ou sociedade familiar, a reunião de muitas pessoas, que habitam conjunctamente, e em economia commum. Ordinariamente compõe-se da reunião dos cônjuges, dos paes e filhos, e dos criados. ’Nesta relação os homens ou são 1.° casados, ou solteiros, ou viuvos: 2.° paes, ou filhos; 3.° amos, ou domesticos. Os filhos ou são legitimos, ou illegitimos, conforme são provindos de matrimonio, ou de ajunctamento ilicito. Os illegitimos, vulgo bastardos, ou são naturaes, ou espurios. Naturaes dizem-se os provindos de ajunctamento illicito, mas de pessoas, entre as quaes não havia impedimento para casar, quer ao tempo da concepção, quer ao do nascimento do filho. Feb. Dec. 68, n. 9 e seg. Espurios ou de coito damnado, chamam-se os filhos de pessoas impedidas para casar; e taes são os aduherinos, sacrílegos, e incestuosos. Ord. L. 2, tit. 55, §. ult. Os filhos de estupro, ainda que tal crime seja punivel para o pae, com tudo para os effejtos juridicos são contados entre os naturaes, não tendo outro defeito; bem como os vulgo quesitos, a respeito das mães. Chama-se posthumo o filho, que nasceu depois da morte do pae. (COELHO DA ROCHA, 1857, p. 38/39)

Verifica-se, portanto, que o direito civil luso-brasileiro assumia, no século XIX, como elementos da formação familiar a coabitação e a economia comum. No entanto, é visível que, mais importante do que esses elementos, a formação do núcleo familiar destacado pelo autor imprescindia da constituição de um vínculo matrimonial nos moldes da Igreja Católica. Tamanha é a importância do instituto no contexto que havia uma estratificação das relações de descendência em que apenas eram plenos sujeitos de direito os filhos ditos “legítimos”, ou seja, aqueles concebidos na constância do casamento.

Em que pese a larga aplicação das Ordenações no Brasil imperial, Wolkmer (2003) narra que o século XIX foi permeado por tentativas de se realizar uma codificação do direito civil estritamente brasileira, sem sucesso. A norma filipina apenas foi revogada no ano de 1916, com a promulgação da Lei nº 3.071/1916, que instituiu o primeiro Código Civil Brasileiro, arquitetado por Clóvis Beviláqua ainda no século XIX e discutido por quase duas décadas até que finalmente entrasse em vigor.

Além das Ordenações portuguesas, o Código Civil de 1916 também revogou, por meio do seu artigo 1.807, todos os Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes às matérias de direito civil sobre as quais tratava o Código. Com isso, finalmente se estabeleceu uma centralização razoável da matéria em um código bem organizado e com um padrão de sistematização.

No entanto, o resultado final, apesar dos consideráveis avanços quanto ao rigor metodológico e à sistematização técnico-formal da matéria, principalmente se comparado às multicentenárias e obsoletas Ordenações, em seus aspectos materiais, o Código Civil de 1916 “era avesso às grandes inovações sociais que já se infiltravam na legislação dos países mais avançados do Ocidente e, refletindo a mentalidade patriarcal, individualista e machista de uma sociedade agrária preconceituosa” (WOLKMER, 2003, p. 74).

O afirmado se aplica de forma ainda mais determinante às concepções e normas atinentes ao direito das famílias. Rodrigues (1993) afirma que, quando da promulgação do Código de 1916, a família patriarcal se mantinha como padrão social e, como reflexo disso, o referido diploma normativo trouxe, dentre outras disposições, a indissolubilidade do casamento, a capacidade relativa da mulher e a atribuição ao marido da posição de único chefe da sociedade conjugal, ao passo em que à esposa cabia apenas a função de colaboradora.

Tudo isso se verifica em um contexto em que o casamento ainda se afigurava como núcleo da formação familiar. Tanto é que 149 dos 304 artigos do C.C. de 1916 sobre direito de família eram reservados a dispor sobre o instituto matrimonial. É como elucida Silvio Rodrigues:

7. O livro de Direito de Família do C.C. dedica 149 de seus 304 artigos ao casamento, ou seja, quase a metade dos seus dispositivos são consagrados ao matrimônio, desde as formalidades preliminares à sua celebração até as regras sobre a sua dissolução.

8. De um certo modo poder-se-ia dizer que o casamento era o elemento estrutural no Direito de Família no Brasil, na forma por que o disciplinou o Código de 1916. Aliás, esse pensamento perdurou de maneira nítida entre nós, pois, a partir da Constituição de 1934 (a primeira que além de cuidar dos problemas políticos, se ocupa, também, dos sociais) se encontra sempre o preceito constitucional dizendo que a família, constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel, está sobre a proteção especial do Estado (Constituição de 1934, art. 144, Constituição de 1946, art. 163, Constituição de 1969, Emenda Constitucional n. 1, art. 175.

9. A família de que cuida o legislador de 1916 é a tradicional, inspirada no privilégio da varonia, pois o art. 233 do C.C. declara que o homem é o chefe da sociedade conjugai, limita bastante os direitos da mulher casada, que inclusive é vista como relativamente incapaz quanto a certos atos e a maneira de os exercer (art. 6º). (RODRIGUES, 1993, p. 241)

Assim, embora a primeira Codificação Civil, que não pode ser desconsiderada enquanto uma das primeiras grandes realizações político-jurídicas da República, trouxesse, em seus avanços relativos, certos ideais liberais, principalmente no que tange às questões patrimoniais, mantinha-se igualmente comprometida com a manutenção do poder oligárquico familiar instituído sob a vigência das Ordenações.

Quanto às relações de parentesco, em especial a filiação, o Código de 1916 não trouxe grandes inovações:  apesar da supressão da filiação sacrílega, manteve-se a distinção entre os filhos legítimos e ilegítimos, que, conforme Barreto (2013), era sempre registrada quando do nascimento, bem como se distinguiam os naturais e adotivos. No entanto, embora a filiação natural fosse tratada com menos rigor que na norma filipina, o Código permanecia implacável em relação à chamada filiação espúria, advinda de relacionamentos extraconjugais ou incestuosos, sobre a qual trata Rodrigues:

Em matéria de filiação, embora o C.C. trate com menos rigor o filho natural, o faz com grande perversidade e m relação ao espúrio, ao proclamar e m seu art. 358 que os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos. Ora, como é sabido, o reconhecimento espontâneo ou forçado é que estabelece o parentesco entre o filho ilegítimo e seus pretensos progenitores. Se a lei proíbe o reconhecimento, esse parentesco não se constitui; desse modo e segundo a legislação de 1916, o filho adulterino, por não poder ser reconhecido, não herda de seu progenitor adúltero, não tem direito a alimentos, não está sob o pátrio poder, não tem direito a usar o apelido do pai, enfim, é um estranho e m relação ao homem que o engendrou. (RODRIGUES, 1993, p. 242)

Verifica-se, dessa forma, a posição absolutamente patrimonialista que o direito brasileiro tinha sobre a família, visto que as relações de fato externas ao vínculo matrimonial eram tratadas ou de forma inferior, como no caso da filiação ilegítima simples, ou de forma a negar a sua existência no plano cível, como ocorria com a filiação espúria, ou mesmo de forma a gerar sanções penais, como o eram as relações adulterinas em si.

Com a paulatina evolução dos costumes brasileiros na primeira metade do século XX, o rigor legislativo do velho código passou a guardar cada vez menos identidade com o que era socialmente aceito.  

Segundo Rodrigues (1993), a primeira matéria a sofrer significativa alteração foi a que tratava da posição dos filhos adulterinos, que, por conta da indissolubilidade do vínculo matrimonial, eram tratados pela legislação como espúrios mesmo após o desquite ou a morte do cônjuge e, portanto, insuscetíveis de reconhecimento.  Com a promulgação do Decreto-Lei n. 4.737/42, tais filhos poderiam, depois do desquite, ser reconhecidos ou demandar que se declarasse a sua filiação, o que foi posteriormente aperfeiçoado pela Lei n. 883/49, que marcou, em seu artigo 7º, a proibição de qualquer menção à filiação ilegítima no registro civil.

A próxima evolução significativa a se registrar no Brasil quanto ao conceito jurídico de família se deu com a promulgação da Lei n. 4.121, de 17 de agosto de 1962, o Estatuto da Mulher Casada. Segundo Rodrigues (1993), essa lei procurou, dentro do que era possível à época, trazer uma relativa igualdade de direitos entre a mulher e o homem casados. Dessa forma, foram reduzidas muitas das restrições originais estabelecidas às mulheres pelo CC/1916, a exemplo da supressão da sua incapacidade civil quando casada e da concessão de titularidade do pátrio poder junto ao marido, do qual até então a mulher desfrutava apenas supletivamente.

Assim, apesar de mantido o casamento como elemento definidor de formação do núcleo familiar, o Estatuto da Mulher Casada trouxe consigo significativa supressão do ideal patriarcalista de casamento em que originalmente se fundava o velho código civil, com a elevação da mulher a uma situação muito mais humana e confortável dentro do âmbito familiar, apesar de ainda distante do ideal contemporâneo.

O último marco pré-constitucional do conceito de família ocorreu em 1977, com a alteração da Constituição vigente para que fosse permitido o divórcio no Brasil e a sua regulamentação por meio da Lei nº 6.515, editada no mesmo ano. É como afirma Luciano Barreto:

No ano de 1977, sob a égide da CFRB de 1967, foram editadas a EC nº 09 e a Lei nº 6.515, sendo que a 1ª possibilitou o divórcio no Brasil, após ter sido obtida a separação judicial e a 2ª disciplinava a matéria viabilizando a ação direta de divórcio, desde que, completados cinco anos de separação de fato com início anterior a 28 de junho de 1977, (artigo 40). E mais. A mencionada lei foi de grande relevância, vez que concedeu o direito à mulher de optar ou não pelo uso do nome de família de seu cônjuge. Outra modificação foi o Regime Parcial de Bens ser considerado regime legal e a possibilidade dos vínculos familiares se encerrarem com o divórcio. (BARRETO, 2013, p. 210-211)

Com a possibilitação da efetiva dissolução do vínculo matrimonial estabelecida pela Lei do Divórcio, o casamento tornou-se uma instituição que, apesar de ainda necessária à constituição da entidade familiar, não possuía a rigidez de outrora. Concretizava-se, assim, no direito de família brasileiro, um dos marcos iniciais da contemporaneidade teorizada por Bauman (2003), visto que, com a referida lei, iniciou-se o processo de “liquidificação” do matrimônio, que era a instituição definidora dos laços familiares. Mais que isso, estabeleceram-se as bases para a ressignificação do conceito de família a partir da promulgação da Magna Carta de 1988.

NOVOS PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS PARA O DIREITO DAS FAMÍLIAS

Não obstante a elevada importância das normas citadas anteriormente para o desenvolvimento do conceito jurídico de família no Brasil, a Constituição Federal de 1988 desempenhou uma verdadeira revolução no modo de se enxergar o direito brasileiro, com alterações importantíssimas aplicáveis ao direito das famílias.

A gama de novos conceitos e a adequação do texto constitucional aos paradigmas contemporâneos à sua aprovação fizeram necessária a ressignificação de grande parte das normas anteriores à sua vigência, principalmente as mais retrógradas, como era o caso do Código Civil. No que tange ao conceito jurídico de família, por exemplo, a Constituição seguiu um caminho totalmente distinto da codificação, o que levou à revogação tácita de uma parcela considerável das suas disposições. Assim ensina Paulo Lôbo:

O modelo igualitário da família constitucionalizada contemporânea se contrapõe ao modelo autoritário do Código Civil anterior. O consenso, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas que a integram são os fundamentos dessa imensa mudança paradigmática que inspiraram o marco regulatório estampado nos arts. 226 a 230 da Constituição de 1988.

As constituições modernas, quando trataram da família, partiram sempre do modelo preferencial da entidade matrimonial. Não é comum a tutela explícita das demais entidades familiares. Sem embargo, a legislação infraconstitucional de vários países ocidentais tem avançado, desde as duas últimas décadas do século XX, no sentido de atribuir efeitos jurídicos próprios de direito de família às demais entidades familiares. A Constituição brasileira inovou, reconhecendo não apenas a entidade matrimonial mas também outras duas explicitamente (união estável e entidade monoparental), além de permitir a interpretação extensiva, de modo a incluir as demais entidades implícitas. (LÔBO, 2010, p. 33)

Vê-se, do que afirma o Autor, que a Magna Carta trouxe a mais importante alteração no que se refere à concepção de família no direito brasileiro: passou-se a admitir, expressamente, a existência das entidades familiares monoparentais e, sobretudo, das constituídas por meio de simples união estável, o que retirou do casamento o monopólio quanto à constituição do núcleo familiar, cujos principais elementos seriam a existência de afeto e convivência.

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Além da adequação material para com os avanços sociais tidos até então, a constituição seguiu um modelo analítico e trouxe consigo uma gama de princípios e direitos fundamentais que devem ser sempre levados em consideração quando realizada a interpretação de normas jurídicas inferiores. Daí surgiu o chamado processo de constitucionalização do Direito Civil, que pode ser classificado, segundo Paulo Lôbo, como “o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional” (Id., 1999, p.100).

Quanto aos efeitos dessa constitucionalização no direito das famílias, o Autor traz como princípios mais importantes o da liberdade, o da igualdade e, principalmente, o da dignidade da pessoa humana, que pode ser concebido como estruturante e conformador dos demais nas relações familiares.

O princípio da liberdade, se aplica ao direito das famílias de forma que as pessoas não são mais obrigadas a se submeter a um modelo de família predisposto pelo Estado. Mesmo o matrimônio, embora se trate de uma instituição tradicional, se conformou a este princípio, dada a possibilidade da sua dissolução ou da alteração do regime de bens em sua vigência. Todos são livres, portanto, para escolher com quem e sob que forma estabelecerão uma família. É como destaca Maria Berenice Dias:

Em face do princípio da liberdade, é assegurado o direito de constituir uma relação conjugal, uma união estável hétero ou homossexual ou ainda poliafetiva. Há a liberdade de dissolver o casamento e extinguir a união estável, bem como o direito de recompor novas estruturas de convívio. A possibilidade de alteração do regime de bens na vigência do casamento (CC 1.639 § 2.º) assinala que a liberdade, cada vez mais, vem marcando as relações familiares. (DIAS, 2016, p. 49)

Como se pode ver, a análise da aplicação do princípio da liberdade no direito das famílias é de suma importância para o objeto do presente trabalho, na medida em que pode servir de fundamento constitucional ao reconhecimento das famílias poliafetivas. A própria Autora reconhece essa possibilidade ao tratar da constituição de uma união poliafetiva como direito assegurado pelo referido princípio.

Já o princípio da igualdade se traduz, no direito das famílias, pela quebra do patriarcalismo instituído pelo Código Civil de 1916 e o banimento da desigualdade de gêneros. Trouxe a Constituição de 1988, nesses termos, em seu artigo 5º, caput e inciso I, a absoluta identidade de direitos e deveres entre homens e mulheres, com a gênese jurídica do que já se impunha no plano social, principalmente com os avanços no tratamento dos direitos humanos.

Além do importantíssimo marco na questão de gênero, a isonomia constitucional é levada também à relação de filiação, com a proibição de qualquer designação discriminatória baseada na relação tida entre os pais ou mesmo na consanguinidade (art. 227, § 6º, da Constituição).

Ademais, o referido princípio também serve como medida de interpretação em nome da qual o intérprete do direito não pode aplicá-lo de forma a gerar desigualdades, ainda que tal aplicação se faça com base no texto da lei. É com base nessa máxima que se reconheceu o direito à união civil homoafetiva, como explica Dias:

Preconceitos e posturas discriminatórias, que tornam silenciosos os legisladores, não podem levar o juiz a se calar. Imperioso que, em nome da isonomia, atribua direitos a todas as situações merecedoras de tutela. O grande exemplo são as uniões homoafetivas. Ignoradas pela lei, foram reconhecidas pelos tribunais. (DIAS, 2016, p. 51)

Assim, a aplicação da isonomia constitucional se revela como de extrema relevância para o desenvolvimento do conceito jurídico de família no Brasil pós-Constituição. Trata-se do baluarte no constante embate pela igualdade de direitos, ainda que contra legem. Dessa forma, não se pode relevar, também, a sua importância para a análise da possibilidade jurídica do reconhecimento de famílias poliafetivas.

A dignidade da pessoa humana, conforme Dias (2016), é o que se chama por “macroprincípio” do Estado de Direito brasileiro, do qual todos os outros princípios se originam. Trata-se, segundo Tartuce (2014), de uma cláusula geral e, portanto, difícil de ser conceituada, mas que deve ser analisada de forma a considerar o contexto social em que o tutelado está inserido para, assim, delimitá-la.

No capítulo da Constituição destinado à família, o princípio da dignidade da pessoa humana fundamenta as normas que trouxeram a emancipação de seus membros (arts. 226, § 7º; 227, caput, e 230). Conforme destaca Lôbo (2010), a família, tutelada pela Constituição, serve principalmente ao desenvolvimento da dignidade das pessoas a integram, como instrumento de realização existencial de seus membros.

A importância do princípio da dignidade da pessoa humana para o direito das famílias se encontra, também, no fato de ser a raiz na qual se sustenta o princípio da afetividade, que é definido como “o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico” (LÔBO, 2010, p. 70).

A quantidade de avanços paradigmáticos trazidos pela Constituição evidenciou a necessidade de se operar uma reformulação absoluta da norma civil, que não representava a realidade contemporânea e os avanços sociais perpetrados, pelo que a maior parte das suas disposições originais acerca do direito das famílias ou havia sido alterada ou não se adequava ao padrão constitucional, como apontado por Lisia Rodrigues:

A velha fórmula adotada pelo Código Civil de 1916 não mais atendia aos reclamos da sociedade.

Da concepção individualista das relações contratuais e de propriedade, necessitava-se da finalidade social e ética na administração do patrimônio e na celebração do contrato; exigia-se, pois, uma lei civil que atentasse mais para a realidade do que para categorias ideais e abstratas, que tudo abarcavam. (RODRIGUES, 2013, p. 180)

Assim, surgiu a necessidade de elaboração de um novo código civil, que atendesse às disposições constitucionais e à finalidade social do próprio direito privado. Nesse contexto, após acirrados embates doutrinários, foi promulgado o Código Civil de 2002, que por um lado trouxe à lei significativos avanços doutrinários e, pelo outro, manteve diversos institutos obsoletos presente na codificação anterior.

AVANÇOS E RETROCESSOS PERPETRADOS PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002 QUANTO AO DIREITO DAS FAMÍLIAS

O Código Civil de 2002, promulgado após acirrados embates doutrinários, que segue o modelo constitucional de carta de princípios. Assim, deixa-se de lado, ao menos em parte, o rigor positivista do Código de 1916, com a adoção do modelo de cláusulas gerais. Nesse sentido, elucida Márcia Pumar:

Enquanto o Código Civil de 1916 privilegiava a autonomia individual e o conservadorismo no que tange às questões sociais e às relações de família, tendo como seus três pilares fundamentais o contrato, a família e a propriedade, o Código Civil de 2002, nascido sob grandes resistências doutrinárias, tem como fonte de inspiração três grandes paradigmas, a saber: o princípio da efetividade ou operabilidade; o da função social da propriedade e o da boa-fé objetiva, este último, talvez a maior contribuição para o direito. (PUMAR, 2013, p. 264)

A resistência doutrinária à qual se refere a Autora tem, por fundamento, o grau de incerteza que a aplicabilidade dessas cláusulas gerais pode trazer às relações jurídicas. Contudo, os referidos princípios têm por objetivo justamente “ampliar a possibilidade hermenêutica em cada caso concreto, de modo a garantir a efetividade da norma” (FACHIN, 2014, p. 8). Destarte, embora não seja livre de críticas, o modelo adotado pelo Código Civil de 2002 trouxe inegável avanço epistemológico.

Em vista ao novo background paradigmático constitucional em que o Código de 2002 ao mesmo tempo se espelha e, por seu conteúdo, promove, avanços diversos podem ser apontados na forma de enxergar o direito das famílias. Nesse campo, as principais inovações foram, segundo Fachin (2014), a promoção da igualdade no direito à filiação, ainda que apenas para repetir o que fora constitucionalizado, a possibilidade de se proceder ao divórcio sem a prévia realização da partilha dos bens, e a limitação à impossibilidade de que se imponha gravame à legítima, que tem base na evolução do conceito de família embora seja, estritamente, uma disposição de direito sucessório.

Segundo destaca esse mesmo autor, a igualdade do direito de filiação traduz um dos mais importantes avanços do CC/2002 sobre o tratamento das famílias. Por meio do seu art. 1.596, o código vedou qualquer forma de discriminação em relação a filhos, independentemente de terem nascido dentro ou fora do casamento, ou ainda de serem biológicos ou adotivos.

Embora não traga, efetivamente, uma inovação jurídica, visto que a igualdade de filiação já estava prevista na Constituição, não se pode, ainda assim, descartar a sua importância. Nesse sentido, embora a referida norma não necessitasse da reprodução infraconstitucional, a “sua reprodução no artigo introdutório do capítulo do Código Civil destinado à filiação contribui para reforçar sua natureza de fundamento, assentado no princípio constitucional da igualdade” (LÔBO, 2010, p. 217).

Em se tratando do direito das famílias, o segundo ponto em que avançou o novo Código Civil foi, segundo Fachin (2014), a possibilidade de se proceder ao divórcio sem a partilha prévia dos bens, o que antes não existia na lei. Conforme traz o autor, o código positivou a jurisprudência pacífica acerca do tema para tornar possível a dissolução antecipada do vínculo matrimonial, visto que o procedimento de partilha pode ser extremamente demorado e não era razoável esperar o seu fim para, por exemplo, permitir que os divorciandos contraíssem eventuais novas núpcias.

Quando se possibilitou, por meio da Lei do Divórcio, que o vínculo matrimonial pudesse ser dissolvido, a partilha dos bens era necessária para que fosse, em seguida, decretado o divórcio. A referida norma foi, conforme aponta Madaleno (2008), gradualmente relativizada pela jurisprudência, ao passo em que, na época da elaboração do código, a regra antiga já havia sido superada. Nesse sentido, houve a superação final desse dissídio a partir do artigo 1.581 do Código Civil, que estabeleceu ser possível o divórcio sem que houvesse a prévia partilha dos bens.

O último grande avanço citado por Fachin (2014) foi a limitação da possibilidade de imposição de gravame à legítima. É como destaca:

O Código Civil brasileiro de 1916 consagrava em seu artigo 1.723 a possibilidade de gravar a legítima dos herdeiros com as cláusulas de impenhorabilidade, inalienabilidade e incomunicabilidade, em homenagem ao pátrio poder, que no antigo estatuto tinha inconteste relevância. Não havia limites nem condições: bastava o pai assim o querer e fazer.

A mudança, que migrou da ideia de pátrio poder para o afeto e a solidariedade familiar, determinou a restrição dessa possibilidade, segundo o artigo 1.848 do Código Civil, ressalvando que tais gravames só poderão ser impostos à legítima mediante “justa causa”, declarada no testamento. O novo Código, por conseguinte, “diminui a violação da legítima”. (FACHIN, 2014, p. 27-28)

Quanto a este ponto, embora se destaque claramente como pertinente ao direito sucessório, o seu fundamento se encontra na supressão do pátrio poder e na consagração do princípio da solidariedade familiar, o que permite trazê-lo como evolução jurídica aplicável também pertinente ao direito das famílias.

No entanto, essas mudanças perpetradas com a promulgação do novo Código Civil não foram suficientes para destacar todos os avanços doutrinários e jurisprudenciais tidos à época. Em verdade, como aponta Fachin (2014), o projeto que viria a se tornar o Código Civil de 2002 já estava em tramitação na década de 70, de modo que, apesar do esforço hermenêutico para adequá-lo à nova ordem constitucional, o código “nasceu velho” em diversos aspectos.

Dentre os retrocessos aplicáveis ao direito das famílias, o autor revela dois principais pontos: a atribuição da culpa quando da dissolução do matrimônio por meio do instituto da separação e a discriminação entre o casamento e a união estável, tratados de forma equitativa pela   Constituição.

Ao tratar do divórcio, especificamente, o novo código, apesar de positivar os principais avanços constitucionais sobre o tema e eliminar os vestígios da indissolubilidade matrimonial que existiam no Código Civil de 1916, manteve vivo o instituto da separação. Destarte, o legislador de 2002 ignorou boa parte da base principiológica trazida em 1988, com a manutenção da discussão acerca da culpa pela dissolução do casamento. Tal discussão revela “uma análise simplista do relacionamento conjugal, uma vez que transmite para um dos cônjuges toda a responsabilidade do fracasso do relacionamento, sem se levar em conta todos os meandros conjugais que desembocaram na culpa” (FACHIN, 2014, p. 35).

Apenas em 2010, com a promulgação da Emenda à Constituição nº 66, aboliu-se por completo a discussão sobre a culpa na dissolução do vínculo matrimonial. Por meio dessa, aponta Lôbo (2010), foi efetivamente extinto o instituto da separação judicial, inclusive na modalidade de requisito voluntário para conversão ao divórcio, eliminado também, o requisito temporal para o divórcio.

Maria Berenice Dias, ao falar da EC 66/2010, também defende a extinção do instituto da separação e da própria teoria da culpa:

Com o fim da separação, toa a teoria da culpa esvaiu-se, e não é mais possível trazer para o âmbito da justiça qualquer controvérsia sobre a postura dos cônjuges durante o casamento. Não remanesceu sequer no âmbito da anulação do casamento ou para a quantificação dos alimentos.

Claro que há quem sustente – poucos, é verdade – a permanência da separação judicial, principalmente em face das ineficazes referências constantes no Código de Processo Civil. Ora, se é direito da pessoa constituir núcleo familiar, também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe a existência digna. (...)

A EC 66/2010, ao dar nova redação ao § 6º do art. 226 da CF, baniu o instituto da separação do sistema jurídico pátrio. A separação judicial não mais existe, restando apenas o divórcio que, ao mesmo tempo, rompe a sociedade conjugal e extingue o vínculo matrimonial. (DIAS, 2016, p. 209-210).

Do afirmado pela autora, depreende-se a existência de um consenso doutrinário quanto ao fim da separação, salvo raras exceções. Ademais, verifica-se que o direito ao divórcio, além do texto constitucional expresso, encontra amparo também no princípio da dignidade da pessoa humana. Destarte, mesmo com a sua previsão pela nova codificação civil, em evidente retrocesso, a questão se encontra superada por força da nova norma constitucional.

A outra principal involução jurídica trazida no bojo do novo Código Civil, no campo específico do direito das famílias, foi, segundo Fachin (2014), a diferenciação entre os modelos familiares embasados no matrimônio e na união estável. Nesse sentido, o art. 1.790 do Código Civil dispõe que o direito sucessório do companheiro diz respeito apenas aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, em sentido diverso do cônjuge, que não possui tal limitação.

Ademais, pelo disposto no novo código, o companheiro concorre com os ascendentes, descendentes e colaterais do de cujus, ao passo que o cônjuge suprime esta última categoria. É evidente, portanto, a desigualdade de tratamento na qual incorre a referida norma sucessória, bem como é flagrante a sua inconstitucionalidade. Do mesmo modo compreende Paulo Lôbo:

Não há razão constitucional, lógica ou ética para tal discrime, em relação aos direitos sucessórios das pessoas, que tiveram a liberdade de escolha assegurada pela Constituição e não podem sofrer restrições de seus direitos em razão dessa escolha. Não há fundamento constitucional para a desigualdade de direitos entre dois casais, com famílias constituídas e filhos, pelo fato de um ter escolhido o casamento e o outro, a união estável. Essa é uma desigualdade que a Constituição não acolhe, tornando com esta incompatível a norma infraconstitucional que a estabelece. (LÔBO, 2013, p. 150-151)

Trata-se de resquício evidente da sistemática pré-constitucional, como qual o Supremo Tribunal Federal rompeu em junho de 2017, ao julgar o Recurso Extraordinário 646721 em regime de repercussão geral. No fundamento, o Min. Barroso, relator do respectivo acórdão, aponta não ser legítima a desequiparação das modalidades em questão para fins sucessórios:

Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso. (BRASIL, 2017, p. 1-2)

Ao final, não apenas foi provido o recurso, mas também se estabeleceu, em repercussão geral, a tese de que “é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002” (BRASIL, 2017, p. 2).

Ante o exposto, com a equiparação de cônjuges e companheiros quanto à ordem de vocação hereditária e à capacidade sucessória, a ambos se aplica a norma art. 1.829 do CC, segundo a qual concorrem, primeiramente, com os descendentes, a depender do regime de bens do casamento ou união, em segundo lugar com os ascendentes e, de forma mais significativa, sobrepõem-se aos colaterais, que apenas sucedem em sua ausência.

Como se pode verificar, o Código Civil de 2002, marco importantíssimo para o direito das famílias, trouxe consigo, ao mesmo tempo, inovações compatíveis com o arcabouço constitucional inaugurado em 1988 e retrocessos que não guardam tal identidade. No entanto, é evidente a existência de uma gradual sobreposição jurisprudencial em relação às disposições retrógradas do novo Código Civil, que, apesar da lentidão, traz ressignificações ou mesmo supressões do texto da lei de forma a aproximar cada vez mais o direito das famílias adotado na prática da sua base constitucional.

Entretanto, em relação à poliafetividade, em especial ao modelo da polifidelidade, ainda não há um consenso doutrinário ou jurisprudencial. Não contribui com isso o fato de que são raríssimos os casos desse tipo levados aos tribunais, que, nas raras vezes que encontra tal formato, tende a tratá-lo como um conglomerado de uniões estáveis simultâneas e, portanto, inválidas de acordo com o posicionamento atual do STJ.

No entanto, nem o reconhecimento da poliafetividade como modalidade de família no ordenamento brasileiro e nem a sua negação encontram guarida definitiva na atual legislação civil. O código traz apenas conceitos limitados como “bigamia” ou “concubinato”, que, por sua associação ao princípio do dever de fidelidade, não podem ser considerados da mesma forma em conformações familiares mono e poliafetivas.

Nesses termos, é necessário desempenhar uma análise mais aprofundada da aplicabilidade dos atuais institutos de direito civil ao fenômeno poliafetivo, em especial quanto à sua aptidão para a constituição de entidade familiar, com a consequente discussão acerca dos precedentes judiciais mais recentes e da nova tendência de reconhecimento extrajudicial de uniões estáveis poliafetivas.

AS FAMÍLIAS POLIAFETIVAS NO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

A poliafetividade, apesar de ser um fenômeno que, como já explicado, traz consigo características inerentes da contemporaneidade, como a fluidez dos elos de afetividade, não é encontrada com facilidade no tecido social contemporâneo brasileiro. Tanto que não foram encontrados trabalhos estatísticos sérios acerca dos adeptos da modalidade, que, apesar da crescente visibilidade e das discussões recentes acerca da sua viabilidade jurídica, não aparece com frequência na população em geral.

A baixa incidência estatística dos relacionamentos poliafetivos no Brasil torna a sua discussão jurídica muito mais difícil, visto que não é comum ver casos tais levados a Juízo e muito menos são encontrados precedentes que discutam diretamente o assunto. Em verdade, mesmo após a pesquisa desempenhada conforme a metodologia proposta, não foi possível destacar nenhum acórdão que trate da poliafetividade em si, mas apenas das tentativas de reconhecimento de uniões estáveis simultâneas, que, apesar da relativa similaridade de objeto, não se constituem da mesmo forma e não merecem o mesmo tratamento jurídico, conforme demonstrado no primeiro capítulo.

A questão das uniões estáveis simultâneas ainda passa por recorrentes discussões pelos tribunais brasileiros. Ao mesmo tempo, “tanto a doutrina, quanto a jurisprudência, têm se dividido quanto a considerar lícita ou ilícita esta simultaneidade de relacionamentos familiais” (HIRONAKA, 2013, p. 202). Apesar disso, fixa-se, até o momento, como a tendência jurisprudencial majoritária o não reconhecimento da possibilidade de formação de múltiplas uniões estáveis em simultaneidade, conforme o entendimento insculpido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial  nº 1.157.273 RN:

Emprestar aos novos arranjos familiares, de uma forma linear, os efeitos jurídicos inerentes à união estável implicaria julgar contra o que dispõe a lei. Isso porque o art. 1.727 do CC/02 regulou, em sua esfera de abrangência, as relações afetivas não eventuais em que se fazem presentes impedimentos para casar, de forma que só podem constituir concubinato os relacionamentos paralelos a casamento ou união estável pré e coexistente. (BRASIL. STJ, 2010, p. 15)

Ante a decisão tomada pelo STJ, é possível identificar que a principal tese jurídica para a impossibilidade de reconhecimento de múltiplas uniões estáveis simultâneas é o fato de que o Código Civil caracteriza as relações afetivas não eventuais nas quais uma das pessoas possuem impedimento mantidas por pessoas com impedimento para casar constituem concubinato e reconhecê-las como união estável seria julgar contra legem.

Deve-se ressaltar, no entanto, que não é o fito deste trabalho a discussão específica sobre a possibilidade ou não do reconhecimento de uniões estáveis simultâneas entre si ou com um casamento. Embora haja semelhanças desse tipo de situação com algumas modalidades de poliafetividade, em especial a de relacionamento primário/secundário, já foi estabelecido que a poliafetividade pressupõe a concordância expressa de todos os envolvidos, o que não costuma ocorrer nas situações apresentadas.

Ademais, ficou definido o recorte epistemológico deste trabalho como o tratamento jurídico dos relacionamentos poliafetivos da modalidade estabelecido por Labriola como “primária múltipla”, também chamado de polifidelidade, em que há, entre todas as partes envolvidas, a coabitação, a cooperação familiar e o dever de lealdade e respeito inerentes ao reconhecimento da própria união estável no direito brasileiro.

Dessa forma, não se pode abordar da mesma forma a família poliafetiva e as famílias simultâneas, que na maioria das vezes se originam de uma quebra da fidelidade que inexiste na primeira modalidade. Igualmente, as decisões sobre as uniões estáveis simultâneas não podem ser consideradas ao se analisar a formação de uma única entidade familiar poliafetiva por este mesmo motivo, visto que pressupõem a quebra da confiança e a violação ao dever de lealdade. É o que exemplifica a já citada decisão do STJ:

A despeito do reconhecimento – na dicção do acórdão recorrido – da “união estável” entre o falecido e sua ex-mulher, S. M. de L. C., em concomitância com união estável preexistente, por ele mantida com a recorrente, certo é que já havia se operado – entre os ex-cônjuges – a dissolução do casamento válido pelo divórcio, nos termos do art. 1.571, § 1º, do CC/02, rompendo-se, em definitivo, os laços matrimoniais outrora existentes entre ambos. A continuidade da relação, sob a roupagem de união estável, não se enquadra nos moldes da norma civil vigente – art. 1.724 do CC/02 –, porquanto esse relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de lealdade a ser observado entre os companheiros. (...)

Dessa forma, uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra o conceito de lealdade – para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. (BRASIL. STJ, 2010, p. 12-13)

No entanto, é possível, a partir dessa mesma decisão avaliar que o posicionamento ora tomado pelo Superior Tribunal de Justiça e normalmente reproduzido pela jurisprudência brasileira, não se aplica, como já afirmado, a todas as modalidades plúrimas de família que se fazem presentes no cenário fático brasileiro. Em verdade, a própria decisão reconhece que :

As uniões afetivas plúrimas, múltiplas, simultâneas e paralelas têm ornado o cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados arranjos, entre eles, aqueles em que um sujeito direciona seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses.

Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. (BRASIL. STJ, 2010, p. 1)

O acórdão suscitado destaca, portanto, a necessidade de que as novas conformações sejam avaliadas conforme as peculiaridades inerentes a cada caso. Dessa forma, não há uma negação expressa, pelo Tribunal, da poliafetividade como meio de formação familiar, embora se faça menção ao “primado da monogamia”.

Mesmo com a ressalva, o embasamento doutrinário que traz a decisão é claro em citar a possibilidade de aceitação de padrões familiares distintos do previsto no ordenamento positivado. Isso se destaca, principalmente, pelo fato de que a Ministra Nancy Andrighi, relatora do processo em questão, traz, para embasar a sua decisão, a visão de Rulli Neto e Azevedo (2006) sobre o poliamor ou paralelismo afetivo. Ocorre que, segundo estes autores, o vínculo familiar poderá ser reconhecido nas situações em que houver intenção de formação de vida conjunta ou colaboração mútua.

Ademais segundo o trecho destacado do acórdão, o julgamento dos casos que envolvam a poliafetividade deve levar em conta os princípios constitucionais que norteiam o direito das famílias. São citados, para este fim, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a efetividade, a busca da felicidade, a liberdade e a igualdade, o que guarda total compatibilidade, como se verá no terceiro capítulo, com o modelo de família poliafetiva.

No entanto, a decisão faz menção à necessidade de que seja observado, pelo julgador, o que chama por “primado da monogamia” ao avaliar tais decisões. Contudo, a análise desempenhada nesse sentido não cumpre o papel de avaliar as situações em que os princípios anteriormente destacados sejam postos justamente de forma contrária ao primado em questão. Revela-se, por este motivo, inadequado o uso da referida decisão, bem como das muitas que a mencionam, para pressupor um entendimento jurisprudencial sobre a poliafetividade.

Todavia, ainda que falhe a jurisprudência em suprir o direito pertinente, o que, conforme já explicado, ocorre em razão da falta de casos concretos levados ao seu crivo, não se pode afirmar que as discussões sobre o tema são restritas à doutrina do direito das famílias. Pelo contrário, existe uma discussão sobre a poliafetividade em pleno Conselho Nacional de Justiça, na forma do Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, em que se discute a possibilidade de reconhecimento extrajudicial de uniões estáveis poliafetivas.

Para compreender do que trata o referido procedimento, é necessário, antes, esclarecer o seu contexto. Segundo Tartuce (2017), foi lavrada, no ano de 2012, pelo Cartório de Notas de Tupã/SP, a primeira escritura pública de união estável entre três pessoas no Brasil, no caso um homem e duas mulheres, o que suscitou opiniões doutrinárias divergentes acerca da sua validade jurídica. Contudo, mesmo com as dissonâncias em questão, as referidas uniões continuaram a ser reconhecidas em cartório, com destaque para o reconhecimento da primeira união nomeada pelo autor como “homopoliafetiva”, que envolvia três mulheres, no ano de 2016.

Ao tratar da validade das referidas escrituras, Tartuce (2017) afirma não haver qualquer irregularidade nesse tipo de documento, visto que apenas representaria uma declaração de vontade hígida, sem vícios e sem qualquer problema no seu objeto. Quanto aos seus efeitos, contudo, o autor destaca que, por dependerem das circunstâncias fáticas e da análise pelo Poder Judiciário, por certo não incidirão em todas as situações escrituradas. Reconhece, nesses termos não haver, na sua mera lavratura, a existência de nulidade:

Voltando ao cerne do objeto da escritura pública de união poliafetiva, por todos esses argumentos, não haveria na sua elaboração afronta à ordem pública ou prejuízo a qualquer um que seja, a justificar a presença de um ilícito nulificante. Não há que se falar, ainda, em dano social, pois esse pressupõe uma conduta socialmente reprovável, o que não é o caso. O reconhecimento de um afeto espontâneo entre duas ou mais pessoas não é situação de dano à coletividade, mas muito ao contrário, de reafirmação de transparência e solidariedade entre as partes. (TARTUCE, 2017)

Em sentido diverso do apresentado, Madaleno (2012) afirma ser impossível o reconhecimento jurídico das uniões estáveis poliafetivas por meio de escritura, em atenção ao princípio da monogamia. Ademais, afirma ser atribuição exclusiva do Poder Judiciário o reconhecimento de efeitos jurídicos aos referidos documentos. Por fim, o autor afirma não haver nenhum dispositivo de lei reconhecendo a validade de uma relação poliafetiva e que, pelo que expõe, a escritura de união poliafetiva serve apenas como manifestação de vontade das partes de anunciarem publicamente seu relacionamento poliafetivo.

Para fazer cessar a lavratura das escrituras públicas em questão, a Associação de Direito de Família e Sucessões – ADFAS deu entrada no Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, perante a Corregedoria Nacional de Justiça, por meio do qual requereu a proibição do referido ato pelos cartórios brasileiros, inclusive com pleito cautelar nesse sentido. Do relatório da decisão que julgou o pedido cautelar, é possível extrair, em síntese, a fundamentação trazida pela Associação, que será analisada com mais profundidade no terceiro capítulo:

Em síntese, sustenta a inconstitucionalidade na lavratura de escritura pública de “união poliafetiva”, pela falta de eficácia jurídica, e violação i) dos princípios familiares básicos, ii) das regras constitucionais sobre família, iii) da dignidade da pessoa humana, iv) das leis civis e v) da moral e dos costumes brasileiros.

Defende que a expressão “união poliafetiva” é um engodo, na medida em que se procura validar relacionamentos com formação poligâmica, e que todas as tentativas de ampliação das entidades familiares para acolhimento da poligamia são contrárias ao §3º do art. 226 da CF/88.

Indica equívoco nas referências constantes das escrituras públicas apresentadas de que “os DECLARANTES, diante da lacuna legal no reconhecimento desse modelo de união afetiva múltipla e simultânea” (Ids 1914530 e 1914531), uma vez que a Constituição Federal é expressa ao limitar a duas pessoas a constituição de união estável.

Adverte que o 3º Cartório de Notas de São Vicente/SP, o Tabelionato de Notas e de Protesto de Letras e Títulos de Tupã/SP e o Tabelionato do 15º Tabelionato de Notas da Comarca do Rio de Janeiro vêm lavrando escrituras públicas de “uniões poliafetivas”.

Requer, cautelarmente, a proibição da lavratura de escrituras públicas de “uniões poliafetivas” pelas serventias extrajudiciais do Brasil, e, no mérito, a regulamentação da questão pela Corregedoria Nacional de Justiça. (BRASIL. CNJ, 2016, p. 1)

O pedido acautelatório da ADFAS, no entanto, não foi deferido pela Corregedora, Ministra Nancy Andrighi, que se limitou a pedir informações às corregedorias dos tribunais de justiça de cada Estado sobre a existência ou não de escrituras lavradas nesse sentido e a recomendar que não mais o fizessem até a análise final do processo. Foram ouvidos ainda o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e o Colégio Notarial do Brasil, favoráveis ao reconhecimento extrajudicial das uniões estáveis poliafetivas.

Assim, para que se possa analisar a possibilidade de reconhecimento das famílias poliafetivas no âmbito do direito brasileiro, faz-se necessário destrinchar os argumentos trazidos no referido processo, tanto em desfavor do reconhecimento das famílias poliafetivas quando em sua defesa, bem como avaliar a efetiva aplicação dos princípios constitucionais ao tema em questão.

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Sobre o autor
Silvio Dayube Carigé

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia, foi um dos Coordenadores do Centro Acadêmico de Direito Luís Alberto Warat, Monitor de Direito Constitucional e membro do Grupo de Estudos em Mediação, Conciliação e Arbitragem. Pós-Graduando em Direito Médico, Biodireito e Bioética pela Universidade Católica do Salvador. Atua principalmente em Direito de Família e Direito Médico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARIGÉ, Silvio Dayube. A poliafetividade no direito de família.: A possibilidade de reconhecimento jurídico das entidades familiares poliafetivas no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5739, 19 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72773. Acesso em: 5 mai. 2024.

Mais informações

Trabalho monográfico de pesquisa apresentado como requisito parcial para a conclusão do curso de Bacharelado em Direito perante o Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia - Campus I em dezembro de 2017. Nota dos editores: Alguns trechos deste trabalho podem estar desatualizados no momento de sua publicação na Revista Jus Navigandi.

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