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A poliafetividade no direito de família.

A possibilidade de reconhecimento jurídico das entidades familiares poliafetivas no direito brasileiro

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19/03/2019 às 15:15
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ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO COM BASE NOS ARGUMENTOS TRAZIDOS NO PROCESSO Nº 0001459-08.2016.2.00.0000

O POSICIONAMENTO DA ADFAS: A INCOMPATIBILIDADE DA POLIAFETIVIDADE COM O DIREITO BRASILEIRO

O posicionamento trazido pela Associação Brasileira de Direito de Família – ADFAS no pedido de providências interposto perante o CNJ é bastante claro no sentido de não ser possível o reconhecimento das famílias poliafetivas no direito brasileiro. Para tanto, defende a associação que a aceitação desse tipo de conformação familiar seria “inválida à luz dos elementos constitucionais e infraconstitucionais brasileiros” (ADFAS, 2016, p. 6).

O posicionamento da ADFAS é compreensível, se verificado o contexto: seu estatuto fundacional prevê como objetivo, em seu art. 2º, V, a defesa da monogamia como princípio nas relações conjugais, de casamento e de união estável. Não surpreende, portanto, que a associação se coloque de forma contrária a modelo de família que ora se discute. No entanto, como se verá a seguir, a sua tese poderia ter sido melhor desenvolvida.

Ao iniciar a sua argumentação, a associação afirma que as relações poliafetivas “não têm eficácia jurídica, violam os mais básicos princípios familiares, as regras constitucionais sobre família, a dignidade da pessoa humana e as leis civis, assim como contrariam a moral e os costumes da nação brasileira” (ADFAS, 2016, p. 6). Assim, atribui a esse tipo de relacionamento uma suposta incompatibilidade absoluta com o regime constitucional vigente, inclusive de forma a desafiar a sua base principiológica.

Para justificar a rigidez do seu posicionamento, a ADFAS equipara as famílias poliafetivas constituídas sob a égide da união estável à poligamia, prática que, de fato, é expressamente vedada pelo direito brasileiro:

Deve ser notada a utilização da expressão que qualifica essas relações como poliafetivas. Essa expressão é um engodo, na medida em que, por meio de sua utilização, procura-se validar relacionamentos com formação poligâmica.

Deve-se afastar o argumento falacioso segundo o qual todas as relações em que há afetividade devem ser protegidas pelo Direito. O Direito somente tutela a afetividade em caso de relações lícitas, válidas e que acatam a ordem jurídica. A nossa sociedade não aceita a poligamia e não existe suporte normativo em nosso Ordenamento Jurídico para a atribuição de efeitos de Direito de Família e de Direito Sucessório a esse tipo de relação (ADFAS, 2016, p. 7)

É de se ressaltar, no entanto, que o paralelo entre a poligamia e a união estável poliafetiva, embora traga forte argumento em desfavor do reconhecimento, deve ser visto com cautela. Apesar das similaridades, são modelos de formação familiar distintos entre si em aspectos importantíssimos, o que já foi devidamente analisado no primeiro capítulo.

A ADFAS, em seguida, destaca a necessidade de que haja uma limitação do direito à liberdade nas relações familiares, de forma que, embora uma relação poligâmica seja possível como fato, não se poderia haver o seu reconhecimento jurídico e tampouco deveriam incidir os efeitos específicos do direito de família sobre esse tipo de relacionamento:

Os direitos à liberdade e à felicidade não podem implicar completa ausência de limitações. O direito à liberdade tem limitações inerentes aos princípios e normas cristalizadas na sociedade. Se alguém quer viver uma relação poligâmica, nada o impedirá, mas não podem ser atribuídos efeitos jurídicos de direito de família, de ordem pessoal, como os deveres de assistência e lealdade, e de ordem patrimonial, assim como não existirão efeitos de direito sucessório. (ADFAS, 2016, p. 7)

Todavia, mesmo que se conclua ao final do processo pela impossibilidade do reconhecimento, não se pode, em absoluto, presumir a inexistência dos efeitos jurídicos que a vida em conjunto traria em relação às partes. O mais razoável seria, nesse aspecto, a avaliação em juízo do que poderia ou não se aplicar a cada caso específico, por conta da variedade situações de fato que podem existir sob o condão da poliafetividade, conforme já demonstrado ao longo deste trabalho.

Outro argumento trazido pela ADFAS para justificar a proibição da lavratura de uniões estáveis poliafetivas é a própria forma pela qual está redigido o art. 226, § 3º da Constituição. Segundo afirma a associação, a norma constitucional limita de forma expressa a união estável a duas pessoas, de forma que não pode ser reconhecida entre três pessoas. Haveria, portanto, “vedação constitucional expressa à lavratura dessas escrituras”. (ADFAS, 2006, p. 7)

No entanto, é interessante destacar também que o texto do referido dispositivo constitucional apenas reconhece de forma expressa, em verdade, a união estável entre o homem e a mulher. Dessa forma, apesar de não haver a previsão expressa de modalidades de união estável distintas do padrão, o artigo em questão não traz qualquer vedação ou proibição em seu texto, que pode ser interpretado conforme a constituição para abarcar outros modelos.

Assim entendeu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 4277, que versou sobre a possibilidade de reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas. Houve, no caso, a interpretação da referida norma segundo os preceitos constitucionais basilares, o que levou ao reconhecimento de um modelo familiar que não estava expresso no texto constitucional.

Ainda que não se possa, por óbvio, estender o raciocínio jurídico empregado pelo STF no caso das uniões estáveis homoafetivas para as poliafetivas, não se sustenta, nesses termos, o argumento de que existiria uma vedação expressa constitucional das uniões poliafetivas pelo texto do art. 226, § 3º, que, como já afirmado, não traz restrição alguma ao reconhecimento de modelos de famílias diversos do que apresenta como padrão.

A ADFAS (2016), para dar continuidade à sua fundamentação, torna a equiparar a poliafetividade à poligamia, na medida em que traz, para tentar exemplificar a impossibilidade jurídica do reconhecimento da união estável entre mais de duas pessoas, uma série de precedentes que tratam da inviabilidade do reconhecimento de uniões estáveis paralelas. Em seguida, traz como argumento os efeitos que o reconhecimento da poliafetividade como entidade familiar traria aos demais modelos:

Note-se que essas ideias de possibilitar relações poligâmicas consentidas acabam, também, por voltar-se à atribuição à mancebia de efeitos de direito de família e sucessórios, como o direito à pensão alimentícia e à indenização pelo rompimento da relação extraconjugal, como se o terceiro ou a terceira, que é cúmplice do ato ilícito civil do adultério, tivesse direitos assistenciais iguais aos oriundos da lícita relação de casamento ou de união estável, e, ainda, pudesse ser compensado pelos danos morais que o amásio ou a amásia lhe tenha causado. Afinal, se houver quebra do princípio da monogamia, relações a três, quatro ou mais pessoas, sejam consentidas ou não consentidas, deverão produzir os mesmos efeitos jurídicos. (ADFAS, 2016, p. 15)

A colocação da ADFAS é, contudo, imprecisa. Não há qualquer relação necessária entre o estabelecimento de um núcleo familiar formado por mais de duas pessoas, que concordam com os termos da relação e vivem em harmonia, e o estabelecimento de um concubinato adulterino, que, além de constituir um cerne de convívio distinto de outro preestabelecido, é, por si só, uma violação ao dever de lealdade.

Ademais, a afirmação de que qualquer situação de quebra do primado da monogamia implicaria necessariamente na supressão erga omnes do dever de lealdade não é coerente. O que se discute no caso é a possibilidade de reconhecimento de uma união entre três pessoas que, de forma consensual, se comprometem a manter um relacionamento apenas entre si. Assim, caso reconhecida a união, permanecerá intacto entre as partes o referido dever. Do mesmo modo, a situação jurídica das relações não consentidas permaneceria incólume, pois a matéria discutida não se estende a estas.

Além dos aspectos jurídicos, a ADFAS (2016) traz, para justificar o seu pedido principal, o aspecto moral. Afirma, para tanto, que “pouquíssimos casos de relações poligâmicas consentidas não mudaram os costumes brasileiros. Isolados casos não têm o condão de demonstrar mudança do pensamento social” (ADFAS, 2016, p. 15).

Não está errada a colocação da instituição nesse aspecto. A incidência da poliafetividade na sociedade brasileira é, de fato, tão baixa que, como já visto, sequer são encontrados trabalhos estatísticos sérios que se proponham a analisá-la. Contudo, o fato de se tratar de uma minoria não justifica, de per si, que ela seja tratada de forma discriminatória, o que afrontaria a própria sistemática constitucional brasileira como um todo.

Por fim, a inicial do pedido de providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000 traz um estudo desenvolvido por Henrich, Boyd e Richerson (2012), em que buscam comprovar a conexão entre o desenvolvimento socioeconômico e a monogamia. Segundo esta pesquisa, a possibilidade de que uma pessoa tenha mais de um cônjuge possui relação direta com dados como igualdade entre homens e mulheres, competição sexual dos homens por mulheres, taxa de criminalidade, incidência de conflitos domésticos, nível de investimento nos filhos e, em consequência, o próprio desenvolvimento econômico do local.

No entanto, o estudo apresentado trata da poligamia cultural, que, como explicado no primeiro capítulo, é um modelo contextualmente e fundamentalmente distinto da poliafetividade contemporânea. Enquanto o estudo aborda a poligamia em sociedades nas quais a quantidade de parceiras é culturalmente abordada como símbolo de status, em sociedades eminentemente patriarcais, o modelo vislumbrado nas escrituras, por sua vez, pressupõe a construção democrática de uma entidade familiar alheia ao padrão monogâmico.

Diante do exposto, é possível verificar a fragilidade da maior parte doas argumentos trazidos pela Associação de Direito de Família e Sucessões. Dentre estes, o que melhor se sustenta é o da incompatibilidade da norma civil com o modelo pluriafetivo, desde as questões patrimoniais até as sucessórias, o que, infelizmente, não foi trabalhado com a extensão devida pela associação.

Ademais, a equiparação das uniões poliafetivas ao regime poligâmico, vedado no direito brasileiro, também é um bom argumento da ADFAS que pode servir de óbice à possibilidade de reconhecimento das famílias poliafetivas. No entanto, a falha da associação ao não avaliar as peculiaridades de cada modalidade prejudica a sua eficácia lógica.

Apesar das inconsistências apontadas, a contribuição da ADFAS para o início das discussões acerca do tema é importantíssima, visto que a iniciativa de levar a referida discussão ao crivo do Poder Judiciário partiu da associação. Ademais, os argumentos a favor do reconhecimento constantes da manifestação do IBDFAM também não são livres de críticas, como se verá a seguir.

A MANIFESTAÇÃO DO IBDFAM: POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE ACORDO COM O ATUAL PARADIGMA CONSTITUCIONAL

Diante da relevância social do tema e da eficácia decisória do julgamento final do pedido de providências em questão, foram chamadas a se manifestar as outras instituições que teriam interesse na instrução do processo: a Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR, o Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil – CNB-CF e o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

Das entidades representativas dos notários, apenas o Colégio Notarial do Brasil apresentou manifestação nos autos. Nesta, defende, em síntese, que não há impedimento constitucional para o reconhecimento de novas entidades familiares e que o notário possui autonomia e independência para prática do ato, pelo que não seria plausível o referido pedido de proibição. Contudo, não é interessante, do ponto de vista desse trabalho, analisar a fundo a referida petição, visto que seus argumentos se concentram no aspecto funcional da atividade cartorária e pouco adicionam em relação ao direito das famílias.

Já o IBDFAM, em sua manifestação, apresentou uma visão inversa da que fora exposta pela ADFAS, e defendeu a possibilidade de reconhecimento com fundamento em diversos princípios constitucionais. Faz-se necessário, portanto, analisar também os argumentos trazidos pelo instituto de forma a identificar os principais aspectos jurídicos que favorecem a hipótese de reconhecimento.

Primeiramente, é trazido pelo IBDFAM o que chama por princípio da pluralidade das entidades familiares. Segundo o instituto, “as entidades familiares citadas (casamento, união estável e família monoparental) não conformam rol taxativo, mas, sim, meramente, exemplificativo das múltiplas formas de se constituir família” (IBDFAM, 2016, p.2). Para embasar a referida tese, a manifestação menciona que, conforme Lôbo (2002), o caput do art. 226 da Constituição de 1988, ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” presente na anterior, teria se tornado cláusula geral de inclusão, não sendo admissível, para o autor em questão, a exclusão de qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.

No entanto, é bastante perigosa a adoção integral da tese firmada por Lôbo. Apesar de ser necessário oferecer a tutela jurídica às modalidades de família que não estão inclusas de forma expressa no texto constitucional, a afirmação do autor de que não seria possível a exclusão de qualquer entidade que preencha os três requisitos citados não encontra respaldo no panorama jurídico contemporâneo.

É atribuição da lei o estabelecimento das normas de regulamentação dos requisitos de formação da unidade familiar, o que pode limitar a possibilidade de reconhecimento de certas entidades. Para corroborar o afirmado, verifica-se não ser possível, por exemplo, até a conclusão do presente trabalho, o reconhecimento jurídico de uniões estáveis simultâneas, ainda que se adequem individualmente aos três requisitos elencados por Lôbo (2002), por conta da violação ao dever legal de lealdade.

Por outro lado, o princípio da pluralidade das entidades familiares pode ser observado na medida em que não existe, de fato, um rol taxativo constitucional de modelos familiares que podem obter o reconhecimento. Trata-se da interpretação dada pelo STF ao texto constitucional na ocasião da ADI 4277, que versa sobre a possibilidade do reconhecimento das famílias homoafetivas, mesmo sem que haja previsão constitucional expressa.

A manifestação do IBDFAM (2016) segue ao destacar a busca pela felicidade como elemento que, no atual sistema constitucional tem maior validade que a manutenção de um sistema fechado de família. Nesse sentido, a delimitação entre o direito e o não-direito, para o instituto, se esvai na medida em que o tempo passa e são cada vez mais enraizados os princípios constitucionais e cláusulas gerais permeáveis, tudo em razão da permanente mutação das relações sociais.

Em seguida, o instituto afirma ser preciso compreender que todas as possibilidades de formação familiar devem ser consideradas e respeitadas com base no que dispõe o próprio Código Civil:

É preciso avançar! É preciso compreender de uma vez por todas de que as formas constituídas de família, independente da sua configuração devem ser respeitadas, preservadas pelo mesmo fato de que a própria lei, assim prevê. Estabelece o artigo 1.513 do CCB/2002 que: É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela famíliaIn casu, o registro das uniões poliafetivas não pode ficar na invisibilidade jurídica, ou seja, merece a proteção e os efeitos jurídicos, sob pena de afrontar a liberdade, igualdade, não intervenção estatal, não hierarquização das formas constituídas de família e pluralidade das formas constituídas de família. (IBDFAM, 2016, p. 3)

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No entanto, até que seja definitivamente reconhecida a juridicidade das famílias poliafetivas e a sua compatibilidade para com o direito, não se vislumbra possível a invocação do art. 1.513 do Código Civil, visto que a família a que se refere, por certo, não abarca as entidades que o próprio direito não reconhece.

Embora sirva o referido dispositivo legal como indicativo da evolução da visão rígida de família que era tida nos códigos anteriores para uma visão menos patrimonialista, não pode se considerá-lo de forma superior às demais normas familiares estabelecidas no mesmo Código. Caso o fizesse, haveria elevado à segurança jurídica do atual sistema, com a possibilidade de tornarem-se inócuas as demais regras estabelecidas para este campo do direito, tudo sob o manto da não-intervenção.

Ademais, segundo o art. 226 da Constituição, a família tem especial proteção do Estado. Destarte, a intervenção estatal pode sim ser aceita – ou mesmo necessária – na medida em que sirva à proteção fática das famílias estabelecidas e à proteção jurídica da sua atual sistemática, contanto que sejam respeitadas as normas constitucionais.

Após suscitar a não-intervenção, o IBDFAM traz como argumento em favor do reconhecimento das famílias pluriafetivas a laicidade do Estado brasileiro, na medida em que a influência dos aspectos religiosos e morais na regulamentação da família seriam afronta à democracia e à pluralidade:

A democratização da intimidade constitui um dos aspectos do processo democrático. Falar em Estado laico deve, também, ter implicações que estão para além da separação formal entre Estado e credos religiosos. O Estado laico configura conditio sine qua non para autêntica democracia. Ele assegura a pluralidade de ideias, a diversidade das conformações sociais, e, portanto, das múltiplas formas de constituição de família, incluindo aqui as uniões poliafetivas.

Se o Estado é laico, se a democracia demarcada constitucionalmente tem o objetivo de estabelecer um Estado no qual caibam todos, com as suas multifacetadas maneiras de ser e de se fazer humanos, não há espaço para o pensamento único, mesmo que seja decorrente de religião majoritária, nem tão pouco de uma concepção moral de maioria. A diversidade constitui garantia fundamental do Estado laico. Nele se afirma o direito de ser diferente. Desta forma, ainda que significativa parte da população tenha a monogamia como uma regra ou princípio em decorrência de sua formação religiosa ou moral, não é possível impor tal princípio ou regra como norma estatal, sob pena de afronta ao princípio da laicidade do Estado.  (IBDFAM, 2016, p. 3 e 4)

Quanto a este aspecto, é precisa a manifestação do instituto. De fato, como já afirmado ao tratar da argumentação da ADFAS (2016) quanto à incompatibilidade da poliafetividade para com o padrão moral brasileiro, as posições minoritárias cujo pensamento não desafie o sistema constitucional não podem ser relegadas em razão do que afirma, em sua essência, a própria Constituição. Trata-se a laicidade, portanto, de importante instrumento de questionamento da monogamia como princípio.

No entanto, a referida análise exige mais cautela, visto que a monogamia está insculpida na forma como está redigido parte considerável do atual Código Civil, ao menos em boa parte dos seus institutos. Desse modo, o reconhecimento da poliafetividade traria diversas possíveis lacunas jurídicas que deveriam, pela prudência, ter sido ao menos citadas pelo IBDFAM (2016), o que não se vislumbra na sua manifestação.

Para concluir a análise desempenhada acerca da possibilidade jurídica de reconhecimento das famílias poliafetivas, e, por consequência, da lavratura das respectivas escrituras, o Instituto Brasileiro de Direito de Família traz a importância da interpretação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade de forma a permitir a referida modalidade de formação familiar. Quanto ao macroprincípio, diz a manifestação processual:

O Estado não tem o poder de dizer como as pessoas devem constituir família. Se a família existe, tem ele, o Estado, o dever de protegê-la e de assegurar aos seus integrantes o exercício de seus direitos. É o que prescreve o art. 226 da Constituição Federal. Este dever decorre do princípio estruturante do Estado democrático de direito: a dignidade da pessoa humana. Tal princípio, no âmbito das relações familiares, põe em relevo as situações subjetivas coexistenciais. A história de vida das pessoas constitui sua própria humanidade. Negar sua história e a existência da família constituída ao longo dos anos, por exemplo, paralela ou poliafetiva revela-se como afronta ao que constitui o núcleo do que é essencialmente humano. (IBDFAM, 2016, p. 5)

Como e pode extrair do trecho destacado, o instituto, ao trazer a dignidade da pessoa humana como elemento de defesa da possibilidade de reconhecimento, expõe, ainda que de forma sucinta, a razão para que o argumento seja considerado, diferentemente do que fez a ADFAS (2016). Da mesma forma, ao indicar o aspecto existencial da possível negação do reconhecimento a uma entidade familiar constituída ao longo dos anos, o instituto faz um paralelo com o que constitui, efetivamente, a essência da dignidade humana, de forma a dar força ao referido argumento por meio das bases constitucionais brasileiras.

O princípio da liberdade também é trazido de forma bem fundamentada, com a afirmação de que “a liberdade, no que se refere às situações subjetivas existenciais, deve ser maximizada” (IBDFAM, 2016, p. 5). Argumenta o instituto, nesse aspecto, que a liberdade deve ser considerada mesmo em situações que não estejam expressas nos textos legais ou na jurisprudência consolidada, o que não se afasta da concepção de liberdade como elemento pautado pela própria dignidade da pessoa humana.

Para finalizar, estabelece o IBDFAM (2016) que o princípio constitucional da isonomia deve ser considerado como elemento de superação da igualdade meramente formal e que não poderia, portanto, pressupor uma uniformização. Nesses termos, restaria assegurado, paradoxalmente, o direito à diferença que torna as famílias poliafetivas merecedoras de igual tutela do Estado. Em seguida, ao tratar das lacunas geradas pelo reconhecimento e da sua incompatibilidade com determinadas normas preestabelecidas pelo direito das famílias, afirma o instituto:

Trata-se de um imenso desafio para os juristas em geral e para o Judiciário em particular. As respostas não serão encontradas prontas em um compartimento numerado e de fácil acesso na lei. O ônus argumentativo ganha relevância, visto que o procedimento lógico e simples da subsunção do fato à regra jurídica revela-se cada vez mais insuficiente e, em verdade, totalmente inadequado. (IBDFAM, 2016, p. 5)

Assim, mesmo que não tenham sido destacados individualmente os problemas que seriam possivelmente causados pelo reconhecimento a nível de regulamentação e incidência dos efeitos jurídicos previstos na atual norma familiar, visto que o seu texto não considera a possibilidade de que existam famílias poliafetivas, o destaque de que existem é importante para que o debate seja desenvolvido de forma íntegra.

Como visto, a análise da matéria realizada pelo IBDFAM traz bons argumentos em defesa da possibilidade de reconhecimento. Embora haja certo exagero insculpido na invocação equivocada de certos institutos, por vezes de forma dissonante do atual entendimento jurisprudencial e doutrinário, a exemplo da interpretação do art. 226 da Constituição como cláusula geral de inclusão, as imprecisões da manifestação não impedem ou prejudicam a parte da manifestação que traz a referida argumentação de forma adequada.

Uma vez analisados os argumentos trazidos pela ADFAS e pelo IBDFAM ante a situação jurídica das famílias poliafetivas, verifica-se não ser possível, no entanto, chegar, apenas pelo que ambos afirmam, a uma conclusão adequada. Para tanto, se faz necessária a análise de aspectos que não foram considerados por nenhuma das duas entidades ou que, ainda que considerados, não foram, para os fins deste trabalho, suficientemente desenvolvidos nas respectivas manifestações.

AS FAMÍLIAS POLIAFETIVAS PERANTE O DIREITO BRASILEIRO: RECONHECIMENTO OU REJEIÇÃO?

O Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, até a conclusão do presente estudo, não foi julgado pelo Conselho Nacional de Justiça. Desse modo, após a efetiva exposição dos argumentos apresentados por ambos os lados da discussão, ora representados pela ADFAS e pelo IBDFAM, verifica-se não ser possível a obtenção de uma resposta definitiva acerca do problema em questão. Nenhuma das duas manifestações se atentou ao aspecto científico da poliafetividade, o que levou a comparações precipitadas de ambas as partes.

A Associação de Direito de Família em Sucessões, representada por Regina Beatriz Tavares da Silva, afirma que a poliafetividade e a poligamia são a mesma coisa. No entanto, como explicitado no primeiro capítulo, o termo “poliafetividade” descreve os casos em que há, necessariamente, a aceitação da situação de fato pelos envolvidos em todos os seus termos, de modo que é distinto da “poligamia”, que é um fenômeno cultural e se pauta na simultaneidade de relacionamentos por apenas uma pessoa.

As escrituras de união estável poliafetiva foram lavradas de acordo como modelo descrito por Labriola (1999) como o da “polifidelidade”, em que as pessoas envolvidas relacionam-se entre si e não podem ter parceiros fora do relacionamento estabelecido. Desta forma, trata-se de uma única união entre três pessoas que vivem juntas e dividem igualmente as responsabilidades familiares, com cooperação econômica e suporte afetivo, e não de duas ou mais relações simultâneas vividas em núcleos diferentes.

Por outro lado, o Instituto Brasileiro de Direito de Família também não se preocupa com a referida distinção, de forma que os seus argumentos possam enveredar-se também para o caso das famílias simultâneas. Nada há de errado com isso do ponto de vista panfletário que assume o instituto para com a defesa de ambas as modalidades, mas não é possível, em uma discussão que aborde o tema sob uma perspectiva técnica, deixar de fazer a respectiva distinção.

Outro aspecto que foi trazido pela ADFAS e que não pode ser levado em consideração de forma literal é a afirmação de que as uniões estáveis poliafetivas seriam, em quaisquer ocasiões, incapazes de gerar efeitos para os conviventes. Segundo Tartuce, ainda que fossem negados, em absoluto, os efeitos jurídicos das escrituras sob o ponto de vista do direito das famílias, as partes teriam a possibilidade de, em último caso, socorrer-se do direito contratual:

Como palavras finais, cabe observar que, caso não seja possível o reconhecimento da validade dessas escrituras pelo Direito de Família, o caminho do Direito Contratual – por contratos de sociedade de participação, por promessas de doação e de alimentos, por plano de saúde e de previdência privada e outros negócios jurídicos patrimoniais –, pode indicar a solução. Se entraves morais - e até jurídicos -, vedam o reconhecimento da escritura de união poliafetiva pelo Direito de Família, o mundo dos contratos pode perfeitamente aceitar o teor que ali se pretende expressar. Em vez de um ato só, a solução jurídica para casos como os relatados no início do texto estará em várias minutas. (TARTUCE, 2017)

No entanto, a solução proposta por Tartuce é falha na medida em que seria impossível o reconhecimento de efeitos a conformações poliafetivas que não estabelecessem, por meio dos contratos em questão, os termos sobre os quais se assentariam a união. Em verdade, mesmo que se conclua pela impossibilidade do reconhecimento das uniões estáveis poliafetivas por conta da sua incompatibilidade com a sistemática civil atual, não é possível pretender que a situação de fato gerada pela vida conjunta entre mais de duas pessoas seja inexistente do ponto de vista jurídico.

Ademais, conforme colocado por Dias (2016), ao tratar do processo de reconhecimento das famílias homoafetivas pelo STJ, que eram por vezes julgadas como sociedades de fato, nos termos do art. 981 do Código Civil, a redução das relações de afeto à dimensão estritamente comercial seria uma forma de negação da própria humanidade daquela relação. Portanto, a via contratual proposta por Tartuce (2017) permanece como um remédio paliativo, muito distante de uma solução ideal.

Se seguido o caminho em questão, seria possível que, por exemplo, mesmo com anos ou décadas de cooperação econômica e afetiva mútua, as partes conviventes não tivessem qualquer obrigação entre si, o que poderia gerar situações de extrema injustiça e propriamente incompatíveis com o sistema constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana. Dessa maneira, o mais razoável seria a avaliação em juízo do que poderia ou não se aplicar ao caso, mesmo que impossibilitado o seu reconhecimento como entidade familiar “oficial”.

Quanto à fundamentação da proibição do reconhecimento das uniões estáveis poliafetivas no princípio da monogamia, também cabem ressalvas. Em verdade, não existe um consenso doutrinário acerca da força principiológica da monogamia em face do texto constitucional. Uma parcela significativa da doutrina, encabeçada por nomes como Dias (2016), Lôbo (2010), M. Silva (2012) e Tartuce (2014), defende que a monogamia, embora seja base da sistemática civil positivada e efetivo norte da organização social brasileira, não pode ser adotada com força de princípio.

Da superação da monogamia como princípio

A tese da superação da monogamia como princípio, conforme o trabalho elaborado por M. Silva (2012), traz como fundamentos principais a superação da dominação masculina, a laicização do Estado e do Direito e a primazia da autonomia privada no campo das situações subjetivas existenciais e coexistenciais.

Ao tratar da necessidade de quebra do princípio da monogamia como forma de corroborar o processo de emancipação da mulher no tecido social contemporâneo, e, por consequência, da superação da dominação patriarcal, Marcos da Silva traz a aplicação histórica do referido princípio como forma de vedação da poliandria e de invisibilização das mulheres designadas pela legislação como concubinas:

O princípio da monogamia está entre aqueles que ancoram o secular modelo patriarcal de dominação masculina. Nestes novos tempos, em que se apresenta tão promissor o processo de emancipação da mulher, não há mais lugar para um princípio que, no Ocidente, ao longo dos séculos, só teve efetiva vigência como vedação da poliandria e, por isso mesmo, sustentou moralismo hipócrita em relação à poliginia. Assumido juridicamente, tal moralismo tornou invisíveis inúmeras mulheres, reificadas pela dominação masculina e marginalizadas com designação pejorativa de concubinas. (SILVA, M., 2012, p. 134)

Ante o que expõe o autor, é visível a necessidade de que o referido princípio seja suplantado em nome do processo de libertação das mulheres e da finalidade constitucional de igualdade entre os sexos. Embora M. Silva não se refira expressamente à poliafetividade no trecho destacado, o referido modo de relacionamento é definido por Haritaworn, Lin e Kleese (2006) como possibilitador da emancipação sexual não apenas das mulheres, mas também dos negros, transexuais e deficientes físicos, ainda que seja necessário, nesse aspecto, o esforço contínuo das maiorias sexualmente favorecidas para a inclusão e aceitação dos setores minoritários nesse universo.

Ao tratar da laicidade, o autor diz que “os Estados teocráticos sempre tiveram obsessão pela regulamentação da sexualidade” (SILVA, M., 2012, p. 140). Nesse sentido, afirma que, a partir da constitucionalização da laicidade, passou a ser necessário reinterpretar o princípio da monogamia, de forma que sejam tolerados os modelos de família que não lhe digam respeito:

Em um Estado que se proclame democrático e orientado pelo princípio pluralista inclusivo, não há lugar para o regramento unívoco da conjugalidade. Estabelecer um standard para todas as relações conjugais, com as facilidades e praticidades inerentes a determinado modelo único, talvez seja o caminho mais fácil e mais apto a proporcionar a chamada segurança jurídica, porém, a vida e os relacionamentos são dinâmicos, criativos, voláteis e mutantes. (SILVA, M., 2012, p. 143)

Conforme se extrai do trecho destacado, embora não se figure como a solução juridicamente mais simples do ponto de vista prático, a quebra da monogamia como princípio deve ser feita na medida em que não é mais papel do Estado chamar a si a responsabilidade de estabelecer como norma jurídica padrões morais estabelecido por uma religião ou uma ideologia, especialmente em se tratando do direito das famílias.

A outra questão fundamental abordada pelo autor como elemento fundamentador da superação da monogamia como princípio jurídico é a consideração da regra atual de primazia da autonomia privada, principalmente no campo das situações que envolvam as relações não-patrimoniais. Segundo fundamenta, considerar que o Estado tem o poder de ingerência na esfera mais íntima da vida privada é violar abertamente o princípio constitucional da liberdade e a própria dignidade da pessoa humana:

Potencializar a autonomia privada nas situações subjetivas existenciais corresponde ao atendimento normativo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da liberdade. Quanto maior a ingerência do Estado na regulação das relações conjugais, mais significativos os indícios de uma inversão de valores. As pessoas que integram a relação conjugal ficam vinculadas a um modelo de família que atende interesses fixados de forma uniforme pelo próprio Estado. Este é arquétipo das codificações oitocentistas com pretensão de regular cada quadrante por mais íntimo que fosse da vida privada. (SILVA, M., 2012, p. 250)

Desse modo, deve ser respeitada a autonomia das pessoas que buscam a constituição de uma família, ainda que fora do padrão monogâmico, sob pena de se desrespeitar a essência da própria constituição em nome de uma moralidade que não pode, de forma alguma, ter tamanha força normativa.

Deve-se, é claro, adotar de forma cautelosa a tese do autor de que a monogamia não teria lugar como princípio estruturante do direito das famílias. Segundo ele próprio reconhece, sua teoria não pretende “a exposição de uma verdade captada da análise jurídica da regulação das relações familiares. Insere-se e se reconhece em âmbito muito mais modesto e, paradoxalmente, mais verdadeiro, isto é, o do Direito como argumento ou retórica” (SILVA, M., 2012, p. 276).

Não é, portanto, possível adotar a referida tese como se fosse decorrente de um consenso jurídico, até porque a quebra do padrão monogâmico tende a possibilitar conformações familiares que o próprio Código Civil não leva em consideração ao regulamentar a matéria, de forma que a segurança jurídica sobre o tema seria inexistente até a sua pacificação jurisprudencial, se esta porventura ocorresse. No entanto, a negação da monogamia como princípio estruturante do direito das famílias contemporâneo é fundamental para que se possa atribuir o caráter familiar às entidades poliafetivas.

Para que se possa complementar a referida análise, é possível partir do pressuposto de superação da monogamia estabelecido pelo autor para analisar, sob o aspecto da efetiva incidência dos princípios constitucionais, se é factível ou não o reconhecimento das famílias poliafetivas em nosso atual ordenamento jurídico.

Da abertura constitucional para o reconhecimento

Em sua manifestação no Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, o IBDFAM suscitou, como forma de defesa do reconhecimento da validade das escrituras de união estável, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da isonomia.  A fundamentação pertinente a cada um dos princípios foi adequada ao apontar como a negação do reconhecimento os violaria, bom como ao trazer uma lógica que indica a  sua compatibilidade para com a modalidade poliafetiva.

Neste aspecto, foi superior à manifestação inicial da ADFAS, que, embora tenha citado ocasionalmente suposta violação à dignidade da pessoa humana, em nenhum momento trouxe uma fundamentação que ao menos indicasse o referido ultraje. Ademais, a associação citou a incompatibilidade do reconhecimento com normas constitucionais de forma que o texto da Magna Carta, ao citar a “união estável entre o homem e a mulher” em seu art. 226, § 3º, traria vedação expressa à poliafetividade, quando, em verdade, o próprio STF já entendeu, na ADI 4277, que a forma como o parágrafo está redigido não significa uma limitação a outras conformações familiares, devendo ser interpretado segundo a essência constitucional.

Ante a análise comparativa feita entre as duas manifestações, verifica-se, ao menos como ponto de partida, que a Constituição oferece, por meio do seu acervo de princípios, uma abertura para o reconhecimento das famílias poliafetivas. No entanto, é necessário aprofundar a discussão para além do que trazem as duas entidades quando das respectivas manifestações.

O primeiro princípio a ser tratado, como não poderia ser diferente, é o da dignidade da pessoa humana, considerado o critério fundamental de aplicação constitucional. Todavia, antes de abordar a sua aplicação no caso, é necessário trazer uma abordagem crítica acerca da excessiva abertura interpretativa dada ao conceito, de forma que, “em razão da plasticidade e da ambigüidade do discurso da dignidade, muitos autores já sustentaram a inutilidade do conceito, referido como ilusório e retórico” (BARROSO, 2010, p. 7-8). Em face do risco de esvaziamento conceitual do princípio, que é, com frequência, utilizado de forma irresponsável no meio acadêmico, é necessário destacar, ainda que brevemente, a sua natureza para além da realidade jurídica.

Para Barroso (2010), a dignidade humana, em sua base filosófica, constitui um conceito axiológico ligado à ideia de bom, justo, virtuoso. Nesse plano ético, a dignidade assume o papel de justificação moral dos direitos humanos e fundamentais, mesmo com a sua assunção pelo Direito, quando ganha também o status de princípio jurídico. É necessário, nesse sentido, para que haja a compreensão do instituto como princípio, a sua conceituação filosófica.

Segundo a teoria de Arendt (2001), existem três atividades fundamentais para a compreensão da condição humana: o labor, o trabalho e a ação. Em seu conceito, o labor compreende as atividades indispensáveis à satisfação das necessidades vitais; o trabalho equivale ao processo de transformação do ambiente natural no mundo humano, do qual resultam os seus artefatos; e a ação seria a única atividade exercida diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria, em que se constitui a condição de toda vida política. Em sua abordagem desses conceitos narra Marcos Alves da Silva:

Pode-se, assim, tangenciar o sentido da dignidade humana não pela declaração de sua essencialidade ou a revelação do que é, mas, sim, pela sua falta ou ausência. Toda redução da pessoa à invisibilidade, toda aniquilação de sua liberdade atuante, toda supressão do discurso enunciativo de sua ação constituem violação à dignidade humana. A redução da pessoa ao animal laborans, para a obtenção do mínimo necessário à sobrevivência (labor), ou ao mero fabricador de artefatos (trabalho), subtrai do ser humano o que lhe faz propriamente humano. O que singulariza o homem, no paradoxo da pluralidade que permite tal singularização, são o discurso e a ação. É por meio deles que um ser se distingue e se manifesta aos demais não como mero objeto físico mas como homem. (SILVA, M., 2012, p. 199)

Ante o exposto, é possível vislumbrar que o ser humano se distingue como tal essencialmente por sua ação, e, nesse sentido, pela forma como é reconhecido na teia de relações humanas e históricas. A reflexão filosófica desenvolvida por Arendt (2001) sobre a dignidade humana serve, assim, como um norte para a sua aplicação na forma de princípio jurídico.

Quando há a formação, no plano fático, de uma família poliafetiva, os seus membros protagonizam uma história, de forma que “se reconhecem em uma teia de relações, envolvendo outros que, por sua vez, os reconhecem como família, no seio da qual novos seres humanos se constituem pela ação e pelo discurso dos pais, tornando-se também protagonistas neste espaço de coexistencialidade” (SILVA, M., 2012, p. 200).  Nesse sentido, a negativa de dessas conformações familiares pelo Estado seria uma negação da sua condição de vida, da sua história, e, portanto, da própria dignidade humana dos seus integrantes.

Dessa forma, se considerada a incidência do princípio da dignidade da pessoa humana em sua dimensão protetora da própria condição da humanidade, é necessário que haja o reconhecimento das famílias poliafetivas pelo Estado, pois não apenas é compatível com o macroprincípio constitucional, mas também imprescindível para a sua efetivação.

Nesse sentido, ainda que se adote a monogamia como princípio fundado na ordem constitucional, os princípios são normas jurídicas que possuem necessariamente uma dimensão de peso ou importância, a ser determinada diante dos elementos do caso concreto. São, portanto, “mandados de otimização, devendo sua realização se dar na maior medida possível, levando-se em conta outros princípios, bem como a realidade fática subjacente” (BARROSO, 2010, p. 11). Nesse sentido, ao colocar a monogamia ao lado da dignidade da pessoa humana, princípio fundador da ordem constitucional, deve o segundo prevalecer, principalmente no caso das famílias poliafetivas, cujo reconhecimento não traz efetivo prejuízo a ninguém, dentro ou fora da relação.

Além da dignidade da pessoa humana, que, como já visto, pressupõe o reconhecimento da dimensão familiar das formações poliafetivas baseadas no convívio, na cooperação econômica e no afeto entre seus membros, podem ser suscitados também, para justificar o reconhecimento, outros princípios constitucionais decorrentes deste critério fundamental.

O princípio da isonomia, em sua dimensão material, predispõe, segundo Barroso (2010), que ao mesmo tempo em que todas as pessoas têm o mesmo valor intrínseco e, portanto, merecem igual respeito e consideração, deve ser respeitada a diversidade e a identidade de grupos sociais minoritários como condição para a dignidade individual. Desse modo, o tratamento paritário pelo Direito aos que pretendem viver de forma dissonante do padrão social é necessário à efetivação da isonomia. Do mesmo modo, devem ser consideradas as peculiaridades dos modos de relacionamento poliafetivos ao se abordar os seus aspectos jurídicos sob a égide do direito das famílias já estabelecido.

A liberdade, em sua dimensão constitucional, situa-se no plano dos direitos individuais estabelecidos conforme a primazia da dignidade. Se manifesta, sobretudo, na forma da autonomia privada, considerada sempre ao lado da isonomia. Está presente, portanto, na liberdade constitucional uma das mais importantes faces da dignidade da pessoa humana, conforme leciona Luís Roberto Barroso:

A autonomia é o elemento ético da dignidade, ligado à razão e ao exercício da vontade na conformidade de determinadas normas. A dignidade como autonomia envolve, em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito do indivíduo de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade. Significa o poder de fazer valorações morais e escolhas existenciais sem imposições externas indevidas. Decisões sobre religião, vida afetiva, trabalho, ideologia e outras opções personalíssimas não podem ser subtraídas do indivíduo sem violar sua dignidade. (BARROSO, 2010, p. 24)

Verifica-se, portanto, que a autonomia privada, como manifestação do princípio constitucional da liberdade, é condição inerente à própria dignidade humana, principalmente nas relações de cunho existencial. Isto se dá porque, conforme M. Silva (2012), nas relações jurídicas de caráter exclusivamente patrimonial existe o dever de que seja observada uma função social, ao passo em que na tutela da dimensão existencial do ser humano não há que se cogitá-la: o ser humano jamais será considerado como meio para a obtenção de um determinado fim.

Ante o exposto, a possibilidade de reconhecimento das entidades familiares poliafetivas encontra respaldo no princípio constitucional da liberdade, visto que é na família que se traduz a expressão máxima da existencialidade daqueles que a compõem. Dessa maneira, a partir da mútua escolha do referido modelo por todos os envolvidos, estes devem ser, a mando constitucional, livres para viver da forma escolhida, na medida em que ninguém seja prejudicado dentro ou fora do relacionamento em questão.

Como se pode ver, embora a legislação não preveja a possibilidade de forma expressa, a análise do tema sob o ponto de vista daquilo que determina a constituição em sua essência, sobretudo pela efetivação da dignidade da pessoa humana e dos princípios que dela decorrem, atesta pela possibilidade do reconhecimento jurídico das famílias poliafetivas.

Claro que não se trata de uma matéria simples: embora não se possa negar o status de família a quem vive dessa forma, diante do cumprimento de todos os requisitos jurídicos para a formação do elo familiar, principalmente a comunhão de vida por meio da coabitação, cooperação econômica, e intenção de convívio a longo prazo, a falta de regulamentação sobre a matéria exigirá o esforço da comunidade jurídica como um todo para que seja feita a integração mais justa das diversas lacunas jurídicas que acompanharão o reconhecimento.

Com a eventual superação dessas lacunas e a adequação da atual sistemática civil para que comporte a poliafetividade, não restará nenhum óbice real ao reconhecimento das famílias poliafetivas, que finalmente gozarão da segurança jurídica necessária, se consideradas eventuais dissoluções ou do falecimentos, e, sobretudo, da efetivação da própria condição humana dos seus membros perante a ordem constitucional contemporânea.

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Sobre o autor
Silvio Dayube Carigé

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia, foi um dos Coordenadores do Centro Acadêmico de Direito Luís Alberto Warat, Monitor de Direito Constitucional e membro do Grupo de Estudos em Mediação, Conciliação e Arbitragem. Pós-Graduando em Direito Médico, Biodireito e Bioética pela Universidade Católica do Salvador. Atua principalmente em Direito de Família e Direito Médico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARIGÉ, Silvio Dayube. A poliafetividade no direito de família.: A possibilidade de reconhecimento jurídico das entidades familiares poliafetivas no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5739, 19 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72773. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho monográfico de pesquisa apresentado como requisito parcial para a conclusão do curso de Bacharelado em Direito perante o Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia - Campus I em dezembro de 2017. Nota dos editores: Alguns trechos deste trabalho podem estar desatualizados no momento de sua publicação na Revista Jus Navigandi.

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