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Tráfico privilegiado: análise da hediondez do crime à luz da jurisprudência e a aplicação na execução pena

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Abordam-se os principais aspectos acerca do instituto do tráfico privilegiado e da possibilidade de afastamento do caráter hediondo do delito, especialmente em sede de execução penal, após decisão do STF.

RESUMO: O objetivo do presente artigo científico é analisar o instituto do tráfico privilegiado e a possibilidade de afastar o caráter hediondo do delito, diante da recente decisão do Supremo Tribunal Federal. Serão mencionadas no estudo as críticas a esse posicionamento e as consequências que ocorrem, no cumprimento da pena, ao se considerar a hediondez do crime em comento. Será analisada, ainda, a possibilidade de se afastar a hediondez do delito em sede de execução penal, ainda que haja sentença transitada em julgado, considerando o crime como hediondo. Para esse fim, será realizada análise jurisprudencial, inclusive os entendimentos recentes dos Tribunais Superiores adotados sobre o assunto, bem como utilizados conceitos doutrinários sobre o tema. Para o estudo, lançou-se mão do método de revisão bibliográfica.

Palavras-chave: Tráfico Privilegiado. Hediondez. Execução Penal.


Introdução

O Brasil adota, atualmente, o sistema progressivo da pena, como parte da estrutura da execução penal, conforme previsto na Lei 7.210/84. Tal sistema garante ao apenado a possibilidade de progredir para regime menos rigoroso, conforme decisão do juízo competente, quando atendidos os requisitos previstos no artigo 112 da LEP. Vejamos:

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.

Ocorre que, para os crimes hediondos, o procedimento para a progressão de regime e demais benefícios previstos na LEP ocorre de forma diferenciada.

Nesse sentido, o crime de tráfico privilegiado trouxe questionamentos sobre o seu caráter hediondo, suscitando teses sobre o afastamento da hediondez do referido delito.

A finalidade do presente artigo é levar a reflexão sobre o caráter hediondo, ou não, do tráfico privilegiado, uma vez que existem entendimentos diversos na doutrina sobre o tema e posicionamento firmado na jurisprudência dos Tribunais Superiores.

O problema que cerca a temática é a análise do delito em sede de cumprimento de pena para a concessão de benefícios previstos na LEP. É que, em alguns casos, em sentença condenatória, não é afastada a hediondez do referido delito, devendo, pois, receber o tratamento previsto para os crimes hediondos.

O estudo do tema está embasado na Constituição da República Federativa do Brasil, no Código Penal, na Lei de Execuções Penais, em doutrinas e na análise de jurisprudência.

Para realização do trabalho, utilizou-se método de revisão bibliográfica com base em conceitos doutrinários e jurisprudências, lançando mão, ainda, de material eletrônico disponível via internet.


Desenvolvimento

A criação da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) trouxe em seu artigo 1º o rol dos crimes considerados hediondos por possuírem um alto grau de reprovabilidade.

Entendem-se como crimes hediondos aqueles considerados de extrema gravidade que, devido a sua natureza, recebem tratamento diferenciado, com mais rigor em relação às demais infrações penais. Como já dito, são, também, insuscetíveis de graça, indulto ou anistia. Os crimes hediondos afetam, ainda, a dignidade da pessoa humana e agem em desrespeito aos valores coletivos.

Sobre o assunto Marysia Souza e Silva menciona:

“O legislador não definiu o que é hediondo, mas a população brasileira considera hediondo o crime que é cometido de forma brutal, horrível, repugnante e causa indignação as pessoas, o que acaba por revelar o significado qualitativo do crime definido pelo legislador constituinte. Pode ser então chamar de hediondas todas as condutas delituosas de excepcional gravidade, seja quanto a sua execução, seja quanto a natureza do bem jurídico ofendido, bem como, a especial condição da vítima que causam reprovação e repulsão”. (SILVA, 2009, p.130.)

A Constituição Federal de 1988 trouxe, ainda, a figura do tráfico ilícito de entorpecentes e o equiparou aos crimes hediondos ao afirmar que não caberia, nesses casos, a concessão de graça, fiança ou anistia, determinando que a matéria fosse disciplinada por meio de lei ordinária, o que culminou, como já dito, na criação da lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos).

A justificativa para o constituinte originário ter separado os crimes hediondos dos equiparados a hediondos está diretamente relacionada à necessidade de assegurar maior estabilidade na consideração destes últimos como crimes mais severamente punidos. Em outras palavras, a Constituição Federal autoriza expressamente que uma simples Lei Ordinária defina e indique quais crimes serão considerados hediondos. No entanto, para os crimes equiparados a hediondos, o constituinte não deixou qualquer margem de discricionariedade para o legislador ordinário, na medida em que a própria Constituição Federal já impõe tratamento mais severo à tortura, ao tráfico de drogas e ao terrorismo. (LIMA, 2015, p. 55)

Contudo, ainda que o tráfico de drogas seja equiparado ao crime hediondo, a edição da conhecida Lei de Drogas (lei 11.343/2006) trouxe, em seu bojo, a diferenciação entre o traficante profissional e o traficante eventual, o que veio disposto no artigo 33, §4º da referida Lei:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

§ 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Dessa forma, a figura do traficante eventual se revela naquele que não apresenta um perfil de delinquente, justamente por utilizar do comércio ilícito de drogas de forma eventual. É primário e de bons antecedentes e não possui suas raízes alicerçadas no mundo do crime. Para essas pessoas, a lei estabeleceu a possibilidade de diminuição da pena, de 1/6 a 2/3 e, para o ato, a doutrina o denominou de tráfico privilegiado.

Nas palavras de Damásio de Jesus (2009, p.128):

O redutor previsto no dispositivo é digno de encômios, porém, tem uma razão de ser: cuida-se de causa de redução de penavinculada aos novos limites mínimo e máximo previstos no caput do artigo 33 da Lei. A lei pretendeu temperar os rigores da punição ao traficante primário, de bons antecedentes, que não tenha envolvimento habitual com o crime ou que não faça parte de addociação criminosa. por esse motivo, não há razões plausíveis, com o respeito às opiniõies contrárias, para que seha aplicado o redutor sobre as penas cominadas no preceito secundário do art. 12 da Lei n. 6368/76.

Diante desse cenário, surgiu o questionamento sobre o caráter hediondo do tráfico privilegiado, motivo pelo qual passou-se a dividir a doutrina e a jurisprudência sobre a temática em questão.

Por um longo espaço de tempo, os Tribunais Superiores tiveram entendimentos contrários e a favor do afastamento da hediondez do tráfico privilegiado. Nesse sentido, é de importância fazer um relato sobre os principais marcos jurisprudenciais sobre o tema, até chegar ao entendimento dos dias atuais.

O reconhecimento da hediondez do tráfico privilegiado era unânime no Superior Tribunal de Justiça. Em 13 de março de 2013, ao realizar o julgamento do RESP nº 1329088/RS, a Terceira Seção do STJ decidiu por unanimidade reconhecer o caráter hediondo do tipo previsto no artigo 33, §4º, da Lei 11.343/2006.

Tal fato culminou na edição da Súmula 512, no sentido de que a causa de diminuição de pena prevista no artigo 33, §4º, da Lei n. 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas.

A posição do Supremo Tribunal Federal não era diferente do STJ, até o ano de 2016. Durante esse período, o STF, em vários julgados, entendeu pelo caráter hediondo do tráfico privilegiado. Cita-se como exemplos, o HC nº 114.452/RS, o HC nº 118.577/MS e o HC nº 118.351/MS.

Em todos os julgamentos, o STF defendeu a hediondez do tráfico privilegiado sob o argumento de que a minorante do §4º não tratou de retirar a gravidade do fato praticado, mas existiu por questões de política criminal, para beneficiar o pequeno traficante.

Foi até que, no ano de 2016, no julgamento do Habeas Corpus nº 118. 533/MS, o Supremo, por maioria dos votos, concedeu a ordem e afastou a hediondez do tráfico privilegiado. A ministra Carmem Lúcia, em seu voto, assim declarou:

A própria etiologia do crime privilegiado é incompatível com a natureza hedionda, pois não se pode ter por repulsivo, ignóbil, pavoroso, sórdido e provocador de uma grande indignação moral um delito derivado, brando e menor, cujo cuidado penal visa beneficiar o réu e atender à política pública sobre drogas vigente154.

Essa guinada jurisprudencial por parte do STF resultou no cancelamento da Súmula 512, uma vez que o STJ seguiu o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao julgar o HC 457.419 e a PET 11.796, com o fito de uniformizar o novo entendimento do STF com a jurisprudência do STJ.

Mesmo com a mudança de posicionamento, existem críticos que defendem o reconhecimento da hediondez do tráfico privilegiado sob o argumento de que o legislador, quando previu a benesse do §4º, do art. 33, da Lei 11.343/06, pretendeu unicamente beneficiar – com redução da pena – os principiantes, ou seja, aqueles com histórico criminal favorável.

Isso porque a incidência da causa de diminuição não decorre do reconhecimento de menor gravidade da conduta praticada ou a existência de uma figura privilegiada do crime. Permanece a reprovabilidade da conduta delitiva por eles praticada, qual seja traficar substâncias ilícitas.

Contudo, em que pese a mudança de entendimento dos Tribunais Superiores que passou a considerar o afastamento do caráter hediondo do tráfico privilegiado, é necessário tratar o assunto sob a ótica da execução penal.

O que ocorre, é que em muitos casos, em sede sentença condenatória, os Magistrados não afastaram a hediondez do delito em comento. A sentença transitou em julgado e o sentenciado iniciou o cumprimento de sua pena.

Sabe-se que quanto aos crimes hediondos, os requisitos para concessão dos benefícios previstos na LEP (progressão de regime, livramento condicional, etc.) são diferentes dos requisitos dos crimes comuns.

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Nesse sentido, os sentenciados por crimes hediondos precisam cumprir no mínimo 2/5 de sua pena, se forem primários, ou 3/5 se forem reincidentes, para fins de progressão de regime. No mesmo norte, os sentenciados que desejam alcançar o benefício do livramento condicional deverão cumprir 2/3 de sua reprimenda, nos casos em que forem primários.

A partir daí, surge o questionamento acerca do afastamento ou não do caráter hediondo do tráfico privilegiado, mesmo havendo sentença condenatória transitada em julgado no sentido do reconhecimento da hediondez do referido delito.

Nesses casos, em que pese o entendimento do STJ e do STF, ressalta-se que, uma vez que a condenação do sentenciado transitou em julgado e não modificou a hediondez do crime em discussão, não pode o Juiz da Execução Penal e nem a instância superior reformarem a decisão, salvo em caso de revisão criminal.

Nestes termos, dispõe a LEP: “Art.185. Haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares”.

Sendo assim, tem-se que, uma vez sedimentada a natureza do caráter hediondo do crime do artigo 33, §4º, da Lei 11.343/06, a revisão feita pelo Juízo da Execução ofenderá a coisa julgada.

É sabido que a Constituição Federal consagrou o instituto da coisa julgada, para viabilizar a imutabilidade do decisum, a fim de garantir a segurança e certeza dos julgados.

Por esse motivo, para a concessão dos benefícios previstos na LEP, o sentenciado deve preencher os requisitos referentes ao crime hediondo, mesmo se tratando do crime de tráfico privilegiado.

Nesse sentido, colacionam-se alguns julgados recentes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

EMENTA: AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL - TRÁFICO PRIVILEGIADO - AFASTAMENTO DA HEDIONDEZ - IMPOSSIBILIDADE - OFENSA A COISA JULGADA - RECURSO NÃO PROVIDO. Se a condenação que reconheceu a hediondez do delito de tráfico de drogas privilegiado transitou em julgado, não há que se falar, em sede de execução, em alteração da natureza hedionda do referido crime, sob pena de ofensa à coisa julgada. V.V. I. A aplicação do §4º, do art. 33, da nova lei de droga, traz à baila a figura do tráfico privilegiado, que não está elencado no rol dos crimes hediondos ou a eles equiparados. Precedentes. (TJMG - Agravo em Execução Penal 1.0344.18.003761-8/001, Relator(a): Des.(a) Júlio César Lorens , 5ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 04/12/2018, publicação da súmula em 10/12/2018)

EMENTA: AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL - TRÁFICO PRIVILEGIADO - INDULTO DE PENAS - AFASTAMENTO DA HEDIONDEZ - IMPOSSIBILIDADE - OFENSA A COISA JULGADA - RECURSO PROVIDO. Se o acórdão que reconheceu a hediondez do delito de tráfico de drogas privilegiado transitou em julgado, não há que se falar, em sede de execução, em concessão do indulto de penas e consequente alteração da natureza hedionda do referido crime, sob pena de ofensa à coisa julgada. (TJMG - Agravo em Execução Penal 1.0024.15.028944-5/001, Relator(a): Des.(a) Júlio César Lorens , 5ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 04/12/2018, publicação da súmula em 10/12/2018).

EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES. EXECUÇÃO PENAL. TRÁFICO PRIVILEGIADO. RETIFICAÇÃO DO ATESTADO DE PENAS. INVIABILIDADE. HEDIONDEZ RECONHECIDA POR MEIO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA. COISA JULGADA. EMBARGOS NÃO ACOLHIDOS.
- Em observância ao instituto da coisa julgada e ao princípio da segurança jurídica, inviável é a retificação do atestado de penas para fazer constar como crime comum a reprimenda relativa à condenação por tráfico privilegiado se a hediondez foi reconhecida expressamente por meio do título judicial em execução, qual seja a sentença penal condenatória. (TJMG - Emb Infring e de Nulidade 1.0686.17.002934-8/002, Relator(a): Des.(a) Adilson Lamounier , 5ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 27/11/2018, publicação da súmula em 03/12/2018)

Desse modo, sempre que a hediondez do tráfico privilegiado não for afastada na sentença, não há que se falar no reconhecimento do delito como crime comum, sob o risco, como já dito, de ofensa à coisa julgada.

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Sobre a autora
Nathália Christina Rosa da Silva

- Bacharela em Direito. - Pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal. - Aprovada na OAB. - Atualmente, estagiária no Ministério Público de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Nathália Christina Rosa. Tráfico privilegiado: análise da hediondez do crime à luz da jurisprudência e a aplicação na execução pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5773, 22 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72934. Acesso em: 23 nov. 2024.

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