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Princípio da autonomia dos estabelecimentos empresariais

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15/06/2019 às 14:35
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3. Princípio da Autonomia dos Estabelecimentos Empresariais.

Ao contrário do que possa aparentar, o princípio da autonomia dos estabelecimentos empresariais não afasta a unidade patrimonial da pessoa jurídica, que, na condição de devedora/contribuinte/responsável, deve ser submetida, com todo o ativo do patrimônio social, por suas dívidas e obrigações.

Nem poderia ser de outra forma, pois os estabelecimentos empresariais não possuem personalidade jurídica distinta, sendo mera abstração para conferir às unidades autônomas e independentes nas relações jurídico-tributárias travadas praticidade para com a Administração Pública Tributária; trata-se de um instituto de direito material, ligado à questão do nascimento da obrigação tributária de cada imposto especificamente considerado e não para a finalidade de ser considerada como um “ente” ou “pessoa jurídica” distinta das demais. Afinal, “não se pode olvidar que, à luz da legislação comercial, sequer se discute que as dívidas decorrentes de relações privadas do estabelecimento com credores privados, são dívidas da própria sociedade. São relações jurídicas onde a sociedade participa como um todo e, nessa circunstância, todo o patrimônio da sociedade por elas responde, nos limites do contrato/estatuto social e do tipo societário escolhido, independente de esse patrimônio estar vinculado ao estabelecimento matriz ou filial”.[11]

  Nem o estabelecimento matriz, tampouco o estabelecimento filial[12] possuem personalidade jurídica, pois são considerados universo de bens de titularidade de uma pessoa. Pontes de Miranda ensina que quem possui a personalidade jurídica é a pessoa jurídica ligada e relacionada ao estabelecimento empresarial. Nem poderia ser diferente pois, no Brasil, apenas pessoas são titulares de direitos, ações, pretensões e exceções. Confira-se:

“Se a chamada filial não tem personalidade jurídica, falta o elemento de independência formal, e é de sucursal, ou de agência, que se trata. Quase sempre, por isso mesmo, as leis só se preocupam com o registo e os poderes das sucursais, dos estabelecimentos-ramos, Zweigliederlassungen, porque, para esses, não tendo eles, de regra, personalidade própria, é necessário que explicitamente se exija o registo. A filial tem de fazê-lo, porque tem de personificar-se; talvez mesmo já o tenha antes da empresa-mãe”.[13]  

A diferenciação entre essas duas espécies de estabelecimento - matriz e filial - não implica em maiores desdobramentos no que diz respeito à unidade patrimonial do empresário e tampouco justifica a separação patrimonial para fins de processo de execução. O empresarialista Fábio Ulhôa Coelho ensina:

“A sociedade empresária pode ser titular de mais de um estabelecimento. Nesse caso, aquele que ela considerar mais importante será a sede, e o outro ou outros as filiais ou sucursais (para as instituições financeiras, usa-se a expressão agência, para mencionar os diversos estabelecimentos). Em relação a cada um dos seus estabelecimentos, a sociedade empresária exerce os mesmos direitos, sendo irrelevante a distinção entre sede e filiais, para o direito comercial. Para os objetivos das regras de competência judicial, no entanto, ganha relevo a identificação da categoria própria do estabelecimento, porque a ação contra a sociedade empresária deve ser proposta no foro do lugar de sua sede, ou no de sua filial, segundo a origem da obrigação (CPC, art. 100, IV, a e b). Quando se trata, por  outro lado, de pedido de falência ou de recuperação judicial, o juízo competente será o do principal estabelecimento da sociedade devedora, sob o ponto de vista econômico, independentemente de ser a sede ou uma filial (LF, art. 3º). A distinção, por conseguinte, entre as duas espécies de estabelecimento do mesmo empresário (sede ou filial), abstraídos os aspectos pertinentes à competência judicial, não apresenta maiores desdobramentos para o direito (Ferreira, 1962, 6:30/42)”[14]

O artigo 11 da Lei Complementar artigo 11 da Lei Complementar 87/96, como visto, trata de relativizar os efeitos da autonomia conferida aos estabelecimentos empresariais ao estabelecer que todos os estabelecimentos de um mesmo titular respondem solidariamente pelo crédito tributário.

Nesse contexto, o Código Tributário Nacional preceitua em seu artigo 127, inciso II, que na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento.  O ilustre tributarista Hugo de Brito Machado[15] comenta que:

"2.2.4 O fato gerador do tributo e o domicílio eleito

Realmente, as normas dos incisos l e II do §1° do art. 127 são normas supletivas que se aplicam na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de seu domicilio tributário.

Importante, portanto, é a distinção entre a autonomia do estabelecimento, prevista em leis específicas como a do ICMS, por exemplo, e o domicílio tributário. Quando se diz que, para fins de determinação da ocorrência do fato gerador do ICMS, considera-se contribuinte cada estabelecimento da pessoa jurídica, se está dizendo apenas que a saída da mercadoria de um estabelecimento é fato gerador do imposto, ainda que não ocorra saída do bem do patrimônio da pessoa jurídica, porque se trata de simples transferência da mercadoria para outro estabelecimento. Mas não se está dizendo que o estabelecimento será necessariamente o domicílio do contribuinte. Não se está dizendo que a pessoa jurídica com vários estabelecimentos terá necessariamente vários domicílios tributários.

A idéia de domicílio está ligada à idéia de exercício de direitos, em sentido amplo como circunstância da personalidade que o domicílio é o que envolve direitos e deveres das partes nas relações jurídicas. Já a autonomia dos estabelecimentos, estabelecida na legislação do ICMS, está ligada apenas à questão do nascimento da obrigação tributária desse imposto, especificamente considerado. Mesmo em relação a um domicílio especificamente determinado para fins do ICMS, portanto, a idéia do domicílio não se confunde com a autonomia dos estabelecimentos”.

O princípio da autonomia dos estabelecimentos empresariais e sua extensão foi durante algum tempo tema controverso nos tribunais, causando insegurança jurídica aos contribuintes/responsáveis tributários.

O fato de uma sociedade empresária possuir vários estabelecimentos não transforma cada um desses estabelecimentos em uma pessoa jurídica distinta, com patrimônio diverso, responsabilidade separada e não-sujeitos à invasão executória. Embora possam ter Cadastros Nacionais de Pessoas Jurídicas com numeração distinta, tal não atribui personalidade jurídica em separado. Tal facilidade é com o escopo de praticidade contábil e administrativa, nada mais, como, aliás, é prática reconhecida pela Receita Federal do Brasil, nos termos do artigo 4º, da Instrução Normativa RFB 1.183/2011.

Em sentido similar, de que todos os estabelecimentos de titularidade do contribuinte devam responder pelas obrigações tributárias, foi o que entendeu a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial Repetitivo 1355812/RS, em ementa com o seguinte conteúdo:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. DÍVIDAS TRIBUTÁRIAS DA MATRIZ. PENHORA, PELO SISTEMA BACEN-JUD, DE VALORES DEPOSITADOS EM NOME DAS FILIAIS. POSSIBILIDADE. ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL COMO OBJETO DE DIREITOS E NÃO COMO SUJEITO DE DIREITOS. CNPJ PRÓPRIO DAS FILIAIS. IRRELEVÂNCIA NO QUE DIZ RESPEITO À UNIDADE PATRIMONIAL DA DEVEDORA. 1. No âmbito do direito privado, cujos princípios gerais, à luz do art. 109 do CTN, são informadores para a definição dos institutos de direito tributário, a filial é uma espécie de estabelecimento empresarial, fazendo parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica, partilhando dos mesmos sócios, contrato social e firma ou denominação da matriz. Nessa condição, consiste, conforme doutrina majoritária, em uma universalidade de fato, não ostentando personalidade jurídica própria, não sendo sujeito de direitos, tampouco uma pessoa distinta da sociedade empresária. Cuida-se de um instrumento de que se utiliza o empresário ou sócio para exercer suas atividades. 2. A discriminação do patrimônio da empresa, mediante a criação de filiais, não afasta a unidade patrimonial da pessoa jurídica, que, na condição de devedora, deve responder com todo o ativo do patrimônio social por suas dívidas, à luz de regra de direito processual prevista no art. 591 do Código de Processo Civil, segundo a qual "o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei". 3. O princípio tributário da autonomia dos estabelecimentos, cujo conteúdo normativo preceitua que estes devem ser considerados, na forma da legislação específica de cada tributo, unidades autônomas e independentes nas relações jurídico-tributárias travadas com a Administração Fiscal, é um instituto de direito material, ligado à questão do nascimento da obrigação tributária de cada imposto especificamente considerado e não tem relação com a responsabilidade patrimonial dos devedores prevista em um regramento de direito processual, ou com os limites da responsabilidade dos bens da empresa e dos sócios definidos no direito empresarial. 4. A obrigação de que cada estabelecimento se inscreva com número próprio no CNPJ tem especial relevância para a atividade fiscalizatória da administração tributária, não afastando a unidade patrimonial da empresa, cabendo ressaltar que a inscrição da filial no CNPJ é derivada do CNPJ da matriz. 5. Nessa toada, limitar a satisfação do crédito público, notadamente do crédito tributário, a somente o patrimônio do estabelecimento que participou da situação caracterizada como fato gerador é adotar interpretação absurda e odiosa. Absurda porque não se concilia, por exemplo, com a cobrança dos créditos em uma situação de falência, onde todos os bens da pessoa jurídica (todos os estabelecimentos) são arrecadados para pagamento de todos os credores, ou com a possibilidade de responsabilidade contratual subsidiária dos sócios pelas obrigações da sociedade como um todo (v.g. arts. 1.023, 1.024, 1.039, 1.045, 1.052, 1.088 do CC/2002), ou com a administração de todos os estabelecimentos da sociedade pelos mesmos órgãos de deliberação, direção, gerência e fiscalização. Odiosa porque, por princípio, o credor privado não pode ter mais privilégios que o credor público, salvo exceções legalmente expressas e justificáveis. 6. Recurso especial conhecido e provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ n. 8/08.” STJ, 1ª Seção, REsp 1355812/RS, Relator: Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 22/5/2013, DJe 31/5/2013.

A decisão acima sepultou a controvérsia então existente, como o entendimento em sentido contrário - TRF 3ª Região, AI 2010.03.00.007676-7, Relatora: Desembargadora Federal Consuelo Yoshida, DE 25/5/2010[16]; TRF 2ª, 3ª Turma Especializada, AG 200902010092698, Relatora: Desembargadora Federal Salete Maccalóz, e-DJF2 de 13/10/2010[17]; TRF 3ª Região, 4ª Turma, AI 00372448920104030000, Relator convocado Juiz Federal Paulo Sarno, e-DJF3 de 29/9/2011[18] – de que cada estabelecimento teria “autonomia” e não poderia ser seu “patrimônio” para garantir o cumprimento de obrigações de outro estabelecimento empresarial de mesma titularidade/propriedade.

De forma similar, já há algum tempo visando impedir que alegações como a de que por serem filiais, agências ou sucursais independentes, a CLT preceitua que serão considerados nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos da CLT (como a alegação de que as filiais, agências ou sucursais estejam desligadas da pessoa jurídica matriz) e que qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por seus empregados.  

O artigo 448 da CLT preceitua de forma similar: “A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados”. Assim, em processo trabalhista – de conhecimento ou de execução – inviável será alegar que os estabelecimentos empresariais são autônomos e independentes, pois não se desvinculam da pessoa jurídica a que estão ligados. Também há de ser prestigiado o princípio da primazia da realidade dos fatos, para que não ocorra eventual equívoco na subsunção dos fatos à norma jurídica aplicável.[19]

A alegação de que filial, sucursal ou agência de pessoa jurídica possua personalidade jurídica diversa não prevalece, uma vez que, além de não terem personalidade jurídica distintas, como regra geral, a mudança na propriedade ou a alteração na estrutura da empresa não prejudica os contratos de trabalho dos respectivos empregados, despersonalizando o empregador e valorando a continuidade do pacto laboral.[20]

Além disso, o trabalho em estabelecimentos diferentes, de uma mesma empregadora, não é argumento suficiente, por si só, para afastar a equiparação salarial e tampouco configuram grupo econômico ou a prestação de serviços a duas ou mais “pessoas jurídicas”, pois os estabelecimentos não ostentam tal qualificação jurídica. Por outro prisma, extinto o estabelecimento no qual atuava o membro da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes, a função não mais subsiste, pois não há mais razão para a representatividade. Nesse sentido são os entendimentos do Tribunal Regional do Trabalho do Estado da Bahia e das Minas Gerais, conforme ementas abaixo reproduzidas:

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EQUIPARAÇÃO SALARIAL. TRABALHO EM ESTABELECIMENTOS DIFERENTES. Laborando empregado equiparado e seu modelo no mesmo cargo com idênticas atribuições, a circunstância de o trabalho ser desenvolvido em lojas distintas não afasta, por si só, a possibilidade de equiparação salarial quando não há distinção no porte de cada estabelecimento.” TRT 5ª Região, 2ª Turma, Processo 0096500-59.2006.5.05.0033 RO, Relatora: Desembargadora Federal do Trabalho Dalila Andrade, DJ 3/4/2007.

RETIFICAÇÃO DE CNPJ. MATRIZ E FILIAL NÃO CONFIGURAM GRUPO ECONÔMICO. ARTIGO 789 DO NCPC. Matriz e filial não constituem pessoas jurídicas distintas - senão uma única empresa com diferentes estabelecimentos - requisito necessário para configuração de grupo econômico. Em verdade, a atribuição de números próprios de CNPJ justifica-se para fins meramente fiscais. Considerando a unidade patrimonial da pessoa jurídica e pautado no artigo 789 do NCPC, cabível a retificação do número de CNPJ da reclamada filial para o da matriz.” TRT 5ª Região, 3ª Turma, Processo 0010043-42.2014.5.05.0195, Relatora: Desembargadora Federal do Trabalho Marizete Menezes Correa, DJ 15/10/2018.

EXTINÇÃO GRADUAL DO ESTABELECIMENTO. MEMBRO DA CIPA. INDENIZAÇÃO ESTABILITÁRIA INDEVIDA. Nos termos da Súmula Nº 339, II, do TST, "a estabilidade provisória do cipeiro não constitui vantagem pessoal, mas garantia para as atividades dos membros da CIPA, que somente tem razão de ser quando em atividade a empresa. Extinto o estabelecimento, não se verifica a despedida arbitrária, sendo impossível a reintegração e indevida a indenização do período estabilitário". Ao teor da Súmula acima transcrita, a garantia de emprego do cipeiro somente tem razão de ser quando a empresa permanece em atividade. Compete ao membro da CIPA zelar por condições seguras de trabalho, o que perde o significado em caso de encerramento das atividades, ainda que de forma gradual.” TRT 3ª Região, 5ª Turma, RO 0010677-41.2016.5.03.0157, Relator: Desembargador Federal do Trabalho Manoel Barbosa da Silva, DEJT 14/02/2017.

ESTABILIDADE. MEMBRO DA CIPA. ENCERRAMENTO DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. DISPENSA NÃO ARBITRÁRIA. A garantia de emprego do membro da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) objetiva, em verdade, a proteção dos interesses dos trabalhadores que escolheram o empregado que os representa, não se constituindo, nesse passo, benefício pessoal do escolhido. Desse modo é que, uma vez extinto o estabelecimento no qual atuava o cipeiro, a função não mais subsiste, na medida em que não há mais razão para a representatividade dela decorrente.” TRT 3ª Região, 8ª Turma, Processo 0011340-28.2016.5.03.0112, Relator: Desembargador Federal do Trabalho Márcio Ribeiro do Valle, DEJT 11/9/2018.

Em suma: estabelecimentos empresariais não possuem personalidade jurídica, não se constituem em patrimônio em separado e devem eles suportarem os efeitos materiais de processos judiciais da titular da personalidade jurídica e em especial os atos de se submeter a uma execução.

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Sobre o autor
Horácio Eduardo Gomes Vale

Advogado Público em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALE, Horácio Eduardo Gomes. Princípio da autonomia dos estabelecimentos empresariais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5827, 15 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73268. Acesso em: 26 abr. 2024.

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