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Liberdade de expressão no Brasil e a instauração do Inquérito 4.781/DF pelo STF:

o surgimento velado de um Estado de exceção

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2 Revista Crusoé e O Antagonista reprimidos por atos isolados de Ministros 

Tudo isso inicia-se no dia 14 de março de 2019, quando o então presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Dias Toffoli, resolveu instaurar um inquérito para investigar a “existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi” e logo em seguida designou livremente o Ministro Alexandre de Moraes para conduzir os trabalhos do Inquérito, sem ter utilizado o sistema de sorteio para definir o que seria o juiz natural encarregado pela condução das investigações.

No dia 03 de abril de 2019, Marcelo Bahia Odebrecht como colaborador de Justiça apresentou esclarecimentos principalmente sobre codinomes em e-mails e em uma dessas cartas eletrônicas ele afirmou o seguinte. 

Refere-se a tratativas que Adriano Maia tinha com a AGU sobre temas envolvendo as hidrelétricas do Rio Madeira. "Amigo do amigo de meu pai" se refere a José Antonio Dias Toffoli. A natureza e o conteúdo dessas tratativas, porém, só podem ser devidamente esclarecidos por Adriano Maia, que as conduziu.

A revista Crusoé veiculou uma matéria no dia 13 de abril de 2019 intitulada de “O amigo do amigo de meu pai” expondo o documento citado acima, e afirmou que uma cópia teria sido remetida “à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, para que ela avalie se é o caso ou não abrir uma investigação sobre o ministro [Dias Toffoli].” Em seguida a Procuradoria-Geral da República emitiu uma nota alegando que não teria recebido o material citado na publicação da Crusoé e que não poderia confirmar sua veracidade. 

Ao contrário do que afirma o site O Antagonista [e revista Crusoé], a Procuradoria-Geral da República (PGR) não recebeu nem da força tarefa Lava Jato no Paraná e nem do delegado que preside o inquérito 1365/2015 qualquer informação que teria sido entregue pelo colaborador Marcelo Odebrecht em que ele afirma que a descrição “amigo do amigo de meu pai” refere-se ao presidente do Supremo Tribunal federal (STF), Dias Toffoli.

O Ministro Alexandre de Moraes que conduziu o Inquérito 4.781/DF tendo em vista a nota emitida pela Procuradoria-Geral da República proferiu uma decisão que ordenava a retirada da matéria mencionada do site O Antagonista e da revista Crusoé, devendo retirar também todas as postagens que tratassem sobre o assunto, sob pena de multa diária de cem mil reais. No mesmo dia o Ministro também ordenou que contas de redes sociais fossem bloqueadas por suposto “ataque às instituições”.

Em sua fundamentação para a decisão o Ministro alegou que a Constituição Federal consagra a plena liberdade de manifestação do pensamento, e que protege tal liberdade em seu duplo aspecto, o positivo que seria a exteriorização da opinião, bem como no aspecto negativo que seria a vedação da censura. Alexandre de Moraes sustenta que essa plena proteção à liberdade não impede a responsabilização a posteriori, como fica evidente no trecho abaixo.

A plena proteção constitucional da exteriorização da opinião (aspecto positivo) não significa a impossibilidade posterior de análise e responsabilização por eventuais informações injuriosas, difamantes, mentirosas e em relação a eventuais danos materiais e morais, pois os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas.

Desse modo, fica evidente que o Ministro define a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana como um direito que estaria acima da plena liberdade de exteriorização do pensamento. Entretanto, Alexandre de Moraes proferiu essa decisão sem ter pleno conhecimento acerca da matéria veiculada e dos documentos citados pela mesma, que logo em seguida ficou evidente que se tratava de papéis verídicos que já estavam com a Polícia Federal do Paraná e que estavam para ser encaminhadas à Procuradoria-Geral da República. 

A Decisão do Ministro causou estranhamento entre os Ministros da Suprema Corte brasileira que afirmaram, como o Ministro Marco Aurélio, que a decisão seria como uma “mordaça”, que seria um absurdo completo a retirada da matéria através de um meio de “censura”. A atitude foi vista como uma afronta e uma ação similar à censura, e a frase do célebre Rui Barbosa foi utilizada para retratar o momento “A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer.”.


3 O pedido da Procuradoria-Geral da República: Crise de identidade Judiciária

A própria Procuradoria-Geral da República através de um documento de sete páginas recomendou o arquivamento do Inquérito em questão e que a matéria da revista Crusoé pudesse voltar à circulação com “fundamento nos princípios do devido processo legal e do sistema penal acusatório”.

A Procuradora-Geral deixou evidente a crise identitária que existe no Poder Judiciário brasileiro, em que há uma confusão entre juízes que deixam sua função de julgador para a função de acusador e investigador, acumulando todas as funções em uma única pessoa, se tornando o juiz que investiga, acusa, julga e executa.

A Procuradora expressa, de forma clara, que a Constituição Federal, em seu artigo 129-I, definiu que o Ministério Público é o titular exclusivo da ação penal e que suas funções não são passíveis de delegação para um outro órgão. E isso finda por definir o sistema acusatório no Brasil, diferentemente do inquisitorial. Tal sistema contribui para a assegurar a credibilidade, confiança e afasta as arbitrariedades e excessos da concentração de poder no processo penal.

O sistema penal acusatório estabelece a instransponível separação de funções na persecução criminal: um órgão acusa, outro defende e outro julga. Não admite que o órgão que julgue seja o mesmo que investigue e acuse.

Também é uma crítica a forma como a condução do processo foi distribuída, deixando evidente que não houve impessoalidade na distribuição pois ao invés de ter sido através de sorteio entre os membros do Supremo Tribunal Federal, a distribuição foi feita através de “nomeação” em que o Presidente do Supremo, Dias Toffoli, entregou a condução ao Ministro Alexandre de Moraes.

Ademais, afirma que as decisões tomadas somente poderiam ter ocorrido se houvesse um pedido por parte do Ministério Público, já que essas “atitudes invadem a privacidade ou a intimidade dos indivíduos”, o que de fato não ocorreu, a Procuradoria-Geral não fez nenhum pedido e por causa disso solicitou que todos os atos realizados no Inquérito fossem prejudicados.

Fazendo uma clara distinção entre o juiz garante e o juiz investigador que deveria seguir o que está definido no Supremo Tribunal Federal. “No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Relator, aleatoriamente escolhido pelo sistema de distribuição regular, é o juiz natural, o juiz garante, responsável por decidir questões legais. Não é o juiz investigador.” Esse juiz investigador somente existia no sistema penal inquisitorial e que foi abolido com a promulgação da Constituição de 1988, que introduziu o sistema penal acusatório. Porém o que correu no Inquérito 4.781 foi o seguinte. 

Nesta perspectiva constitucional, de garantia do regime democrático, do devido processo legal e do sistema penal acusatório, a decisão que determinou de ofício a instauração deste inquérito, designou seu relator sem observar o princípio da livre distribuição e deu-lhe poderes instrutórios quebrou a garantia da imparcialidade judicial na atuação criminal, além de obstar acesso do titular da ação penal à investigação. Na sequência, os atos judiciais instrutórios da investigação e determinantes de diligências investigativas também ferem o sistema penal acusatório e a Constituição. São vícios insanáveis sob a ótica constitucional. 

Sem dúvida, o fato mais criticado gira em torno da escolha do ministro para conduzir o Inquérito, que não poderia um mesmo juiz que entende que um fato é criminoso ser também o que determina a instauração da investigação e designa o responsável para a condução da apuração, causando um sério dano à imparcialidade do juiz no processo.

Entretanto, o Ministro Alexandre de Moraes indeferiu integralmente o pedido de arquivamento por entender que o sistema penal acusatório deu ao Ministério Público a privatividade da ação penal pública, porém não concedeu essa função às investigações penais que devem permanecer com os delegados da Polícia Judiciária e “excepcionalmente, no próprio Supremo Tribunal Federal”.


4 ADPF 572: Um lembrete ao STF para a consolidação da liberdade

Um partido com representação no Congresso Nacional, denominado de REDE Sustentabilidade, propôs uma ADPF que recebeu o número 572, com o objetivo de garantir a liberdade da revista Crusoé e do site O Antagonista. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 572 inicia com uma importante frase de Ataíde Lemos que reforça o que foi dito acerca da liberdade de expressão como uma das maiores forças na luta para a manutenção da Democracia e faz uma importante reflexão, como é possível notar.

A liberdade de expressão é um dos grandes pilares da democracia, bem como é um direito fundamental para a transformação social e cultural, pois ela garante o direito à informação e formação de opinião da sociedade. Porém, ela é uma arma perigosa contra aqueles que detêm o poder e por isto eles a detestam.

O partido alega que a decisão do Ministro Alexandre de Moraes de ordenar a retirada da matéria sob pena de multa representou uma “clara afronta ao preceito fundamental” que seria a liberdade de poder se manifestar sobre o documento o qual se teve informação e de poder repassar aos leitores do jornal, já que se tratava de um assunto relevante envolvendo um servidor público. O partido também reforça o caráter da liberdade como um princípio basilar da democracia e do Estado de Direito.

Assim como o Ministro Luís Roberto Barroso já explicou, no momento em que proferiu seu voto na ADPF 548 e mostrou que existem três pontos que justificam que a liberdade seja reconhecida como um sobredireito, diz-se que os pontos seriam: 1º “O passado condena” referente ao histórico do país de censura; 2º A liberdade de expressão é um pressuposto para outros direitos e 3° A liberdade é um pressuposto para a democracia e a cidadania. Do mesmo modo entende o partido, alegando que a liberdade de imprensa é um meio de garantia do acesso à informação pela população e como uma garantidora ao exercício de outras liberdades e direitos.

Relembrou uma importante frase do Ministro Carlos Ayres Britto, proferida no momento do julgamento da ADPF 130 referente à lei de imprensa, na oportunidade o Ministro afirmou que a liberdade de imprensa constitui um bem da personalidade e que recebe a qualificadora de sobredireito.

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A liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos.

E ainda recorda a excelente análise do Ministro Celso de Mello que diz que “a censura governamental, emanada de qualquer um dos Três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público”.

Na ADPF 572, o partido REDE também lembra que se for constatada que houve extrapolações no exercício da liberdade de imprensa e se essas extrapolações causaram danos a outrem, a Constituição em seu artigo 5° incisos V e X asseguram mecanismo para a plena responsabilização e uma possível reparação decorrente do dano causado. Afirmando que em nenhum caso, o constituinte brasileiro permitiu que o Poder Judiciário censurasse previamente qualquer conteúdo editorial, devendo ordenar a retirada do conteúdo somente quando o devido processo legal e o contraditório fossem assegurados de forma plena.

O que ocorreu, de fato, é que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Dias Toffoli pôs o regimento interno da Suprema Corte acima das próprias normas constitucionais, agindo de forma autoritária e totalmente inconstitucional. Desse modo, o partido encerra requerendo a suspensão dos efeitos do despacho do Ministro Alexandre de Moraes.

Somente no dia 18 de abril de 2019, o Ministro Alexandre de Moraes, como relator do Inquérito 4.781/DF, emitiu uma decisão que revogou a anterior que determinou a retirada da matéria “O amigo do amigo de meu pai” do site O Antagonista e da revista Crusoé. Fez isso após a documentação referente à colaboração de Marcelo Odebrecht ter chegado ao gabinete do Ministro, ficando atestada a veracidade do documento.

O Ministro afirmou que os atos investigados pelo Inquérito são condutas criminosas que tiram a virtude da liberdade de expressão e a usam como um meio de defesa para que indivíduos possam cometer delitos contra os Ministros da Suprema Corte com o objetivo de provocar a instabilidade institucional, Alexandre de Moraes faz isso insinuando que há um esquema de financiamento e divulgação em massa “nas redes socais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado de Direito.”

Até que em determinado momento da decisão o Ministro retorna à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e expressa que repudia as “infundadas alegações” de que as decisões tomadas por ele estariam com a intenção de restringir a liberdade de expressão e o “sagrado direito de crítica”, o Ministro passa a ter o objetivo de demonstrar que esses dois elementos são essenciais para o pleno exercício da Democracia e contribuem para o fortalecimento das instituições democráticas brasileiras.

O Ministro faz uma excelente lembrança sobre o caso New York v. Sullivan, que firmou o entendimento norte-americano acerca da crítica contra servidores públicos ao afirmar que é “dever do cidadão criticar tanto quanto é dever do agente público administrar” e Alexandre de Moraes continuou com o intuito de reafirmar a importância dessa prática.

Também lembrou a defesa de Oliver Holmes no caso Abrams v. United States, oportunidade em que Holmes defendeu a ideia do free marketplace of ideas, que defende o que já foi citado nesse artigo referente ao livre debate entre opiniões distintas que poderão ser aceitas ou rejeitas pela sociedade, também com a possibilidade de serem desacreditadas ou ignoradas.

Para concluir, o Ministro afirma que a revista agiu em um “exercício de futurologia”, por terem antecipado o que seria feito pelo Ministério Público Federal do Paraná, afirmando que os jornalistas poderiam induzir a conduta desse órgão. Alexandre de Moraes afirma que como os documentos foram verificados estava cessada a necessidade de manutenção da medida que impedia a circulação da matéria da revista e do site.

Poderia ser dito que o Ministro proferiu excelentes palavras e relembrou grandes ensinamentos em defesa da liberdade, principalmente como um instrumento de crítica contra agentes públicos, tendo a capacidade de auxiliar no bom funcionamento da máquina estatal. Porém, após ter tomado uma medida cautelar tão extrema que ordenou a retirada de uma matéria jornalística, fica um tanto quanto sobre suspeita se suas palavras condizem com seus atos e se suas decisões são influenciadas por casos específicos ou se trata-se de decisões uniformes, no mesmo entendimento em defesa da liberdade de expressão. 

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Sobre o autor
Francisco Sérgio Sarmento Ramos

Atualmente é Estagiário Voluntário do 7° Juizado Especial Cível e Criminal da Capital. Graduando em Direito pelo Centro Universitário Tiradentes (UNIT). Capacitado para atuar como Mediador Social de Conflitos. Tem Experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Constitucional e História do Direito. Tem realizado pesquisas principalmente com os seguintes temas: Constituição Imperial de 1824, Constituinte de 1823, Leis Imperiais do Brasil, Leis Reais de Portugal, Liberalismo e Sistema Monárquico em suas mais variadas vertentes. Idealizador e fundador do Centro de Coworking em Pesquisas Jurídicas Professor Francisco Sales. Realiza trabalhos dentro de movimentos políticos, como os liberais LIVRES, Students for Liberty, Frente Pela Liberdade e NOVO, e do monárquico Círculo Monárquico Brasileiro/AL. Além de realizar trabalhos sociais no Instituto Professor Francisco Sales. Contato: [email protected] ou (82) 99605-7134.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Francisco Sérgio Sarmento. Liberdade de expressão no Brasil e a instauração do Inquérito 4.781/DF pelo STF:: o surgimento velado de um Estado de exceção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5816, 4 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74307. Acesso em: 23 abr. 2024.

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