A necessidade de relativização da impenhorabilidade do bem de família quando de elevado valor como meio de proteção ao direito fundamental de tutela executiva efetiva

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02/06/2019 às 18:08
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4 A PROPORCIONALIDADE COMO MEIO DE SOLUÇÃO DO CONFLITO

 Afirma Maidame (2008, p. 127), que a proporcionalidade deve vincular o operador do direito a sempre buscar uma ponderação de resultados. A proporcionalidade deve ser compreendida como um meio que deve ser utilizado como forma de “controle de “justicidade” ou “eticidade” das normas, possibilitando, por método comparativo de direitos fundamentais, retirar a eficácia de uma norma desarrazoada, sem o rompimento do ordenamento jurídico”.

A proporcionalidade pode ser desdobrada em três elementos: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade propriamente dita.

No que se refere a adequação, segundo afirma Silva (2005), quando uma medida estatal implica intervenção no âmbito de proteção de um direito fundamental, essa medida deve ter um fim constitucionalmente legítimo, que em geral é a realização de outro direito fundamental. Deve-se indagar se a medida adotada é adequada para realizar o objetivo perseguido.

Já a necessidade, conforme leciona Ávila (2005, p. 122), envolve a análise da existência de meios que sejam alternativos àquele inicialmente escolhido pelo Poder Legislativo ou Poder executivo, e que possam promover da mesma forma o mesmo fim sem restringir na mesma intensidade os direitos fundamentais afetados. Aponta que:

Nesse sentido, o exame da necessidade envolve duas etapas de investigação: em primeiro lugar, o exame da igualdade de adequação dos meios, para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim; em segundo lugar, o exame do meio menos restritivo, para examinar se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados.

E o terceiro elemento do postulado da proporcionalidade, denominado de proporcionalidade em sentido estrido, segundo o autor mencionado, exige para seu exame a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais. Neste caso, é preciso indagar se as vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio. Desta forma, é preciso questionar se o grau de importância do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos fundamentais.

Sobre o tema, Silva (2014, p. 174) afirma que além de verificar se a medida adotada é adequada para fomentar o objetivo que persegue (adequação) e se não há outra medida que seja tão eficiente quanto e que restrinja menos o direito atingido (necessidade) é preciso realizar uma última análise que se refere à proporcionalidade em sentido estrito.  E como justificativa para este último teste o autor afirma:

A razão de ser desse último teste é facilmente explicável: se fossem suficientes apenas os dois primeiros exames - adequação e necessidade -, uma medida que fomentasse um direito fundamental com grande eficiência mas que restringisse outros vários direitos de forma muito intensa teria que ser considerada proporcional e, portanto, constitucional. Isso porque, além de  adequada, a medida é necessária.

Neste ponto está o cerne desta pesquisa, como afirma Maidame (2008, p. 132), o processo de execução é palco de um conflito de interesses que resulta em colisão de direitos fundamentais. Em virtude da humanização do processo executório o credor acaba suportando restrições a seus direitos fundamentais. Há casos em que essas restrições são justificáveis em virtude dos interesses em jogo, mas é preciso que o sacrifício suportado pelo credor seja na medida do necessário, devendo sempre levar em conta os seus direitos fundamentais. Acrescenta o autor:

Decisões que mantêm certas impenhorabilidades que garantem não o mínimo existencial digno, mas o luxo e as comodidades modernas do devedor, não se sustentam porque não têm razão “sensivelmente mais forte” do que os legítimos interesses do credor, buscados no processo de execução. Por isso, a jurisprudência e o regime de impenhorabilidade merecem revisão, na medida em que ofendem o direito de igualdade, pois mantêm benefícios incompatíveis com os direitos em conflito. Frise-se que a dignidade da pessoa humana está diretamente ligada a questão da igualdade e que o credor também tem dignidade.

Para o doutrinador é  preciso que os  tribunais  reconheçam a  autoridade outorgada pela Constituição para estabelecer estas correções da lei com fundamento no direito, “na medida em que a concretização dos direitos fundamentais, mormente em época de enorme erosão moral no parlamento depende da conduta independente do Judiciário, nos limites de sua nobre competência”.  (MAIDAME, 2008, p. 132). Nesse sentido afirma, ainda, que:

(...)o que se defende é que o magistrado, na dialética do caso concreto, é melhor aparelhado que o legislador para aferir se a penhora do bem X ou Y atenta contra a dignidade do devedor ou contra as garantias do credor, devendo, por isso mesmo, chamar a si esta responsabilidade trabalhando com o ferramental que a Constituição e a teoria dos direitos fundamentais oferecem na consecução desta tarefa, que dignificaria o processo de execução e toda sociedade brasileira. (2008, p. 133)

No que diz respeito ao bem de família, o autor afirma que fica evidente que a Lei nº 8009/90 não procurou proteger os fracos, já que pôs a salvo da penhora bens imóveis sem qualquer limitação de valor.  Propõe o doutrinador, então a “correção da lei “ pelo magistrado com o objetivo de adequá-la aos interesses em jogo.

Ao tratar sobre o tema Didier (2017, p. 811) segue a mesma linha de pensamento de Maidame (2008), afirmando que a impenhorabilidade de certos bens é uma restrição ao direito fundamental do credor à tutela executiva. E que se justifica como meio de proteção da dignidade do executado. “São regras que compõem o devido processo legal, servindo como limitações políticas à execução forçada”. E justamente por implicar limitação a um direito fundamental, é necessário que sua aplicação se submeta ao método da ponderação, a partir da análise das circunstâncias do caso concreto.

Segundo o doutrinador o legislador ao estabelecer o rol dos bens impenhoráveis já realiza um juízo prévio de ponderação entre os interesses envolvidos, optando pela proteção do direito do executado em detrimento do direito do exequente. Mas apesar dessa constatação as hipóteses de impenhorabilidade podem não incidir em determinados casos concretos, em que seja verificada a desproporção entre um direito fundamental e a proteção do outro. Para o autor é preciso que o órgão faça o controle de constitucionalidade in concreto da aplicação das regras de impenhorabilidade, e, se, sua aplicação se revelar inconstitucional, por não ser razoável ou ser desproporcional, deve afastá-la e construir a solução adequada ao caso concreto.

Especificamente em relação ao bem de família de alto valor, Didier (2017, p. 813) traz como exemplo a seguinte situação: um imóvel de altíssimo valor e um crédito que corresponda a quarenta por cento do valor do imóvel. A venda judicial do imóvel, no caso, segundo o autor, permitiria não só satisfazer o direito do credor como, ainda, garantir ao executado, com a sobra, a aquisição de outro imóvel, que lhe preserve a dignidade. Neste caso, a opção pela interpretação literal da regra, que proíbe a penhora deste bem, protegeria exclusivamente o direito de devedor de forma desnecessária já que a relação executado/valor do bem permitiria a aquisição de outro imóvel após a entrega do dinheiro ao exequente. Pensar de forma diferente seria interpretação contrária aos preceitos da contemporânea hermenêutica constitucional que determina a necessidade de, nos casos de conflito entre direitos fundamentais, dar interpretação que mais adequadamente proteja ambos. Afirma o doutrinador:

Enfim, são em princípio constitucionais as regras que restringem a responsabilidade patrimonial, impedindo a penhora de certos bens. Em um Estado Democrático que busca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF /88), a restrição à penhora de certos bens apresenta-se como uma técnica processual tradicional e bem aceita pela sociedade contemporânea. Mas essas regras não estão imunes ao controle de constitucionalidade in concreto e, por isso, podem ser afastadas ou mitigadas se, no caso concreto, a sua aplicação revelar-se não razoável ou desproporcional.

Entretanto, como ressalta, justamente por proteger direitos fundamentais as regras de impenhorabilidade também poderão ser ampliadas em virtude das peculiaridades do caso visando tutelar de forma adequada esses mesmos direitos.

Corroborando o posicionamento acima exposto Guerra (2003 citado por Santos 2015 p. 83) afirma que apenas o modelo dos direitos fundamentais pode fornecer um caminho seguro que ao mesmo tempo oriente e justifique o desenvolvimento judicial do direito, que para o autor ocorre quando se permite ao juiz que ora deixe de aplicar normas expressamente postas, ora aplique outras não expressamente positivadas, mas inseridas no âmbito semântico de algum direito fundamental. Acrescenta que:

O primeiro dado que se impõe ao intérprete é que a impenhorabilidade de bens do devedor imposta pela lei consiste em uma restrição ao direito fundamental do credor aos meios executivos (...) ...as restrições aos direitos fundamentais não são, em princípio, ilegítimas. Devem, no entanto, estar voltadas à realização de outros direitos fundamentais e podem, por isso mesmo, estar sujeitas a uma revisão judicial que verifique, no caso concreto, se a limitação, ainda que inspirada em outro direito fundamental, traz uma excessiva compressão ao direito fundamental restringido.

Importante destacar, ainda, a posição de Marinoni (2017, p. 747) que vê exagero no elenco de bens impenhoráveis. Para o autor a proteção dada ao devedor acaba por prejudicá-lo, já que o comércio exige maiores garantias para realização de compras e financiamentos. Propõe, por essa razão, limitação a extensão dada à impenhorabilidade, restringindo-a aos bens imprescindíveis à manutenção do padrão médio       de vida da entidade familiar. Quanto a proteção indiscriminada do bem de família o doutrinador faz duras críticas, como se vê a seguir:

Altamente criticável, ademais, é a previsão da impenhorabilidade indiscriminada de imóveis residenciais. Nos termos da lei brasileira – sem paralelo no direito comparado – qualquer imóvel residencial, não importando o seu valor, é impenhorável sempre, a não ser em hipóteses específicas. Claramente, isso só se presta a estimular o devedor de má-fé, sem nenhuma relação à preservação de garantias fundamentais como a dignidade da pessoa humana ou a proteção do patrimônio mínimo. Se não há dúvida de que se deve preservar da responsabilidade patrimonial um mínimo para uma existência digna, também é certo que fazer impenhorável um imóvel, por exemplo, de dimensões extraordinárias, cujo valor pode chegar a vários milhões de reais é certamente um despropósito.

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Pelos motivos expostos, afirma Marinoni (2017), que o Brasil possui um sistema defasado e ilógico e para se tornar mais justo depende do trabalho jurisprudencial.

Tartuce (2017), entretanto, é contrário aos argumentos acimas apontados, ao afirmar não ser possível a penhora do bem de família mesmo quando de alto valor. Para ele o bem de família é um dos temas mais controvertidos no Direito Brasileiro e uma das questões é justamente quanto a existência ou não de um teto para o valor do imóvel que deve ser considerado como impenhorável. A dificuldade está, segundo o autor, em responder indagações como: O que é considerado bem de alto valor? Qual o patamar monetário a ser utilizado? O valor venal do imóvel, a quantia estipulada pelo mercado imobiliário, o critério pessoal do credor ou do julgador? Ressalta que o Brasil é um país continental e para cada região do país os critérios e padrões relacionados tanto a valores necessários para a sobrevivência digna quanto aqueles ligados ao mercado imobiliário são absolutamente diversos.

Para o doutrinador o parâmetro de fixação daquilo que seja bem de elevado valor, ao contrário do pensamento adotado pelos doutrinadores anteriormente citados, deve ser fixado pelo legislador e não pelo julgador, devendo tal limitação ser inserida de forma expressa na Lei nº 8009/90. Nesse sentido, afirma ainda, que não é possível negar que o Novo Código de Processo Civil trouxe um abrandamento quanto às regras de impenhorabilidade, prova disso é a norma que reconhece a possibilidade de penhora de pensões, salários e rendimentos em montantes superiores a cinquenta salários mínimos. Mas no que se refere ao bem de família não houve nenhuma inovação quanto a um teto de proteção, perdendo o legislador a chance de fazê-lo, e por tal razão não cabe ao julgador tal tarefa sob o risco de sacrificar a proteção da moradia, direito social fundamental amparado pelo art. 6º da Constituição Federal.

Outros autores entendem que constitui fator de igualdade a não limitação do valor do imóvel, já que penhorar o bem apenas de alguns viola o princípio da isonomia.

 Nesse sentido, Santos (2003 citado por Lustosa 2016 p. 11) não admite a penhora do imóvel residencial suntuoso, alegando que agiu corretamente o legislador em virtude da impossibilidade de diferenciar qual padrão de família é merecedor da proteção do benefício, sob pena de incidir em indesejável casuísmo arbitrário, ofendendo o princípio da isonomia.

 Contrariando tal linha de pensamento Lustosa (2016) afirma que a insegurança jurídica devido à subjetividade da noção do que seria excessivamente luxuoso deve ser mitigada por uma fundamentação adequada da decisão que autorizar a penhora. Neste sentido, determina que o juiz deve demonstrar que no caso concreto o saldo preservado sob a cláusula de impenhorabilidade é suficiente para garantir ao executado o necessário à manutenção de uma vida digna, sob pena de sujeitar-se à revisão pelo sistema recursal. O autor, destaca ainda, o papel importante que pode ser desempenhado pela doutrina no estabelecimento de parâmetros objetivos que sejam capazes de balizar o intérprete na identificação do patrimônio mínimo a ser resguardado em cada caso.

A partir do exposto não se nega que o regime da impenhorabilidade do bem de família é instituto jurídico eficaz para proteção do patrimônio mínimo necessário à garantia da dignidade do devedor. O questionamento se dá apenas quando esse bem é de elevado valor, já que neste caso, entende-se que a sua dignidade não será violada ao se garantir no caso concreto o direito fundamental do credor à tutela executiva efetiva. Assim, no conflito entre à dignidade do executado e o direito à tutela efetiva do exequente, realizando-se o sopesamento destes princípios através do postulado da proporcionalidade, deve-se garantir o direito ao crédito.

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