I - O HABEAS CORPUS DE OFÍCIO
Lênio Luiz Streck (Sim, existe um dever fundamental de conceder habeas corpus de ofício!) assim ensinou:
“Tenho referido que HC não deve ser submetido aos parâmetros que refogem da característica do remédio heroico. Se ensinamos e aprendemos que o HC pode ser escrito em papel de pão e até com sangue, como não o conhecer? É evidente que existem instâncias para a impetração. Mas, uma vez preenchido esse requisito, o HC deve ser apreciado e, se for o caso, concedido, mesmo que de ofício.
Uma manifestação do advogado Kakay, há meses, já chamava a atenção para o ponto aqui desenvolvido, que se entrecruza com o dito na primeira parte desta coluna: “Infelizmente, o Judiciário cada vez mais diminui o escopo do HC, nosso único instrumento contra a prisão, a favor da liberdade. Como explicar para quem está preso que o decreto de prisão não foi validado, mas o STJ, o Tribunal da Cidadania, optou por não analisar o mérito por existir uma súmula que diz que não cabe HC contra negativa de liminar?”.
Eis a questão. O uso da Súmula 691 (por que será que ainda não é vinculante? Curioso, não?) é a mais típica manifestação do que a doutrina chamada de “jurisprudência defensiva” (na verdade, com o perdão da má palavra, jurisprudência acusativa), dando poder discricionário para que os HCs sejam fulminados. Como superar os obstáculos (teratologia e flagrante ilegalidade) da S-691? O que é teratologia? Quem já conceituou isso? E é possível fazer isso, como se fosse um conceito lexicográfico? E o que é flagrante ilegalidade? Tem de ser flagrante? “Só” ilegalidade não basta?
Eis aí a importância da concessão de HC de ofício, coisa que já se fazia desde o governo Vargas. Por que retrocedemos? Por que não conhecer um remédio para a liberdade que pode ser escrito com sangue em papel de pão? Defendo a concessão de HC de ofício, assim como a concessão de liberdade no bojo de qualquer ação, porque o status libertatis não tem preço.
Só assim o Judiciário pode superar um terrível gap do sistema, isto é, a falta de prazo para a prisão. Hoje o preso provisório não depende de uma criteriologia; depende, sim, de visões de mundo do aplicador da lei. Nos tempos de minha faculdade e de MP, eram 81 dias. E, com pequenas variações, funcionava. Hoje há prisões de mais de ano em qualquer canto do país. Pior: um HC é negado com base na S-691 e, mais tarde, julgado na instância de onde proveio o pedido de liminar fulminado pela Súmula, a ordem chega ao primeiro grau ou Tribunal. E o paciente já está condenado. Então se diz: considero prejudicada a ordem. Bem assim.
Esquematicamente, o caminho espinhoso, hoje, é assim: prisão provisória gera HC, cuja liminar é negada no TJ-TRF; essa negativa gera HC para STJ; este denega invocando a S-691; isso gera HC para STF, que também usa a S-691. Compreendem a necessidade da concessão de ofício?
Vendo por outro lado, de lege ferenda, urgentemente necessitamos regular o prazo máximo de prisão. Temos uma “teoria sobre quesitos do carnaval”, mas não temos critérios para prisão e concessão de HC. E, em regra, ignoramos o dever de conceder o writ de ofício.”
Observe-se do artigo 654, parágrafo segundo do CPP:
“os Juizes e os Tribunais tem competência para expedir de oficio ordem de habeas corpus, quando no curso do processo verificarem que alguém sofre ou esta na iminência de sofrer coação ilegal”
Ensinou Eduardo Espinola FIlho(Código de processo penal anotado):
“Para a concessão da ordem, na hipótese, não há necessidade de processo especial, a autoridade judiciária serve-se dos próprios elementos do processo, que corre sob sua jurisdição, eis que a prova nele colhida, a convença da efetividade, ou da ameaça real e iminente, de constrangimento ilegal de que seja paciente, o réu, o ofendido, o querelante, testemunha, advogado”.
Realmente o parágrafo segundo do artigo 654 do CPP preconiza que “os juízes e os tribunais têm competência para expedir de oficio ordem de habeas corpus, quando no curso do processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. Tal enunciado legal consubstancia o chamado habeas corpus de ofício, que é uma medida para fazer cessar constrangimento ilegal.
Não se trata apenas de remédio para obtenção de relaxamento de prisão ou liberdade provisória. Pode vir para cessar ilegalidade diante de um processo eivado de nulidade.
O habeas corpus pode ter lugar ex officio, isto é, o juiz ou o tribunal pode concedê-lo sem que haja necessidade de propositura prévia. É uma exceção ao privilégio que o juiz não é permitido agir de ofício. Na prática, o juiz ou o tribunal ao tomar ciência de prisão ou ato ameaçador da liberdade de locomoção através do exame inquérito policial, ação penal ou recurso criminal, declara a ilegalidade e concede a ordem de habeas corpus.
Guilherme de Souza Nucci (Habeas Corpus (Rio de Janeiro: Ed. Forense 2014) afirmou ser o HC de ofício “um dever do magistrado para zelar pela liberdade do cidadão”.
No caso da chamada operação lava jato podem ser indicadas as seguintes decisões:
Vale a pena conferir que utilizaram o HC por ofício: Rcl 2.636/RJ, Pleno, relator o ministro Gilmar Mendes, DJ de 10/2/06; Rcl 21.649/SP-AgR, Segunda Turma, Alberto Zacharias ToronDJe de 18/3/16; Rcl 1.047/AM-QO, Pleno, relator o ministro Sidney Sanches, DJ de 18/2/2000; e Rcl 412/SP, Tribunal Pleno, relator o ministro Octavio Gallotti, DJ de 26/2/93.
Observe-se, pois, a extrema importância da medida em prol da defesa da liberdade diante de coação nitidamente ilegal.
II - INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E PROVA ILÍCITA: CASO CONCRETO
Pois bem.
Em reportagem postada no site do O Globo, datada de 10 de junho de 2019, há preocupante informação:
“Mensagens atribuídas ao procurador Deltan Dallagnol, do Ministério Público Federal (MPF), e ao ministro da Justiça Sergio Moro, divulgadas ontem pelo site The Intercept Brasil, mostram os dois combinando atuações enquanto trabalharam na operação Lava-Jato. A reportagem ainda cita mensagens entre os procuradores nas quais eles teriam discutido no aplicativo Telegram uma maneira de barrar a entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizada por um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) . Neste domingo, a força-tarefa de Curitiba divulgou nota para rebater a reportagem, dizendo que “seus membros foram vítimas de ação criminosa de um hacker que praticou os mais graves ataques à atividade do Ministério Público, à vida privada e à segurança de seus integrantes”.
As conversas que mostram um juiz discutindo táticas de acusação e apresentando uma testemunha contra os acusados são corrosivas.
O entendimento de que o combate à corrupção justifica o desrespeito a algumas regras pode fazer muito sucesso nas ruas, mas não deveria passar das portas dos gabinetes.
Mas, será dito que se trata de prova ilícita.
Vedam-se provas obtidas por meios ilícitos (principio da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos), algo inerente ao Estado Democrático de Direito que não admite a condenação obtida pelo Estado a qualquer preço.
A proibição da prova ilícita surgiu na Suprema Corte americana. Ao interpretar essa proibição, a Corte delimitou o sentido e o alcance da norma, para estabelecer exceções às regras de exclusão, como a da admissibilidade da prova ilicitamente obtida por particular, a da boa-fé do agente publico e a da causalidade atenuada.
Na Alemanha, essa proibição foi objeto de preocupação do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha. Ali fixou-se a chamada teoria das três esferas, que gradua a privacidade e qualifica juridicamente as investidas estatais contra elas para fins de produção da prova. Por ela, apenas a prova produzida com invasão das estruturas mais íntimas da vida privada, como o monólogo, seriam inaproveitáveis; as provas produzidas com invasão das camadas menos profundas da intimidade podem ser aproveitadas, se a intensidade da invasão for proporcional à gravidade do crime investigado.
No Brasil, a Constituição de 1988 prevê, entre as garantias fundamentais, que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. Mas a inadmissibilidade da prova ilícita não exige que ela seja interpretada como garantia absoluta, nem afasta que seja submetida a testes de proporcionalidade. Aliás, a prova ilícita que favoreça o réu é admissível. A reforma processual de 2008, nessa linha de entendimento, permite o aproveitamento da prova ilicitamente obtida quando corroborada por fonte independente ou quando sua descoberta inevitavelmente ocorreria.
Há uma corrente de criminalistas que entende que as provas ilegais podem ser usadas para defender o réu. Se elas demonstram a parcialidade do julgador, podem ajudar a soltar o condenado, que é o que querem para o ex-presidente Lula.
A doutrina, na linha de Andrey Borges de Mendonça (Nova Reforma do Código de Processo Penal. Primeira Edição. Ed. Método, 2008. P. 172) abarca a possibilidade de utilização da prova ilícita em favor do acusado e, majoritariamente, aponta para a possibilidade de sua utilização, mesmo se obtida por meio de violação legal ou constitucional, na hipótese de ser ela o único meio de prova da ilegalidade cometida contra o acusado.
Antônio Scarance Fernandes (Processo Penal Constitucional. Sexta Edição. Editora RT. P. 83-84) defende a possibilidade da prova ilícita pro reo com fundamento no princípio da proporcionalidade. No mesmo sentido, se posicionam Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior, invocando a teoria do sacrifício, segundo qual, no conflito entre a garantia processual e o direito à liberdade, esse deveria prevalecer.
Ademais, observe-se que, dentro de um encontro fortuito de provas, a maneira como o atual ministro da Justiça e o procurador reagiram à divulgação das conversas, sem contestar o teor das afirmações e defendendo o comportamento adotado na época, aponta que o conteúdo é fidedigno e que ele pode servir de base para reverter decisões da Lava Jato, por exemplo, contra o ex-presidente Lula.
Dito isso, lembra-se que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal poderá ter um encontro marcado com o caso e, se for o caso, utilizar-se do remédio do habeas corpus de oficio, uma vez que se entender, de ofício, que as provas demonstram que há suspeição da parte do juiz julgador, e seu propósito de além de julgar, agir como investigador, na busca da condenação do ex-presidente, no caso abordado, poderá o Judiciário, por seu órgão competente para tal, reconhecer vício de nulidade, em evidente prejuízo para o acusado e anular a condenação referenciada por conta ainda do princípio da causalidade de modo que todos os atos decisórios poderiam nele ser anulados, inclusive, a sentença. Para tanto, seria necessário suscitar a lesão ao contraditório, ao principio do juiz natural, de forma a permitir a declaração da nulidade absoluta pelo reconhecimento de suspeição.
III - UM HABEAS CORPUS EM TRAMITAÇÃO
O colegiado deverá julgar, no dia 25 de junho do corrente ano, outro habeas corpus, em que a defesa do ex-presidente questiona o trabalho do ex-juiz Sergio Moro, atual ministro da Justiça.
O habeas corpus foi apresentado em novembro do ano passado, dias após Moro aceitar ser ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Os advogados afirmam que, ao aceitar o cargo, Moro revelou “parcialidade e motivação política”.
Nesse julgamento referenciado o Supremo Tribunal Federal poderá examinar de ofício a prova envolvendo o diálogo abordado, de forma, inclusive, se entender que há ilegalidade cometida contra o réu, conceder ou não habeas corpus de ofício.
Ao final, acentuou reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo, em seu site no dia 12 de junho de 2019, quando se diz:
"Em 2013, ao julgar o caso habeas corpus do doleiro Rubens Catenacci no caso do Banestado, o ministro votou pela suspeição do então juiz Moro, que monitorou voos de advogados do acusado para garantir sua prisão. À época, os advogados também pretendiam anular o processo sob o argumento de parcialidade do magistrado na condução do caso.
Celso de Mello ficou isolado naquele dia. Ao divergir dos colegas, o decano defendeu que a sucessão de atos praticados por Moro à frente da 2ª Vara Federal de Curitiba (PR) não foi compatível com o princípio constitucional do devido processo legal.
De acordo com os registros nos arquivos do STF, o ministro afirmou que a conduta do então juiz fugiu “à ortodoxia dos meios que o ordenamento positivo coloca a seu dispor” e gerou sua inabilitação para atuar na causa, atraindo a nulidade dos atos por ele praticados.
O posicionamento de Celso de Mello em 2013 também foi resgatado pelo defesa de Lula e incorporado ao habeas corpus de suspeição de Moro em dezembro do ano passado."
IV - O JUIZ INQUISIDOR
A imparcialidade do julgador é uma garantia constitucional implícita. Se a Constituição de 1988 não enunciou de forma explícita o direito a um juiz imparcial, temos que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 (artigo 14, I), assim como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de dezembro de 1969, garantem o direito a um juiz ou tribunal imparcial, como se lê do artigo 8.1, que integra o nosso ordenamento jurídico, uma vez que foi promulgado internamente por meio do Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992, o que ainda ocorreu com a Convenção Americana dos Direitos Humanos, cuja promulgação se deu por meio do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992.
Observo, aliás, que, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343/SP, entendeu o Supremo Tribunal Federal que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal.
Há uma incompatibilidade lógica entre tais funções cumuladas, a de investigar e de julgar. Não há dúvida que assim agindo o juiz, quando, na fase processual, já está contaminado pela parcialidade.
A imparcialidade do juiz o levará a formar sua convicção apenas na fase do contraditório, como se vê da exegese do artigo 155 do Código de Processo Penal, diante da chamada persuasão racional.