Capa da publicação A inconstitucionalidade da MP 886 sobre demarcação de terras indígenas
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A inconstitucionalidade da MP 886

24/06/2019 às 15:42
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A MP que transfere a tarefa de demarcação de terras indígenas da Funai ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento viola a Constituição e a jurisprudência do STF, além de desrespeitar o processo legislativo.

Discute-se sobre o teor da Medida Provisória 886, publicada no dia 19 de junho do corrente ano pelo governo federal. A medida altera o texto da Lei 13.844/2019 aprovado pelo Congresso Nacional, e devolve a tarefa de demarcação de terras indígenas em todo o país ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

A nova MP reitera disposição existente na Medida Provisória 870, rejeitada pelo Congresso Nacional em maio deste ano. Com isso, viola a Constituição e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), além de desrespeitar o processo legislativo. Aponta na nota pública o coordenador da 6ª Câmara, subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha: “De acordo com a Constituição Federal, é proibida a reedição, numa 'mesma sessão legislativa', de medida provisória que tenha sido rejeitada ou tenha perdido a eficácia. Embora a Medida Provisória 870 tenha sido enviada ao Congresso na sessão legislativa anterior, ela foi rejeitada na atual sessão legislativa, enquadrando-se, portanto, na vedação constitucional”, destaca o texto.

É mister lembrar que Rondon criou, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois transformado em Fundação Nacional do Índio (Funai). Foi a figura central na demarcação das primeiras terras indígenas, como o Parque Nacional do Xingu.

A Constituição de 1988 reconheceu aos povos indígenas os direitos “originais” às terras que tradicionalmente ocupam, assim direitos à organização social, costumes, línguas e crenças próprias. A União foi incumbida de demarcar as terras e proteger os direitos dos indígenas (artigo 231).

É sabido que setores diretamente interessados na exploração das florestas, rios e, especialmente, riquezas minerais existentes nas terras indígenas, jamais se conformaram com a forma robusta como os direitos dos índios foram assegurados pela Constituição de 1988. Com o objetivo de frustrar esses direitos, especialmente às terras originais, o governo editou, em 1º de janeiro de 2019, a Medida Provisória 870 que, entre outras iniciativas, transferiu para o Ministério da Agricultura a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas, que antes pertencia à Funai.

A Constituição prevê uma regra (por muitos chamada de “princípio”) da irrepetibilidade, que visa preservar o parlamento de ter que novamente rever posicionamentos já tomados em votações durante o processo legislativo. A irrepetibilidade pode ser encontrada nos seguintes artigos:

Artigo 60, parágrafo 5º: A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.Artigo 62, parágrafo 10: É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. (Incluído pela Emenda Constitucional 32, de 2001)

Artigo 67: A matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional.

Entenda-se que razões de Estado não podem ser invocadas para legitimar o desrespeito à supremacia da Constituição da República.

Aliás, Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, Emenda Constitucional n. 1/69, tomo III, 177, 2ª edição) já ensinava que:

Os projetos rejeitados no órgão que o iniciou, ou no órgão revisor,e os que, vetados, não forem aprovados por outros órgãos, ou os que os elabora sozinho, não podem, de regra, na mesma sessão legislativa, ser renovados. Podem ser renovados em sessão convocada? Cremos que sim, Nâo se trata da mesma sessão legislativa. As convocações supõem indicação da matéria que há de ser objeto dos trabalhos legislativos; e o fato de se ter convocado, o que só o presidente da República pode resolver, ou resultar da iniciativa do terço de uma das câmaras, de si só justifica que se volte a discutir a matéria do projeto rejeitado. A maioria absoluta só é de exigir-se para renovar o projeto, na mesma sessão legislativa.

Mas, o artigo 67 da Constituição somente se refere à rejeição de projeto de lei e não de rejeição prévia de medida provisória, como se lê de Marco Aurélio Greco (Medidas Provisórias, pág. 53, item III, 1991).

Observo aqui a lição de Clèmerson Merlin Clève (Medidas Provisórias, 2ª edição, pág. 85) quando disse que:

Com efeito, o presidente da República está impedido de veicular, por meio de instrumento normativo contingencial, matéria já apreciada, em sede de juízo abstrato incidente sobre medida de idêntica natureza, com censura de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal. A reiteração da medida reprovada substanciaria afronta ao Poder Judiciário e violação ao princípio da separação e harmonia entre os poderes da República.

Do mesmo semelhante, a medida provisória não pode incursionar, na mesma sessão legislativa, sobre matéria objeto de medida anterior expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional. A vedação, decorrência também do princípio da separação de poderes, está implícita no artigo 67 da Lei Fundamental: "a matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das casas do Congresso Nacional". É verdade que a medida provisória não se confunde com o projeto de lei. Nâo é menos verdade, entretanto, que a medida provisória deve ser convertida em lei formal no prazo de trinta dias. Consequência da providência cautelar é a deflagração do projeto de lei de conversão. Rejeitada medida anterior, despido do poder de iniciativa, estará o presidente da República impossibilitado de apresentar ao Congresso Nacional nova medida com análogo conteúdo.

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Observe-se, outrossim, a linha plenária no Supremo Tribunal Federal definida no julgamento da ADI nº 293/DF, Relator ministro Celso de Mello(RTJ 146/707 - 708), onde se lia que " a medida provisória não pode incursionar, na mesma sessão legislativa, sobre matéria objeto de medida anterior expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional. A vedação decorreria também do princípio da separação de poderes, está implícita no artigo 67 da Lei Fundamental".

Observe-se que o texto constitucional trata a sessão legislativa - correspondente às reuniões semestrais do Congresso Nacional, que se verificam de 15 de fevereiro a 30 de junho, de 1º de agosto a 15 de dezembro, conforme dispõe o artigo 57 da CF como período legislativo, denominado sessão legislativa, dentro de uma legislatura, que corresponde ao período completo do mandato parlamentar.

A sessão legislativa engloba sessões ordinárias e extraordinárias, as primeiras ocorrentes na sessão legislaitva e as demais fora dela.

Para o ministro Sepúlveda Pertence, não há dúvida "de que seria inválida a reedição da medida provisória revogada, na mesma sessão legislativa, tanto quanto o seria a reedição da medida provisória reeditada ou caduca". No sistema vigente, o presidente da República há de optar: Se a pendência de medida provisória anterior obsta a votação de alguma proposição subsequente. Ou mantém a pauta bloqueada e, assim, inviabiliza a aprovação rápida da proposta subsequente. Ou revoga a medida provisória, desobstrui (STF, ADInMC 2.984/DF, relatora ministra Ellen decisão de 4 de setembro de 2003).

Como se vê é nítida a inconstitucionalidade da recente medida governamental noticiada.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A inconstitucionalidade da MP 886. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5836, 24 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74917. Acesso em: 22 dez. 2024.

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