1. INTRODUÇÃO
A partir da década de 1960, passaram a ser questionados com mais ênfase os postulados da sociedade moderna liberal – pautada, desde a Revolução Industrial, na acumulação de riqueza e no investimento em automação tecnológica – que tinham impacto direto sobre o meio ambiente. O desenvolvimento econômico começou a ser concebido sob o viés da conservação ambiental, sobretudo ante a constatação da finitude dos recursos naturais usuais.
Inicialmente defendido em debates científicos, o princípio do desenvolvimento sustentável logo passou a ser consagrado em diplomas internacionais e incorporado ao ordenamento constitucional e legal de vários países, tendo, atualmente, posição de destaque no direito ambiental-constitucional brasileiro.
Ora, é inegável no Brasil que o direito ambiental se encontre relacionado com o direito dos povos indígenas, uma vez que grande parte das terras indígenas se superponham ou se entrelacem com áreas de proteção ambiental. É necessário reconhecer, inclusive, que os povos indígenas desempenham importante papel histórico na conservação dos recursos naturais, de sorte que, com políticas públicas adequadas, em muito podem contribuir com o primado do desenvolvimento sustentável, dados os seus saberes e práticas tradicionais.
Nesse passo, caberia ao Estado, nos termos consignados no Princípio 22 da Declaração do Rio firmada em 1992, “reconhecer e apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e interesses dessas populações e comunidades, bem como habilitá-las a participar efetivamente da promoção do desenvolvimento sustentável”.
Dentro desse contexto, buscando conciliar sustentabilidade e multiculturalismo, construiu-se a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI –, que figurará como objeto do presente estudo, desenvolvido com vistas a analisar a adequação desta Política Nacional de Gestão em Terras Indígenas com os conceitos de sustentabilidade e respeito aos direitos indígenas.
Para tanto, desenvolver-se-á o artigo em três etapas: a primeira, voltada a traçar os contornos teóricos quanto à gestão ambiental e o desenvolvimento sustentável; a segunda, buscando relacionar o direito ambiental, indígena e o sócioambientalismo; e a terceira especificamente voltada à análise dos principais pontos do PNGATI.
2. GESTÃO AMBIENTAL E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Nas últimas décadas, com o notório agravamento da crise ambiental mundial, evidenciada por fenômenos naturais como a destruição da camada de ozônio e o aquecimento global, ligou-se um alerta para o perigo inerente à gestão desqualificada do bem ambiental, de sorte que o crescimento ecômico - antes pautado, desde a Revolução Industrial, na acumulação de riquezas e evolução das teconologias -, passou a ser visto sob outro prisma: o da conservação do meio ambiente, quebrando-se a premissa de que os recursos naturais seriam infinitos.
Com esse novo paradigma, surgiu o princípio do desenvolvimento sustentável, embrionado na Conferência de Estocolmo Sobre o Meio Ambiente Humano (1972), na qual firmada a Declaração sobre o Meio Ambiente, que, dentre os vários princípios ali estabelecidos, delineou o desenvolvimento sustentável nos seguintes termos:
Princípio 13: A fim de conseguir uma gestão mais racional dos recursos e, por conseguinte, melhorar o ambiente, os Estados devem adotar uma abordagem integrada e coordenada do seu planejamento do desenvolvimento, a fim de assegurar que o desenvolvimento seja compatível com a necessidade de proteger e melhorar o ambiente em benefício de sua população.
Mais adiante, aludido princípio foi expressamente definido, pela primeira vez, no Relatório “Nosso Futuro Comum” – também denominado “Relatório Brundtland” –, elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1987), como “o desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades”.
Seguindo essa tendência, a Constituição Federal de 1988, inovando na ordem constitucional, tratou de forma detida e precisa do meio ambiente, dedicando-lhe um capítulo específico (Título VIII, Capítulo VI, art. 225), elevando-o à categoria de direito fundamental e disciplinando-o em vários outros dispositivos esparsos (arts. 5º, LXXIII; 23, VI; 24, VI, VIII; 129, III; 170, VI; 174, § 3º; 186, II; 200, VIII; 220, § 3º, II).
Em sequência, diversas normas internacionais consolidaram o princípio, conferindo-se-lhe posição destacada, como a Declaração do Rio (1992), e, recentemente, o relatório “O caminho para a dignidade até 2030: acabando com a pobreza, transformando todas as vidas e protegendo o planeta”, elaborado por Ban Ki-Moon, Secretário-Geral das Nações Unidas, como síntese dos trabalhos da agenda sustentável pós-2015, com dezessete objetivos ligados à sustentabilidade.
Atualmente, despeito de a sustentabilidade constituir verdadeiro “princípio estruturante” do direito ambiental-constitucional (CANOTILHO, 2010), não se trata, contudo, de um conceito puramente ambiental, mas sim multidimensional, com reflexos econômicos, sociais, éticos e jurídico-políticos (FREITAS, 2016, p. 61).
Trata-se de um princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente incluso, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem estar (FREITAS, 2016, p. 41).
E, como norma-princípio constitucional que é, a ele se aplicam os tradicionais princípios de interpretação da Constituição Federal, notadamente o princípio da unidade, pelo qual as normas constitucionais devem ser analisadas em um sistema unitário, afastando-se aparentes contradições (CANOTILHO, 2003, p. 226).
Assim, a sustentabilidade irradia seus efeitos a todos os ramos do direito - no que o professor CANOTILHO (2010) denomina "dimensão jurídica irradiante" da juridicidade ambiental -, influenciando todo o ordenamento, pelo que FREITAS (2016, p. 139) defende a existência de um “direito fundamental à sustentabilidade multidimensional, que irradia efeitos para todas as províncias do Direito, não apenas para o Direito Ambiental, de sorte que o próprio sistema jurídico como que se converte em Direito da Sustentabilidade”.
Nessa ordem de ideias, é inegável que o direito ambiental destacadamente irradia seus efeitos e se interfluencia com o direito indígena, com o qual detém pontos de convergência e de divergência, impondo-se, neste último caso, uma perfeita harmonização, por força do citado princípio constitucional da unidade.
3. RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INDÍGENA E O SOCIOAMBIENTALISMO
Assim como o fez com o direito ambiental, a Constituição Federal de 1988 inovou e quebrou paradigmas relacionados ao direito indígena, dedicando-lhe capítulo específico (Título VIII, Capítulo VII), abandonando a perspectiva assimilacionista – que pautava até o próprio Estatuto do Índio (Lei 6.001/73, arts. 3º e 4º) – e implantando um novo modelo multiculturalista, adequado à realidade multiétnica brasileira.
Com efeito, sob o viés assimilacionista ou integracionista, objetivava-se integrar /incorporar os índios à sociedade envolvente/dominante, revelando-se uma situação de provisoriedade da condição de povo diferenciado a eles atribuída. Tanto é assim que se conferia à União, nas Constituições anteriores à de 1988 (salvo a de 1937), a competência para legislar sobre “a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”.
Agora, sob o viés constitucional multicultural, são expressamente reconhecidos aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas (art. 231, caput, CF), consideradas como tais as terras por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (art. 231, §1º, CF).
Nesse diapasão, é constitucionalmente reconhecida a coexistência de culturas dentro de um mesmo Estado, as quais se interfluenciam sem qualquer pretensão assimilacionista. De modo mais específico, confere-se aos índios o “direito de serem índios”, proporcionando-lhes viver livremente de acordo com sua organização social, usos, costumes e tradições. A propósito, destacam FEIJÓ e SILVA (2013, p. 7) que:
“Neste novo cenário político e social introduzido pelo Estado Constitucional se desenvolveu a ideia de multiculturalismo, consistindo no reconhecimento da diversidade de culturas no mundo que coexistem e se autoinfluenciam. No dizer de Boa Ventura de Souza Santos, “o termo ‘multiculturalismo’ generalizou-se como modo de designar diferenças culturais em um contexto transnacional e global”. Compreendeu-se que os diversos povos que vivem em seus costumes próprios, reproduzindo as suas tradições milenares, se autorreconhecendo como segmento diferenciado da sociedade envolvente, merecem o direito à preservação de sua singularidade sociocultural, posto que sem ela perderiam a sua identidade enquanto povo, fator indissociável da preserva-ção de sua dignidade humana”.
Assim, concluem as referidas autoras (2013, p. 8) que o multiculturalismo está incorporado nas constituições pós-modernas, figurando como verdadeiro direito fundamental, eis que inarredável da proteção à dignidade humana dos povos indígenas.
Nada obstante, alerta Basso (2014, p. 7) que o multiculturalismo não pode ser visto como mero conceito, afigurando-se mais adequado tratá-lo como um “projeto”, no qual “o reconhecimento das diversidades culturais passa a compor as metas e políticas de um determinado Estado-nação, naquilo que Keith Banting e Will Kymlicka (2006, p. 1) denominam políticas multiculturais”. Exige-se uma postura estatal ativa, com promoção de políticas públicas de reconhecimento dos direitos indígenas.
E, nessa perspectiva de interligação cultural e efetivação do multiculturalismo, ganha especial relevo o socioambientalismo, reconhecendo-se o direito fundamental indígena a uma condição socioambiental de vida (SILVEIRA, 2009, p. 29).
Deveras, é nítido que, via de regra, comunidades indígenas, em diferentes graus, “mantém um relacionamento mais harmonioso com a natureza que a civilização hegemônica do ocidente”; o indígena “se coloca dentro do ambiente em condições de igualdade e de respeito com os outros organismos vivos, assim como se submetem ao normal funcionamento dos sistemas cósmico e terrestre” (SILVEIRA, 2006, p. 14).
A relação entre os indígenas e suas terras vai muito além de qualquer interesse econômico. “Para muitas etnias, a terra assume um caráter central em seus mitos religiosos, correspondendo a uma figura divina, da qual tudo provém” (BASSO, 2014). Deveras, conforme destacou o Ministro Ayres brito, no julgamento da Pet. 3.388/RR (Caso Raposa Serra do Sol):
“viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios (...). Espécie de cosmogonia ou pacto de sangue que o suceder das gerações mantém incólume (...). As terras, então, a assumir o status de algo mais que útil para ser um ente. A encarnação de um espírito protetor. Um bem sentidamente congênito, porque expressivo da mais natural e sagrada continuidade etnográfica, marcada pelo fato de cada geração aborígine transmitir a outra, informalmente ou sem a menor precisão de registro oficial, todo o espaço físico de que se valeu para produzir economicamente, procriar e construir as bases da sua comunicação linguística e social genérica. Nada que sinalize, portanto, documentação dominial ou formação de uma cadeia sucessória. E tudo a expressar, na perspectiva da formação histórica do povo brasileiro, a mais originária mundividência ou cosmovisão. (...) (destaquei)”.
Assim, afigura-se imperioso reconhecer o papel fundamental das comunidades indígenas na gestão ambiental sustentável, com base em seus conhecimentos e práticas tradicionais. Nossa “civilização hegemônica do ocidente” em muito tem a aprender, afigurando-se indispensável essa interligação cultural para, a um só tempo, fortalecer a autodeterminação dos povos indígenas e preservar o meio ambiente.
A propósito do tema, destaca-se o Princípio nº 22 da Declaração do Rio (1992):
As populações indígenas e suas comunidades, bem como outras comunidades locais, têm papel fundamental na gestão do meio ambiente e no desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos e práticas tradicionais. Os Estados devem reconhecer e apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e interesses dessas populações e comunidades, bem como habilitá-las a participar efetivamente da promoção do desenvolvimento sustentável
Ainda internacionalmente, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas é expressa quanto à necessária harmonização da sustentabilidade com os direitos indígenas, destacando, em seu preâmbulo, que “o respeito aos conhecimentos, às culturas e às práticas tradicionais indígenas contribui para o desenvolvimento sustentável e equitativo e para a gestão adequada do meio ambiente”; prevendo mais adiante, de forma complementar, em seu artigo 25, que:
Os povos indígenas têm o direito de manter e de fortalecer sua própria relação espiritual com as terras, territórios, águas, mares costeiros e outros recursos que tradicionalmente possuam ou ocupem e utilizem, e de assumir as respon-sabilidades que a esse respeito incorrem em relação às gerações futuras.
Do mesmo modo, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – promulgada no ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto nº 5.051/2004 –, em seu artigo 15.1, pontua que “os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos”, destacando que “esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados”.
De fato, possuem as comunidades indígenas “um enorme potencial para a conservação dos recursos naturais, tendo suas populações importante papel na manutenção da biodiversidade brasileira” (SILVEIRA, 2009, p. 28).
Os dados do Ministério do Meio Ambiente, colhidos no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) deixam essa constatação assente, na medida em que, conforme histórico de desmatamento na Amazônia Legal, no período de 2004 a 2016, os desmatamentos em áreas indígenas representaram, em média, cerca de 2,5% do desmatamento total na Amazônia Legal, sendo que, no ano de 2016, essa porcentagem foi de apenas 1,3%, afigurando-se oportuno aqui ressaltar, conforme bem lembram BRITO e BARBOSA (2015), que boa parte dessa degradação não é provocada pelos indígenas, eis que “as terras indígenas, nos últimos anos, têm sofrido constantes prejuízos ambientais decorrentes de desmatamentos ilegais, da instalação irregular de madeireiras ao seu redor e, principalmente, da presença constante de atividades agropecuárias no entorno das aldeias”.
Nesse passo, denota-se que a conservação da biodiversidade e a proteção das culturas indígenas não podem ser vistos como objetivos contraditórios/antagônicos, mas sim complementares.
A propósito, conforme dados apresentados pela FUNAI em 2013, na cartilha “Plano de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas: orientações para elaboração”, “a superfície total das terras indígenas com limites definidos corresponde a 12,64% do território nacional”, reforçando, ante os índices acima, seu “papel estratégico na conservação da biodiversidade e na manutenção de funções ecossistêmicas”.
Porém, se é certo que os povos indígenas manejam seu território com base nos conhecimentos regidos por suas tradições culturais, apresentando os mais altos índices de preservação ambiental em suas terras, por qual razão se afiguraria necessária a elaboração de políticas públicas específicas voltadas à gestão ambiental em terras indígenas? A resposta, segundo Bavaresco e Menezes (2014, p. 10),
(...) É que as terras indígenas, na atualidade, estão sendo pressionadas de várias formas: pelo avanço de atividades agropecuárias de propriedades rurais em seus entornos, pelas obras de infraestrutura (estradas, barragens, portos) e o avanço das áreas urbanas, para citar algumas das pressões externas. Ao mesmo tempo, no interior das terras indígenas, o número de pessoas e de aldeias está aumentando, e os recursos, antes abundantes, estão diminuindo e podem não ser suficientes para garantir a qualidade de vida de suas comunidades. Os jovens estão caçando menos, as roças e atividades extrativistas, em muitos casos, estão sendo substituídas por produtos comprados nas cidades próximas. O crescimento da população e a existência de limites, somados à pressão crescente exercida no entorno das terras indígenas, tem transformado os territórios indígenas em verdadeiras ilhas, que se tornam alvo de invasões para retirada de recursos que estão desaparecendo rapidamente. O aumento das necessidades de bens e serviços externos, como a compra de alimentos e vestuário, a incorporação das escolas e postos de saúde nos contextos indígenas, também provocam alterações significativas nos modos de vida dos povos indígenas, refletindo em novas formas de organização do espaço e das atividades produtivas e cotidianas, bem como no usufruto e na gestão do meio ambiente. (...)
Diante de tantas transformações, cada vez mais se afigura indispensável pensar novas estratégias visando a sustentabilidade nas terras indígenas, garantindo uma gestão sustentável naqueles territórios, com políticas públicas específicas voltadas àqueles povos, formuladas a partir da interinfluência entre os saberes indígenas e a ciência não indígena, isto é, combinando-se práticas sustentáveis indígenas com os estudos técnicos “não indígenas”, sem pretensão assimilacionista.
O diálogo entre diferentes formas de conhecimentos, sobretudo de conhecimentos indígenas locais e de conhecimentos acumulados nos moldes da ciência ocidental é um aspecto desejável para melhorar a efetividade de ações de gestão ambiental nas terras indígenas. No entanto, é importante considerar nesse processo de diálogo, que a base de construção de estratégias de gestão deve privilegiar os conhecimentos locais e que, conhecimentos externos (como aqueles propostos pela ciência ocidental ou outros atores) sejam, antes de tudo, apropriados pelos povos indígenas de acordo com sua lógica e racionalidade específicas (SMITH e GUIMARÃES, 2010).