4. A ATUAL POLÍTICA NACIONAL DE GESTÃO AMBIENTAL E TERRITORIAL EM TERRAS INDÍGENAS - PNGATI (Decreto nº 7.747/2012)
Ante a citada necessidade de políticas públicas específicas voltadas à gestão ambiental sustentável em terras indígenas, movimentos sociais e ambientalistas passaram a pressionar governos e instituições nesse sentido, originando-se, em 1991, o PPG7, um programa piloto para a proteção de florestas tropicais no Brasil, fruto de acordo entre Brasil, União Europeia, Banco Mundial e G7 (GUIMARÃES, 2014, p. 10).
Nesse PPG7, ainda segundo GUIMARÃES (2014, p. 10), foram desenvolvidos projetos de sustentabilidade direcionados às populações locais e à preservação das florestas tropicais, o que contribuiu para a construção, no ano de 2001, dos chamados Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI), os quais tinham por objetivo “melhorar a qualidade de vida dos povos indígenas da Amazônia Legal brasileira, fortalecendo sua sustentabilidade econômica, social e cultural, em consonância com a conservação dos recursos naturais de seus territórios” (GUIMARÃES, 2014).
Na esteira, sobrevieram outros projetos no mesmo sentido – a exemplo do programa “Carteira Indígena” e do projeto “GEF Indígena" –, até que, no ano de 2008, o Ministério da Justiça – representado pela FUNAI –, o Ministério do Meio Ambiente e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), conjuntamente deram origem ao Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para elaboração da nova Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas – PNGATI.
Com efeito, referido Grupo de Trabalho Interministerial foi instituído por meio da Portaria Interministerial dos Ministérios da Justiça e do Meio Ambiente nº 276, de 12/09/2008, posteriormente substituída pela Portaria Interministerial nº 434/2009, de 09/12/2009, afigurando-se interessante destacar, de logo, em tais atos normativos, a preocupação estatal com a efetiva participação indígena no processo.
Nesse sentido, o GTI, em 2008, foi composto pelos seguintes membros: 3 (três) da FUNAI, 3 (três) do Ministério do Meio Ambiente e 6 (seis) representantes indígenas (sendo dois do Norte e um de cada outra Região) indicados pelos membros indígenas da Comissão Nacional de Política Indigenista – CNPI. Igualmente, em 2009, foi o GTI composto por: 2 (dois) da FUNAI, 2 (dois) do MMA, 1 (um) do ICMBio, 1 (um) do IBAMA e 6 (seis) indígenas (dois do Norte e um de cada outra Região) indicados pelo CNPI.
Ainda, previu-se no art. 3º da Portaria Interministerial nº 276/2009 e no artigo 2º, § 4º, da Portaria Ministerial nº 434/2009, que, na elaboração da referida proposta de formulação da PNGATI deveriam ser observadas as seguintes diretrizes:
I - participação e controle social dos Indígenas no processo de elaboração e implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas;
II - fortalecimento dos sistemas indígenas de conservação ambiental;
III - proteção dos saberes e conhecimentos tradicionais indígenas;
IV - desenvolvimento da gestão etnoambiental como instrumento de proteção dos territórios e das condições ambientais necessárias à reprodução física e cultural e ao bem-estar das comunidades indígenas; e
V - valorização das identidades étnicas e de suas organizações sociais.
A partir dessas disposições, ficou latente a preocupação estatal originária com o direito de consulta e efetiva participação dos povos indígenas na construção de suas políticas públicas, em estrita observância ao disposto em normas internacionais, como a Declaração do Rio de 1992 (v.g. princípio 22) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (v.g. artigo 18 e 19), destacando-se, de modo mais enfático, o disposto na Convenção 169 da OIT (Decreto 5.051/04):
Artigo 6º
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.
Deveras, a Convenção 169 da OIT prevê o "direito de consulta prévia como ex-pressão da dimensão participativa que se relaciona com o princípio da autodetermina-ção dos povos e componente da sua própria dignidade" (ROLAND e FARIA JÚNIOR, 2012), sendo essa previsão devidamente observada na construção do PNGATI, não apenas sob o viés puro da “consulta”, mas sim da participação efetiva, construtiva, respeitando-se o multiculturalismo e a autodeterminação dos povos indígenas, bem como refletindo o protagonismo destes na busca pela efetivação de seus direitos.
E tal postura se manteve, até que, após sete reuniões do GTI e cinco consultas públicas regionais (CASTRO, 2013), finalmente foi instituída a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI, por meio do Decreto nº 7.747, de 05/06/2012, com 15 (quinze) artigos e o objetivo primordial de:
(...) garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultura das atuais e futuras gerações dos povos indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural, nos termos da legislação vigente (ARTIGO 1º).
Noutros termos, tem o PNGATI, de modo bem definido/claro, o objetivo magno de promover a sustentabilidade ambiental nas terras indígenas, de forma compatível com o multiculturalismo, respeitando a autodeterminação dos povos indígenas na implementação de medidas voltadas à sustentabilidade ambiental em suas terras.
As diretrizes fixadas no artigo 3º do Decreto deixam assente essa constatação, todas elas voltadas ao reconhecimento da autodeterminação dos povos indígenas, com respeito aos seus costumes e tradições (v.g. incisos I, II), conferindo-lhes um protagonismo na gestão (v.g. inciso III) e participação ativa (v.g. inciso XI – “direito de consulta”), valorizando-se suas organizações e o uso de seus conhecimentos na conservação e recuperação ambientais (v.g. incisos II, III, IV, IX, XII), para assegurar o meio ambiente saudável e o uso sustentável dos recursos naturais imprescindíveis à reprodução física e cultural dos povos indígenas (v.g. incisos IV, V, VI, X, XIII), inclusive os isolados, de recente contato ou em área urbana (v.g. incisos VII, VIII).
Busca-se, como dito alhures, a interinfluência entre os saberes indígenas e a ciência não indígena, com a combinação das práticas sustentáveis indígenas com os estudos técnicos formulados pelos “não indígenas”, sem pretensão assimilacionista e, ao contrário, grande preocupação multiculturalista, sempre priorizando a participação indígena e o protagonismo desses povos na gestão ambiental de suas terras.
A partir dessas premissas é que se desenvolvem quaisquer atividades voltadas à política ambiental em comento, firmando o artigo 4º Decreto, nessa ordem, sete eixos de atuação: (1) proteção territorial e dos recursos naturais; (2) governança e participação indígena; (3) áreas protegidas, unidades de conservação e terras indígenas; (4) prevenção e recuperação de danos ambientais; (5) uso sustentável de recursos naturais e iniciativas produtivas indígenas; (6) propriedade intelectual e patrimônio genético; (7) capacitação, formação, intercâmbio e educação ambiental.
Cada um desses eixos traz objetivos específicos, que devem ser seguidos para se alcançar o objetivo geral da PNGATI (artigo 1º), merecendo maior destaque na análise da compatibilização entre os conceitos de sustentabilidade e de multicultura-lismo (sem desconsiderar a importância dos demais), as previsões dispostas nos eixos 1 (proteção territorial e dos recursos naturais), 2 (governança e participação indígena) e 5 (uso sustentável de recursos naturais e iniciativas produtivas indígenas).
Com efeito, o eixo 1, com 10 (dez) objetivos específicos, volta-se à proteção das terras indígenas, com "mecanismos e instrumentos que vão desde a recuperação de áreas que estão desmatadas às ações em parceria com os órgãos de fiscalização e controle, para evitar e combater as invasões e a retirada ilegal de recursos naturais” (BAVARESCO; MENEZES, 2014, p. 18), enfatizando a necessária participação dos povos indígenas nas ações de proteção ambiental e territorial das terras indígenas.
Sequencialmente, no eixo 2, com 6 (seis) objetivos, valoriza-se o protagonismo indígena na busca pela concretização da sustentabilidade, garantindo-se a participação ativa dos povos indígenas na governança e decisão referentes à implementação da PNGATI, “assim como incentiva a participação qualificada dos indígenas em fóruns, comitês, comissões e redes que tenham como objetivo discutir o desenvolvimento de determinada região” (BAVARESCO; MENEZES, 2014, p. 21).
Por seu turno, o eixo 5, com 10 (dez) objetivos específicos, “visa fortalecer o uso sustentável dos recursos naturais e as iniciativas produtivas dos povos indígenas” (BAVARESCO; MENEZES, 2014, p. 30), pontuando que as atividades produtivas tradicionais devem ser preservadas, mas também podem ser fortalecidas por meio do desenvolvimento de novas tecnologias e abordagens, ou seja, por meio da citada interconexão entre saberes indígenas e a ciência não indígena, viés este que, nos termos já destacados neste trabalho, bem traduz o conceito de multiculturalismo.
Conforme se observa, portanto, há, ao menos em teoria, uma perfeita inter-relação entre sustentabilidade e multiculturalismo na PNGATI, valorizando-se o prota-gonismo indígena e suas práticas sustentáveis, sem prejuízo aos estudos voltados à possibilidade de aprimoramento de tais práticas tradicionais, sempre visando à preservação e recuperação ambiental e a melhoria da qualidade de vida indígena.
Para além dessa adequação teórica, a concretização da política pública em epígrafe tem como principais instrumentos para tanto os Planos de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas – PGTAs, podendo-se defini-los como:
(...) instrumentos de caráter dinâmico, que visam à valorização do patrimônio material e imaterial indígena, à recuperação, à conservação e ao uso sustentável dos recursos naturais, assegurando a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações indígenas. (...) devem expressar o protagonismo, a autonomia e autodeterminação dos povos na negociação e no estabelecimento de acordos internos que permitam o fortalecimento da proteção e do controle territorial, bem como ser um subsídio que oriente a execução de políticas públicas voltadas para os povos indígenas (FUNAI, 2013).
Com efeito, tais planos são construídos a partir de ferramentas como o etno-mapeamento e o etnozoneamento, consistindo o etnomapeamento no “mapeamento participativo das áreas de relevância ambiental, sociocultural e produtiva para os povos indígenas, com base nos conhecimentos e saberes indígenas”; e o etnozonea-mento, em um “instrumento de planejamento participativo que visa à categorização de áreas de relevância ambiental, sociocultural e produtiva para os povos indígenas, desenvolvido a partir do etnomapeamento” (artigo 2º, Decreto nº 7747/2012).
Nessa ordem, os PGTAs, segundo BAVARESCO e MENEZES (2014, p.13):
(...) estão embasados nas noções de autonomia, protagonismo e autode-terminação dos povos, no que se refere à negociação e ao estabelecimento de acordos que permitam o fortalecimento da proteção e do controle ter-ritorial, bem como à construção coletiva de estratégias, ações e projetos de interesse das comunidades indígenas. Dessa forma, os PGTAs propiciam o fortalecimento dos sistemas próprios de tomada de decisão dos povos indígenas, contribuindo para a valorização do conhecimento dos povos indígenas sobre seus territórios e permitindo a transmissão de conhecimento entre gerações, entre outros benefícios.
Tais planos devem ser construídos de acordo com as peculiaridades de cada local, considerando-se os costumes e tradições daquela comunidade indígena determinada, bem como as especificidades ambientais do território, regendo-se, segundo a FUNAI (2013, p. 8), de acordo com os seguintes princípios:
Protagonismo Indígena: o Plano de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas é um instrumento feito pelos e para os indígenas, segundo suas aspirações e visões de futuro, com a colaboração e o apoio do Estado e de parceiros da sociedade civil.
Legalidade: o Plano de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas se dá no âmbito do ordenamento jurídico nacional, seguindo e respeitando as normas vigentes, consideradas as especificidades indígenas.
Sustentabilidade: o Plano de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas visa à sustentabilidade dos povos e das Terras Indígenas, consideran-do os aspectos socioculturais, econômicos, políticos e ambientais, no sentido de atender às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras também atenderem às suas próprias necessidades.
Estabelecimento de acordos/pactos: o estabelecimento de acordos possibilita que os planos sejam potencializados como ferramentas de diálogo interno e externo, contribuindo para efetividade das ações planejadas e para efici-ência das políticas públicas e demais serviços voltados aos povos indígenas. (destaque no original)
A partir desses princípios, priorizando-se o protagonismo indígena, respeitando as normas vigentes, com a mentalidade sempre voltada à sustentabilidade dos povos e das terras indígenas, além de constantes diálogos e acordos, constrói-se um PGTA adequado, observando-se, ainda segundo a FUNAI (2013, p. 9), cinco etapas:
a) sensibilização e mobilização (explanação do PGTA à comunidade);
b) diagnóstico (levantamento de informações, com etnomapeamento);
c) planejamento (priorização de ações/projetos, conforme diagnósticos);
d) execução (implementação das ações planejadas); e
e) monitoramento e avaliação (constante avaliação do projeto e dos atores, para aprimoramento dinâmico e frequentes atualizações do PGTA). (destaque no original).
Nessa ordem, tratam-se os PGTAs de instrumentos fundamentais de planejamento e concretização do PNGATI, promovendo a articulação entre povos indígenas e Estado, com protagonismo dos primeiros, possibilitando-os planejarem a gestão territorial e ambiental nas terras indígenas, em perfeita compatibilização, como já destacado alhures, entre os conceitos de multiculturalismo e sustentabilidade.
Por fim, é de fundamental importância para a consolidação da PNGATI, ainda, o cumprimento dos objetivos específicos elencados no eixo 7 (capacitação, formação, intercâmbio e educação ambiental) do Decreto nº 7747/2012, a saber:
a) promover a formação de quadros técnicos, estruturar e fortalecer os órgãos públicos e parceiros executores da PNGATI;
b) qualificar, capacitar e prover a formação continuada das comunidades e organizações indígenas sobre a PNGATI;
c) fortalecer e capacitar as comunidades e organizações indígenas para participarem na governança da PNGATI;
d) promover ações de educação ambiental e indigenista no entorno das terras indígenas;
e) promover ações voltadas ao reconhecimento profissional, à capacitação e à formação de indígenas para a gestão territorial e ambiental no ensino médio, no ensino superior e na educação profissional e continuada;
f) capacitar, equipar e conscientizar os povos indígenas para a prevenção e o controle de queimadas e incêndios florestais; e
g) promover e estimular intercâmbios nacionais e internacionais entre povos indígenas para a troca de experiências sobre gestão territorial e ambiental, proteção da agrobiodiversidade e outros temas pertinentes à PNGATI.
Deveras, esses objetivos especificamente voltados às ações de capacitação e formação de representantes dos povos indígenas e servidores públicos, assim como à promoção de ações de educação ambiental no entorno das terras indígenas (conscientização ambiental da população), são fundamentais/indispensáveis para a adequada implementação da PNGATI e a concretização de seus objetivos, seguindo os parâmetros desenvolvidos ao longo do presente artigo, isto é, com o respeito à autodeterminação dos povos indígenas e adequado tratamento do meio ambiente.