A torrente de mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil sobre a atuação parcial, tendenciosa e inconstitucional de agentes do Ministério Público e do Poder Judiciário na condução da denominada Operação Lava Jato resultou na abertura de uma investigação de natureza criminal, cujo objetivo é a identificação dos autores e o procedimento utilizado para a invasão dos telefones celulares de autoridades, na captura das interlocuções pelo aplicativo Telegram.
A divulgação conhecida como Vaza Jato e liderada pelo jornalista Glenn Greenwald, fundador do mencionado site, e outros veículos de comunicação passou a constituir um fato jornalístico. A fonte ou a origem da informação não modifica essa configuração, mesmo que decorrente de ações criminosas de hackers e essa premissa em relação ao conteúdo da Vaza Jato é apenas especulativa, pois não se afirma que o material tenha sido entregue ao jornalista ou que o acesso tenha sido concretizado por fato típico, à míngua de qualquer conclusão nesse sentido.
Evidentemente, que constitui atividade típica a invasão de dispositivos de comunicação, podendo, hipoteticamente, a depender de circunstâncias específicas o seu enquadramento se alojar no art. 154 A, CP ou art. 10, Lei 9.296/96, referindo-se o último dispositivo à interceptação de comunicação telefônica, informática ou telemática, sem prévia autorização judicial. Todavia, o postulado do sigilo da fonte para o jornalista previsto no art. 5º, XIV, CF - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional, impede que diante da recusa na revelação, se imponha qualquer enquadramento típico ao jornalista.
O destinatário dessa tutela à atividade profissional do jornalista não é só o profissional ou a própria fonte, que se não fosse tal garantia, possivelmente não prestaria a informação. A disposição é o meio para se assegurar o direito à informação da coletividade, eixo central de qualquer sistema que se oriente pelo valor democrático. A via de mão dupla desse binário é a liberdade de expressão do jornalista e da própria fonte. Se essa expressão não for absolutamente livre, o acesso à informação será relativo.
Com isso, o jornalista Glenn Greenwald é titular da oponibilidade de utilizar o sigilo da fonte em relação a qualquer pessoa ou entidade, inclusive agentes ou autoridades estatais e ao próprio poder público. O STF já se posicionou recentemente nesse sentido na Reclamação n. 21504 AgR/SP, j. 17.11.15, Rel. Min. Celso de Mello. Assim como o jornalista, toda a sociedade brasileira é titular da proteção que se confere ao direito à informação.
Essa concepção deve ser estendida ao fato da divulgação, mesmo que os jornalistas e os veículos de comunicação tenham ou não recebido o material dos hackers investigados, sabendo ou não de sua origem fosse criminosa. A liberdade de expressão e o direito à informação como componentes de uma interação que assegura o valor da convivência democrática não são apenas figuras decorativas ou metáforas distantes de uma efetividade.
Tais categorias como princípios integram o sistema normativo. Para fins da tipicidade, a antinormatividade não pode ser restrita ao tipo penal em si, como sustentam ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007. Indispensável uma consideração conglobada da norma típica.
Evitando-se antinomias, a tipicidade penal não pode proibir comportamentos que outro princípio ou norma do sistema jurídico autorize. Essa correção da tipicidade é fundamental para que a conclusão de que típico o fato descrito em uma norma penal, deve se submeter ao crivo da tipicidade conglobante.
De tal modo, qualquer enquadramento típico que se fizer em torno do comportamento do jornalista Glenn Greenwald e outros que o seguiram na divulgação das mensagens do movimento que foi denominado de Vaza Jato, sempre deverá ser comparado à conjuntura do sistema normativo brasileiro. Essa organização, que contando com a garantia constitucional do sigilo da fonte e a ampla liberdade de expressão e divulgação, não autoriza concluir que seja típico o fato do profissional deixar de revelar a fonte, mesmo se intimado para fins de depoimento como testemunha (afastamento da tipicidade do art. 342, CP); ou ter divulgado o fato, sabendo ou não da origem pretensamente ilícita (art. 154 A, CP ou art. 10, Lei 9.296/96, em uma extravagante perspectiva de concurso de pessoas – art. 29, CP), mas no estrito limite da atividade jornalística.
Deve se concluir que a tipicidade conglobante aplicada na hipótese de se cogitar os jornalistas como sujeitos ativos dos crimes, construídos com os núcleos dos tipos, dirigidos à recusa na revelação da fonte, ou revelação de fatos, cujo acesso tenha ou não sido obtido pela fonte por meio de fatos típicos, mesmo que criminosos, não podem subsistir sequer na tipicidade que se queira imputar ao jornalista. Não há necessidade de se aferir qualquer causa de exclusão de ilicitude ou culpabilidade.
Em essência e na sua etiologia, a conduta não é típica, sendo impossível se estabelecer a conclusão no sentido da ocorrência de crime, com o apontamento da tipicidade conglobante que se situa como habeas corpus preventivo não só a Glenn Greenwald, como aos outros jornalistas que atuaram e atuam na série de divulgação, mas como habeas corpus preventivo à própria democracia brasileira.
STF: RCL, Origem: SP - SÃO PAULO, Relator: MIN. CELSO DE MELLO.http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4814991- acesso em 29/07/2019.
ZAFFARONI, E.R.; PIERANGELI, J.H. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 7.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, 766 p.