Em homenagem a Daury Cesar Fabriz, eminente advogado e professor de direito constitucional, amigo de longa data que se tornou uma referência no magistério jurídico capixaba.
“Todo aquele que considerar atentamente os diferentes poderes perceberá que, num governo em que eles estão separados, o judiciário, pela natureza de suas funções, será sempre o menos perigoso para os direitos políticos da Constituição, por ser o menos capaz de transgredi-los ou violá-los. O executivo não só dispensa as honras como segura a espada da comunidade. O legislativo não só controla a bolsa como prescreve as regras pelas quais os deveres e direitos de todos os cidadãos serão regulados. O judiciário, em contrapartida, não tem nenhuma influência nem sobre a espada nem sobre a bolsa; nenhum controle nem sobre a força nem sobre a riqueza da sociedade, e não pode tomar nenhuma resolução ativa. Pode-se dizer que não tem, estritamente, força nem vontade, mas tão-somente julgamento, estando em última instância na dependência do auxílio do braço executivo até para a eficácia de seus julgamentos”.
(Alexander Hamilton, Artigo 78). [1]
Senhoras e senhores,
1. No último dia 5 de novembro celebramos o nascimento de dos dois maiores – senão os maiores - advogados da história do Brasil: Ruy Barbosa de Oliveira e Heráclito Fontoura Sobral Pinto. Ruy nascido no ano de 1849. Sobral no ano de 1893. E para falar de “ativismo judicial” tenho de recordar essas figuras inesquecíveis de nossa advocacia neste evento da advocacia capixaba.
2. Nada obstante, iniciei esta intervenção recordando clássica passagem de Alexander Hamilton contida no famoso livro “O Federalista”. Esta referida obra é o texto que melhor ilumina a compreensão sobre a Constituição dos Estados Unidos da América, que restou promulgada no longínquo 17 de setembro de 1787. Com efeito, nos primórdios do constitucionalismo ocidental, vicejou, inclusive no Brasil, essa percepção de que o Poder Judiciário seria o mais fraco ou menos perigoso para os direitos individuais.
3. Recordemos os momentos dramáticos vivenciados durante a nossa velha República, sobretudo durante o governo Floriano Peixoto. Naquele período o STF foi provocado a se manifestar acerca de vários habeas corpus impetrados por Ruy Barbosa em favor de presos políticos. A Corte optou por não apreciar os writs, sob a justificativa de que se tratavam de “questões políticas”, insuscetíveis de apreciação judicial.[2] O Tribunal, naquele contexto, diante da possibilidade de sofrer uma intervenção militar, escolheu sobreviver institucionalmente, e decidiu que as prisões ocorridas durante a decretação do “Estado de Sítio” deveriam ser examinadas pelos Poderes Políticos, e não pelo Poder Judiciário. Posteriormente a Corte evoluiu e passou a conhecer e a conceder as ordens impetradas. O Tribunal sentiu-se à vontade para desafiar o Poder Executivo. Talvez estejam naquelas ações constitucionais as sementes do “ativismo judicial brasileiro”.
4. Foi, ainda na velha República, que surgiu a “doutrina brasileira do Habeas Corpus” [3], que poderia ser vislumbrada como mais uma decisão ativista da Corte. Apenas para relembrar, tenha-se que na Constituição brasileira de 1891, art. 72, § 22, estava escrito que dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder. Pois bem, a partir do engenho advocatício, especialmente de Ruy Barbosa, e tendo em vista o que estava prescrito no texto constitucional, a Corte passou a reconhecer o habeas corpus não apenas para questões de liberdade de locomoção, mas para todas as questões onde houvesse violência ou coação decorrente de ilegalidade ou abuso de poder, ainda que o objeto não fosse a liberdade de ir e vir. Com a Reforma Constitucional de 1926, o habeas corpus voltou a garantir novamente o somente o direito de locomoção, na sua histórica e tradicional configuração processual, na esteira, inclusive, do prescrito no Código Criminal de 1830 e no Código de Processo Criminal de 1832.
5. Nada obstante, os “órfãos” da doutrina brasileira do habeas corpus foram contemplados, na Constituição de 1934, com o instituto do mandado de segurança, que nos termos do art. 113, item 33, tinha a seguinte redação:
“Dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo sempre ser ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes.”
6. Ainda dessa mencionada Constituição de 1934, julgo interessante recordar três comandos normativos valiosos e atuais contidos nesse art. 113:
34) A todos cabe o direito de prover a própria subsistência e a de sua família, mediante trabalho honesto. O poder público deve amparar, na forma da lei, os que estejam na indigência.
35) A lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas, a comunicação aos interessados dos despachos proferidos, assim como das informações a que estes se refiram, e a expedição das certidões requeridas para a defesa de direitos individuais, ou para o esclarecimento dos cidadãos acerca dos negócios públicos, ressalvados, quanto às últimas, os casos em que o interesse público imponha segredo, ou reserva.
37) Nenhum juiz deixará de sentenciar por motivo de omissão na lei. Em tal caso, deverá decidir por analogia, pelos princípios gerais do direito ou por equidade.
6. Como assinalei, as sementes do nosso ativismo judicial foram lançadas no constitucionalismo inaugurado em 1891, mas foi no dia 2 de março de 1937 que Sobral Pinto inscreveu o seu nome não só na história da advocacia brasileira, mas na história da civilização ocidental. Nessa mencionada data, Sobral impetrou habeas corpus em favor do preso político Harry Berger invocando a “Lei de Proteção aos Animais”. Naqueles tempos sombrios e para os presos políticos, as leis não protegiam nem socorriam os homens bestializados. Foi preciso socorrer-se da legislação protetiva dos animais.[4]
7. O combativo advogado pediu ao famigerado Tribunal de Segurança Nacional que fosse estendido ao ser humano a mesma proteção legal contra os maus tratos que se destinava aos animais, e evocou decisão judicial que condenou um cidadão pelos maus tratos ao seu cavalo. O respeito à dignidade dos animais salvou a vida de homens enjaulados pelo poder. Foi uma jogada genial do advogado Sobral Pinto invocar a legislação protetiva dos animais para constranger os magistrados do Tribunal de Segurança Nacional.
8. A ironia do destino prega algumas peças. Em 13 de junho de 2017, 80 anos depois desse HC impetrado por Sobral Pinto, foi proposta ação direta de inconstitucionalidade[5] em face da nova redação do inciso VII do § 1º do art. 225 por violação do inciso IV do § 4º do art. 60, todos dispositivos da Constituição Federal. O requerente pede que se estenda aos animais a dignidade que pertence aos homens. Se um dia a dignidade dos animais salvou os homens, o requerente postula que se dê aos animais o tratamento de respeito e consideração que nos humanizam e nos singularizam como obra máxima do Criador.
9. Esse preceito constitucional impugnado enuncia que não são cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais e que haja lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. Como todos sabemos esse comando normativo foi inovação da Emenda Constitucional n. 96/2017, a “Emenda da Vaquejada”. Essa Emenda foi uma reação do Congresso Nacional às decisões do STF que declararam inconstitucionais essa prática da cultura esportiva.[6]
10. Quando lhe interessa, o Congresso sabe reagir às intrusões do Judiciário, como sucedeu nesse caso da vaquejada e em outras oportunidades: “verticalização partidária” [7], a “fidelidade partidária” [8], a “composição das Câmaras de Vereadores”[9] e outros assuntos que sejam relevantes e sensíveis para o mundo político, como a PEC da Vida[10], uma possível reação à eventual decisão do STF que declare a incompatibilidade constitucional da criminalização do aborto, na ADPF 442.[11] Ou seja, quando o Congresso quer, ele sabe lançar mão das suas prerrogativas legislativas e normativas, e não se acanha diante do Poder Judiciário ou do Poder Executivo (art. 49, inciso XI, CF).
11. Com efeito, político tende a possuir um faro privilegiado para sobreviver e ornitorrincamente sabe se adaptar às circunstâncias e ao meio ambiente social. Os políticos brasileiros não são como os guerreiros japoneses capazes de cometerem o “haraquiri” ou muito menos agir como “kamikazes”. Esse instinto de sobrevivência também é comum entre os magistrados, mormente os do Supremo Tribunal Federal, como nos revelam vários capítulos de sua história, como já tivemos a oportunidade de mencionar.
12. Peço licença para recordar julgamento do ano de 1955, mas de espantosa atualidade. Trata-se do Mandado de Segurança n. 3.557 impetrado pelo então presidente João Café Filho em face das Mesas da Câmara e do Senado que lhe negavam o direito de exercer a presidência da República. Alegava-se ato ilegal e abusivo das Forças Armadas, que estavam constrangendo os Poderes Políticos a não permitirem que o impetrante retornasse ao cargo de presidente da República. Nesse julgamento, o Tribunal reconheceu a sua incapacidade de impor a força normativa da Constituição em face da força política das Armas. Eis sincera, dura, nua e crua passagem do voto ministro Nelson Hungria:
“Qual o impedimento mais evidente, e insuperável pelos meios legais, do titular da Presidência da República, que o obstáculo oposto por uma vitoriosa insurreição armada?
Afastado ‘o manto diáfano da fantasia sobre a nudez rude da verdade’, a resolução do Congresso não foi senão a constatação da impossibilidade material em que se acha o senhor Café Filho, de reassumir a Presidência da República, em face da imposição dos tanks e baionetas do Exército, que estão acima das leis, da Constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal. Podem ser admitidos os bons propósitos dessa imposição, mas como a santidade dos fins não expunge a ilicitude dos meios, não há jeito, por mais especioso, de considerá-la uma situação que possa ser apreciada e resolvida de jure por esta Corte.
É uma situação de fato criada e mantida pela força das armas, contra a qual seria, obviamente, inexeqüível qualquer decisão do Supremo Tribunal. A insurreição é um crime político, mas, quando vitoriosa, passa a ser um título de glória, e os insurretos estarão a cavaleiro do regime legal que infringiram; sua vontade é que conta, e nada mais.
[...]
Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma contra-insurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípios, expedir mandado para cessar a insurreição.
Aí está o nó górdio que o Poder Judiciário não pode cortar, pois não dispõe da espada de Alexandre. O ilustre impetrante, ao que me parece, bateu em porta errada. Um insigne professor de Direito Constitucional, doublé de exaltado político partidário, afirmou, em entrevista não contestada, que o julgamento deste mandado de segurança ensejaria ocasião para se verificar se os Ministros desta Corte ‘eram leões de verdade ou leões de pé de trono’.
Jamais nos inculcamos leões. Jamais vestimos, nem podíamos vestir, a pele do rei dos animais. A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples pintura decorativa no teto ou na parede das salas de Justiça. Não pode ser oposta a uma rebelião armada. Conceder mandado de segurança contra esta seria o mesmo que pretender afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano preto de nossas togas.
Senhor Presidente, o atual estado de sítio é perfeitamente constitucional, e o impedimento do impetrante para assumir a Presidência da República, antes de ser declaração do Congresso, é imposição das forças insurrecionais do Exército, contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica.”
13. Ou seja, senhoras e senhores, os magistrados sabem que na simbologia da fauna selvagem eles não são “leões”, porque carentes de “presas e garras”. Atribui-se a Mao Tsé Tung uma frase de cru realismo político: “todo o poder emana da boca do fuzil”. Mas se os ministros do STF não possuem a “espada” do Executivo nem a “bolsa” do Legislativo, por que se aventuram a avançar nos domínios dos outros Poderes? Qual o fundamento para essas decisões da Corte? O que é o “ativismo judicial à brasileira”? E há algo que pode ser feito para evitar a usurpação constitucional cometida pelo Poder Judiciário? De onde vem tanta ousadia da Corte?
14. Entendo que há dois tipos de “ativismo judicial”: o autorizado pela Constituição e o que consiste em usurpação normativa pelo Poder Judiciário, que chamarei de “à brasileira”, também porque “seletivo”. Nessa perspectiva, o Poder Judiciário possui atribuição para viabilizar o exercício de direitos constitucionalmente assegurados, mas que estejam sendo inviabilizados por injustificadas omissões inconstitucionais normativas ou governamentais do Poder Legislativo ou do Poder Executivo.[12] Assim, se a Constituição conceder o direito, e esse direito encontra-se injustificadamente inviabilizado por inaceitável omissão do Legislativo ou do Executivo, o Judiciário está autorizado a intervir positivamente para concretizar direito constitucionalmente assegurado.
15. De outro lado, chamo de “ativismo à brasileira”, a usurpação pelo Judiciário de atribuições do Poder Legislativo ou do Poder Executivo. Essa usurpação judicial não protege direitos, mas visa concretizar “interesses”, “desejos”, “necessidades”, ainda que legítimos e aceitáveis, porém não autorizados pelo Ordenamento Jurídico (Constituição, Leis, Tratados, tradições etc.). Eu gostaria de me deter mais nesse ponto. Só é direito o exercício regular e autorizado de possibilidades fáticas. Nem todos os “desejos”, “interesses” e “vontades”, ainda que legítimos e aceitáveis, podem ser considerados como normativamente reivindicáveis ou como pedidos juridicamente possíveis. E ainda que sejam reivindicáveis, alguns desses “interesses”, “desejos”, “vontades” e mesmo alguns “direitos” devem ser postulados perante ou o Poder Legislativo ou perante o Poder Executivo.
16. É preciso ler com rigor o que está escrito no art. 5º, XXXV, CF: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Ou seja, somente pode ser apreciado pelo Judiciário o que for direito, que vem a ser, o exercício regular e autorizado de possibilidades fáticas. Logo, o que não for faticamente possível, validamente autorizado e regularmente exercitável não é direito reivindicável perante o Poder Judiciário. Ademais, é preciso recordar que o STF não é o exclusivo “guardião da Constituição” (art. 102). À luz do quanto escrito e prescrito na Constituição temos como seus “guardiões”: o povo soberano (art. 1º, parágrafo único), a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (art. 23, I), o Poder Legislativo (arts. 51, I, e 52, I e II), o Presidente da República (art. 78) e as Forças Armadas (art. 142). Portanto, segundo a própria Constituição, não há um único “guardião”, mas um conjunto de “guardiões” que mutuamente se vigiam e se equilibram política e normativamente.
17. A Constituição adotou a tese polibiana de Constituição mista. Nela vemos a democracia no Poder Legislativo, porquanto qualquer pessoa, em princípio, pode ser eleita parlamentar. Também vemos a monarquia no Poder Executivo, pois segundo o art. 76 esse Poder é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos ministros de Estado. Vemos a aristocracia no Poder Judiciário, mormente no STF, que exige que somente quem for possuidor de reputação ilibada e de notável saber jurídico poderá ser magistrado daquela Corte. Na verdade, podemos perceber que o Poder Judiciário e as Funções Essenciais à Justiça têm um caráter aristocrático: somente os bacharéis em Direito estamos autorizados a ser seus membros.
18. Mas desde Aristóteles sabemos que as formas puras podem se corromper. Com efeito, a democracia pode se corromper em demagogia; a aristocracia em oligarquia; e a monarquia em tirania. Para evitar que essa corrupção venha a contaminar todo o sistema, o engenho político adotou esse modelo de constitucionalismo misto. E sempre que os membros de um Poder perdem respeito e credibilidade, que são percebidos pelos outros membros como corrompidos ou percebidos pelo corpo social como corruptos, ocorre uma terrível erosão de institucionalidade que abre as portas para soluções heterodoxas e profiláticas. A confiança na honorabilidade dos altos membros dos Poderes é indispensável para a sadia convivência social.
19. E de já adianto uma das causas do nosso ativismo judicial: o caráter seletivo e exclusivo do nosso Poder Judiciário e das Funções Essenciais à Justiça (Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública e Advocacia Privada, representada pela OAB). Muitos de nós que fazemos parte dessa “aristocracia jurídica” temos desconfiança e alguns até mesmo desprezo pelos representantes eleitos pelo povo. Muitos de nós não confiamos nos políticos nem no povo. Chamo isso de “platonismo de togas e becas”. Platão, como todos sabem, tinha profunda desconfiança com a democracia (verdadeiro desprezo). Para ele, no seu famoso “mito da caverna”, o homem comum vivia nas sombras e necessitava ser iluminado para que conhecesse a verdade. Por isso que o governo da Pólis deveria ser entregue aos filósofos, pois o homem comum não detinha a necessária sabedoria para bem governar e para fazer as suas escolhas existenciais. O homem comum é, para o aristocrata, um hipossuficiente, enquanto que ele, aristocrata, é um hiperssuficiente.
20. Com o devido respeito, enxergo muitas falas e ações de magistrados, promotores, defensores, advogados, professores e de vários atores do nosso “ecossistema de justiça” com esse perfil: não confiam no povo, não confiam nem respeitam os legítimos representantes eleitos pelo povo e acreditam possuir uma missão: tirar o povo das trevas e das sombras, e a pretexto de usarem a Constituição como “farol”, impõem a sua peculiar visão de mundo sobre os outros. Algumas dessas pessoas são até bem-intencionadas, mas não são nenhum pouco democráticas, são aristocráticas (quiçá oligárquicas).
21. Tenha-se, a bem da verdade, que a Constituição brasileira de 1988 acelerou esse “platonismo jurídico”, pois há muitas promessas normativas que dormitam desde a sua promulgação e que ainda estão longe de sua plena materialização. E esse divórcio entre a “promessa normativa” e a realidade concreta causa angústia e insatisfação. Algo necessitava ser feito. Mas é preciso tomar cuidado com as promessas contidas na Constituição. Recordo, apenas como exemplo ilustrativo, a promessa contida no inciso IV do art. 7º que dispõe que deve o salário mínimo ser capaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Qual o valor do salário mínimo para cumprir esse mandamento constitucional? Quem vai estabelecer esse valor? O Legislativo? O Executivo? Ou o Judiciário?
22.O ativismo judicial encontra o seu limite no texto da Constituição, na realidade econômica, cultural, social, tecnológica, ou seja no contexto e nas possibilidades fáticas. E, por que não, no direito financeiro e orçamentário. Quem está autorizado pela Constituição a delinear os recursos financeiros cooptados da sociedade? E quem vai pagar as contas? Quem vai se sacrificar pagando promessas normativas e tributárias a fim de viabilizar os dispositivos constitucionais? O cidadão brasileiro é um permanente pagador de promessas e de tributos. E quanto mais pobre e humildade, maior, proporcionalmente, tem sido a sua cota de sacrifícios. São muitos ônus e alguns bônus.
23. João Paulo de Campos Echeverria usa o termo “Constituição coelho” para dizer que não raras vezes a Constituição sai à frente da sociedade e que cabe a esta acompanhá-la. Essa ideia de uma Constituição à frente de seu tempo e de seu povo é interessante, mas tem de ser vista com muito cuidado. O texto normativo é como uma roupa que deve se amoldar ao respectivo corpo social, e o legislador deve ser o seu “alfaiate”. A Constituição é um “dever-ser”, mas não pode se distanciar muito do “ser”. Ademais, se a Constituição for muito à frente de seu povo, o Tribunal tem de tomar algumas cautelas para não ser uma “cenoura” à frente do próprio “coelho”, sob pena de se afastar demasiadamente do povo e da própria Constituição.
24. Mas é de se reconhecer que efetivamente a Constituição de 1988 tem preceitos ambiciosos. Recordemos, por exemplo, os direitos humanos fundamentais que estão disciplinados no texto constitucional. Em nossa avaliação, podemos divisar, quanto à essência, três espécies de direitos humanos fundamentais: a) os naturais; b) os morais; e c) os artificiais.
25. Os primeiros, dizem respeito aos direitos humanos fundamentais “naturais” (aqui entendidos como legítimas possibilidades) que todo ser vivo possui de garantir a sua sobrevivência e a sua perpetuação, como sucede com o direito de viver e de ter uma boa, adequada e suficiente subsistência, bem como de constituir uma família e de satisfazer suas necessidades biológicas, morais, espirituais e existenciais.
26. Os segundos, direitos humanos fundamentais “morais”, dizem respeito aos avanços civilizatórios e culturais de decência ética, na medida em que se reconhece o valor moral do outro, mormente do mais fraco e do indefeso, daquele que sozinho não se basta e que necessita de uma especial proteção, ante as diferenças naturais, como sucede com os fetos nascituros, com as crianças, com os deficientes e os idosos, por exemplo. São “morais” porque se alicerçam, sobretudo, no “tabu” (proibição) da covardia, no fato de que é covarde, é indecente, é imoral o uso da violência contra o mais fraco e indefeso. Eis o maior de todos os avanços da decência civilizatória da experiência humana.
27. E por fim os direitos humanos fundamentais “artificiais”, que resultam dos avanços tecnológicos, científicos e econômicos de determinada sociedade em determinado espaço geográfico em determinado período temporal, como ocorre com os avanços nos campos da saúde, da moradia, das comunicações, dos transportes e tantos outros decorrentes da opulência ou da riqueza produzida em uma sociedade. São os “direitos” (possibilidades) que só existem porque houve avanços “artificiais” graças ao engenho humano: remédios, vacinas, aviões, metrôs etc. Neste século XXI, a vida de uma pessoa comum em um País com IDH acima de 0,9 é melhor do que a vida de um poderoso nobre na Idade Média.
28. Senhoras e senhores, os membros do Poder Judiciário e das Funções Essenciais à Justiça devem manejar com muito cuidado os poderes e faculdades que possuem, ainda que bem-intencionados visando a concretização dos direitos humanos fundamentais. Tenha-se, todavia, que os advogados privados, submetidos exclusivamente ao regime jurídico do Estatuto da OAB, estão livres para postularem o impossível jurídico. Mas, em minha avaliação, nem os advogados públicos nem os defensores públicos nem os promotores públicos podem reivindicar o juridicamente impossível, pois somos agentes públicos e estamos vinculados ao princípio da normatividade jurídica: o direito decorre do ordenamento jurídico.
29. E os magistrados, podem deferir pedidos juridicamente impossíveis? A resposta é negativa. A Constituição não autoriza a ninguém a ir além dos limites do ordenamento jurídico. E o ordenamento jurídico consiste no conjunto de prescrições normativas ou de práticas tradicionais que visam influenciar ou regular as declarações ou condutas dos seres humanos, atribuindo consequências jurídicas aos fatos, eventos, acontecimentos, ações, omissões e situações. Do ordenamento jurídico surge o direito como o exercício regular e autorizado de uma possibilidade fática.
30. Peço licença para recordar passagem extraída do voto do ministro Ricardo Lewandowski nos autos da ADPF 54, que cuidou da questão da antecipação do parto de feto anencefálico. Assinalou o citado ministro:
“Não é lícito ao mais alto órgão judicante do País, a pretexto de empreender interpretação conforme a Constituição, envergar as vestes de legislador positivo, criando normas legais, ex novo, mediante decisão pretoriana. Em outros termos, não é dado aos integrantes do Poder Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem”.
31. Lapidar e certeira essa asserção. Nada obstante, o Tribunal tem enveredado por labirintos pantanosos e sem nenhum “fio de Ariadne” para bem lhes guiar. Com efeito, e já me encaminho para a finalização, recordo duas decisões da Corte que envolvem “homossexuais” e por isso são vislumbradas como ativistas.
32. A primeira é a ADPF 132 que acertadamente reconheceu como válida e legítima a união estável entre homossexuais. E por que acertadamente? Porque o Judiciário, em outras ocasiões, já tinha reconhecida a união estável de homossexuais, como sucedeu no “caso Vizeu”[13], julgamento no qual o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que a companheira homossexual da prefeita deveria ser entendida como cônjuge, incidindo, portanto, a proibição do art. 14, § 7º, CF. Ora, se o Judiciário reconheceu a relação homossexual como união estável, equiparando a casamento, para recusar direitos, deve, por uma questão de integridade e coerência, reconhecer para conceder direitos.
33. Todavia, recentemente, a Corte criou, nos autos da ADO 26 e do MI 4.733, o tipo penal da homofobia, sob a justificativa de inaceitável omissão legislativa do Congresso Nacional em criminalizar a hedionda conduta homofóbica e, paradoxalmente, ainda utilizou de analogia em mala partem para invocar a lei do racismo. A Corte, com esse julgamento, deu passo demasiadamente largo: criou um tipo penal, sem base legal ou constitucional. Ora por mais inaceitável e hedionda que seja a conduta homofóbica, a competência para punir criminalmente é do Poder Judiciário, desde que o Poder Legislativo tenha atribuído a essa conduta a “pecha” de crime, pois não há crime sem prévia cominação legal. Isso é postulado civilizatório ocidental. O Supremo Tribunal Federal pode muito, mas não pode tudo. O Tribunal não é poder soberano, que se coloca acima das leis e da Constituição, e muito menos acima do povo. Daqui a pouco, nessa toada, a Corte vai começar a declarar a inconstitucionalidade de preceitos constitucionais originários também. Cuide-se que na ADI 815 o Tribunal se recusou a sindicar o Poder Constituinte Originário, mas em breve podemos ser surpreendidos com decisões nesse sentido ou criando tributos. Tenha-se que de alguma maneira na edição da SV 25 (é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito), o Tribunal driblou o comando do art. 5º, LXVII, que dispõe que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.
34. Em minha avaliação, o STF deve ser um dos “guardiões” da Constituição, mas não é o seu “dono”, muito menos seu “carcereiro”. Só o povo é o dono da Constituição, e somente o povo pode mudar a Constituição, via representantes eleitos, ou mudar de Constituição, via plebiscito ou referendo. Mas, nem mesmo o povo, dono da Constituição, está autorizado a descumpri-la ou a desobedecê-la.
35. Senhoras e senhores, os ministros do Supremo Tribunal Federal, conquanto possuidores de notável saber jurídico e de reputação ilibada, não são melhores nem mais dignos que o povo, que o homem e a mulher comum, e não podem se comportar como se fossem “tricksters constitucionais”, como tem advertido o professor Caleb Salomão Pereira.
36. O Supremo não pode se afastar demasiadamente do quanto escrito e prescrito no texto da Constituição e muito menos não deve se encastelar na impenetrável “Torre de Marfim” ou no inalcançável “Monte Olimpo”. Se o STF ignorar a realidade do povo comum, ele também corre o risco de ser ignorado, como sucedeu com as suas decisões sobre as “leis de mototáxis” [14]. Cm efeito, o Tribunal decretou inconstitucionais leis estaduais ou municipais que regulavam o “serviço de mototáxi”, com fundamento na competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte. Resultado? Em nenhum município deste Brasil se teve notícia de respeito à decisão do Tribunal. Ninguém deixou de andar de mototáxi porque os ministros do STF, que têm carro oficial, decidiram que era inconstitucional. A Corte foi solenemente ignorada pelo homem comum do povo. O Tribunal tem de preservar a sua respeitabilidade para que o homem de carne e osso, com vícios e virtudes, o povo concreto e não o povo abstrato rousseauniano, não se sinta autorizado ou estimulado a ignorar ou a desprezar ou a hostilizar os membros do STF. Há quem prefira “Constituição coelho” e um “Tribunal lebre”. Pessoalmente, prefiro uma “Constituição tartaruga” e um “Tribunal jabuti”.
37. Hora de finalizar. Já estou abusando da generosa paciência das senhoras e dos senhores.
38. Édipo muito provavelmente seja o personagem mais trágico da mitologia grega[15]. Quase todos os terríveis sofrimentos e desgraças de um homem ele sentiu e passou. O mitológico herói foi abandonado criança para morrer. Cometeu parricídio ao matar o rei Laio, seu pai. Teve relação incestuosa com sua mãe Jocasta. Esta cometeu suicídio ao descobrir o caráter imoral dessa relação. Édipo, desesperado, fura seus dois olhos. Seus dois filhos Etéocles e Polinices se envolveram numa guerra fratricida e acabam um matando ao outro. Suas duas filhas Ismênia e Antígona também tiveram tristes destinos. Ismênia, corroída pelo remorso de não ter ficado do lado de seu pai e apoiado a sua irmã, é assassinada. E a corajosa Antígona que enfrentou o arbítrio tirânico do poder, cometeu suicídio. Uma vida de desgraças.
39. Todas essas tragédias que infelicitaram o desgraçado Édipo estavam prescritas pelos decretos fatídicos prescritos pelos deuses e pelo destino. E o caminho trágico começou a ser percorrido no momento em que ele decifrou o enigma da Esfinge que devorava a todos que não conseguissem responder a seguinte pergunta: que criatura caminha sobre quatro pernas de manhã, duas pernas durante o dia, e três pernas à noite? Édipo, como todos sabemos, desvendou esse mistério ao informar que era o homem, na manhã da vida engatinha, no seu meio, adulto, anda com duas, e no anoitecer da velhice precisa de uma bengala para se apoiar. Mas, onquanto tenha sofrido bastante, Édipo ao final de sua vida teve a seguinte morte:
“Quanto à morte de que Édipo foi vítima, nenhum mortal o poderá dizer, a não ser Teseu. Ele não morreu fulminado pelo raio ígneo de Zeus, nem o fez perecer a tempestade, que, durante esse tempo, do mar surgiu; mas arrebatou-o algum enviado dos deuses ou, abrindo-se, benévolo, o seio escuro da terra, foi acolhido no Hades. Porquanto desapareceu sem gemido e sem dores originadas por alguma doença, mas de um modo maravilhoso, como a nenhum dos mortais”.
40. A saga constitucional brasileira, iniciada no longínquo ano de 1823, com a instalação de nossa primeira Assembleia Nacional Constituinte é trágica, com dores, sofrimentos, angústias e frustrações, na qual há uma permanente tensão entre os nossos mais legítimos desejos e as nossas reais possibilidades. Há uma Nação histórica e culturalmente vinculada, a partir da experiência iniciada com a chegada das naus lusitanas. E há um Povo momentânea e geograficamente situado nestes tempos, que deseja ardentemente mudar os rumos de seu presente e com isso ter um futuro digno. Um povo que é senhor de seu destino. Que saibamos aprender com a nossa experiência e com as experiências dos outros povos e nações, para evitarmos os erros já cometidos e repetirmos os acertos já realizados. Para isso, convido a todos a decifrarmos a Esfinge do “ativismo judicial à brasileira” antes que ela nos devore.
Muito obrigado!
Notas
[1] MADISON, James; HAMILTON, Alexander; e JAY, John. Os artigos federalistas. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 479.
[2] COSTA, Edgar. Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal – Primeiro Volume (1892-1925). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
[3] RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal – Volume III – Doutrina Brasileira do Habeas Corpus (1910-1926). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
[4] Há uma excelente Dissertação de Mestrado sobre essa defesa de Sobral Pinto. Autor: Daniel Monteiro Neves. Título: Como se defende um comunista: uma análise retórico-discursiva da defesa judicial de Harry Berger por Sobral Pinto. Universidade Federal de São João Del-Rei. Programa de Mestrado em Letras. São João Del-Rei/MG, 2013.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.728. Plenário. Relator ministro Dias Toffoli. Brasília, 2017.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.685. Plenário. Relatora ministra Ellen Gracie. Brasília, 2006.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 26.602. Plenário. Relator ministro Eros Grau. Brasília, 2007.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.983. Plenário. Relator ministro Marco Aurélio. Brasília, 2013.
[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.307. Plenário. Relatora ministra Cármen Lúcia. Brasília, 2009.
[10] BRASIL. Congresso Nacional. Proposta de Emenda Constitucional n. 29. Senado da República. Senador Magno Malta. Brasília, 2015. Finalidade: torna inequívoca a inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção.
[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 442. Plenário. Relatora ministra Rosa Weber. Brasília, 2017.
[12] ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. O ativismo judicial da República togada e o princípio da legalidade na democracia parlamentar: uma breve análise crítica acerca de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal, sob as luzes da separação dos poderes e da soberania popular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5392, 6 abr. 2018. Disponível em www.jus.com.br.
[13] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral n. 24.564. Plenário. Relator ministro Gilmar Mendes. Brasília, 2004.
[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.136. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, 2007.
[15] Os sete contra Tebas, de Ésquilo; Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, todas de Sófocles; e As fenícias, de Eurípedes.