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Lições do constitucionalismo lusitano: o caso da reprodução assistida

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05/12/2019 às 13:30
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Reflexões sobre os principais julgados do Tribunal Constitucional português sobre as alterações recentes da Lei n.º 32/2006, que regula a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA).

INTRODUÇÃO           

Neste trabalho, são analisadas alterações recentes da Lei portuguesa n.º 32/2006, de 26 de julho, à luz do Constitucionalismo daquele país europeu e de seus instrumentos de proteção a direitos fundamentais. A referida lei regula a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), mais denominada no Brasil de reprodução assistida.

Uma das definições internacionais mais aceitas desse conjunto de técnicas é a de Kamel (2013). A PMA representaria o uso de tecnologias na área de saúde com vistas a promover a reprodução humana. Geralmente, fazem uso dessas alternativas casais inférteis; casais acometidos de doenças que possam comprometer a saúde do feto, tais como o vírus da imunodeficiência humana (HIV positivo), hepatites B ou C; ou com elevado risco de transmissão de doenças genéticas, como  doença de Corino de Andrade (também conhecida como doença dos pezinhos) ou síndrome de down.

Diferentemente do Brasil, onde o tema é regulado pela Resolução 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina (CFM), em Portugal, reservou-se à Lei n.º 32/2006 essa responsabilidade. Por se tratar de tema sensível, tal lei passou por várias alterações, sendo talvez a mais impactante a Lei nº 25/2016, na qual se dispunha sobre três aspectos nevrálgicos: parâmetros para celebração de contratos escritos gratuitos de gestação de substituição (comumente conhecida no Brasil por barriga de aluguel); quem seriam considerados pais da criança recém-nascida, em função do recurso à gestação de substituição; e qual seria o limite temporal para revogação de consentimento estabelecido entre os beneficiários da técnica e a gestante.

Dada a abrangência do assunto, bem como seu enorme potencial de evocar análises das mais diversas searas, inclusive das que estariam mais afetas à sociologia, à ética médica e até à antropologia, nossa abordagem será limitada pelos três aspectos supracitados, sob perspectiva do controle de constitucionalidade.

Como se verá mais à frente, essas alterações suscitaram o pronunciamento do Tribunal Constitucional (TC) português, órgão ao qual compete um amplo controle de constitucionalidade de atos normativos, de forma preventiva e repressiva, abstrata e concreta, por ação e omissão. Também é importante salientar que lhe é atribuída, por força da Constituição portuguesa de 1976, a fiscalização preventiva de constitucionalidade em abstrato. Esses institutos lusitanos seguem o modelo europeu continental de controle de constitucionalidade e não estão presentes, nem de forma assemelhada, em nosso país, razão pela qual, antes de tratarmos da matéria, faremos breve apresentação do modelo.


ORIGENS DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

O Constitucionalismo passou por longo processo de evolução até que a Lei Suprema pudesse vincular os órgãos institucionais, políticos, executivos, assim como os cidadãos. Quando esse processo se consolidou, a Lei Maior passou a ter força normativa para determinar a forma de criação e alteração de leis, os direitos individuais e coletivos, e a organização do estado.

Para que essa conquista social fosse resguardada, era preciso instituir sistemas eficazes de guarda da Constituição. Assim, entre o final do século XVIII e meados do século XIX, surgem dois grandes paradigmas de proteção da supremacia constitucional, sendo eles o modelo estadunidense e o europeu continental, seguidos por vários países.

O mais antigo seria o estadunidense, cujas origens remontam à Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, de 12 de janeiro de 1776, na qual se previu a existência de um Conselho de Revisão - Council of Revision. Este foi constituído de membros dos Poderes Executivo e Judiciário, com prerrogativas de fiscalização prévia das leis.

No plano europeu, o grande paradigma foi a criação do Tribunal do Império austríaco – Reichgericht, em 1867. Àquele órgão jurisdicional foram atribuídas prerrogativas para dar provimento a recursos interpostos contra atos do Poder Executivo que confrontassem direitos fundamentais protegidos pela Constituição.

O grande idealizador do Tribunal Constitucional austríaco teria sido o pensador Hans Kelsen, que via no controle jurisdicional concentrado um poderoso instrumento de guarda dos direitos fundamentais e dos valores democráticos. Eles estariam consagrados na Lei Maior, a ponto de permitir que o Tribunal Constitucional afastasse do ordenamento jurídico norma que os confrontasse.

O modelo austríaco de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade se espalhou pela Europa continental após a Segunda Grande Guerra, imperando sobre a maior parte das Constituições, e reverberando na criação de vários tribunais constitucionais.


TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS

Ao se falar sobre a criação de Tribunais Constitucionais, especialmente no contexto europeu, é mister salientar os três momentos históricos percebidos por Guerra (2004). Segundo o pesquisador espanhol, no primeiro momento, que antecede a Segunda Guerra Mundial, estabeleceram-se as Cortes Constitucionais na antiga Checoslováquia, em 1920; em seu país de origem, a Espanha, em 1931; e na Áustria, sob o modelo kelseniano, em 1920.

O segundo ciclo ocorreu após a Segunda Grande Guerra, tendo sido mais marcante do que o anterior. Nesse novo momento, houve o reestabelecimento do Tribunal austríaco em 1945; além do surgimento dos tribunais alemão, em 1949; do italiano, em 1956; do francês, em 1959; do turco em 1961; e do iugoslavo, em 1963.

O terceiro momento ocorreu durante a redemocratização de países que haviam acabado de sair de experiências autoritárias. É quando foram instituídos o Tribunal Constitucional português, precisamente em 1982; o grego, em 1975; o novo Tribunal Constitucional espanhol, em 1978; o belga, em 1980; o croata, em 1990; o da antiga Checoslováquia, da Romênia, da Bulgária e da Eslovênia, em 1991; o da Albânia, Eslováquia, Lituânia, Macedônia, República Checa, Sérvia e Montenegro, em 1992; o bielorrusso, em 1993; o moldavo, em 1994; o da Bósnia-Herzegovina, em 1995; o da Letônia, em 1996; o ucraniano, em 1996.

Dada a integração de séculos entre o Brasil e Portugal, nos desperta atenção o Tribunal Constitucional da antiga metrópole colonial, quanto mais a nos recordarmos de Pontes de Miranda (1981), para quem o direito brasileiro viria de um galho que o colonizador português plantou.


O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL PORTUGUÊS

O Tribunal Constitucional de Portugal (TC) é constituído de treze juízes, que se dividem em duas seções – turmas - de igual hierarquia. Dos juízes do TC, denominados Conselheiros, dez são escolhidos pelo Parlamento - Assembleia da República -, e três pelo próprio Tribunal.

Dos dez conselheiros escolhidos pelo Parlamento, seis são obrigatoriamente dentre os membros dos demais tribunais e três entre juristas. Apesar de terem como garantia a independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade por suas decisões, inclusive por força do artigo 202 da Constituição portuguesa, não possuem vitaliciedade.

Além do controle de constitucionalidade abstrato, também compete àquele tribunal o de legalidade, bem como a proteção de direitos fundamentais. Cabe esclarecer que o controle difuso de constitucionalidade é franqueado a todos os tribunais lusitanos. Ademais, ainda quanto a este tipo específico de controle, no caso de uma norma ser julgada inconstitucional por três vezes, é possível que o Tribunal instaure o processo abstrato, com repercussão geral obrigatória de sua decisão.

Os efeitos das decisões do TC variam conforme o momento em que elas ocorrem. Na forma de fiscalização preventiva, a norma deverá ser vetada pelo Presidente da República ou pelo Primeiro Ministro. Caso seja por meio de fiscalização repressiva abstrata, a decisão terá eficácia erga omnes e ex tunc, a menos que haja modulação de efeitos. Também, em regra, terá efeitos repristinatórios e com força obrigatória sobre todos, sejam pessoas físicas e jurídicas, inclusive sobre os poderes públicos.

Chama também atenção o fato de o tribunal lusitano possuir a prerrogativa do controle jurisdicional preventivo em abstrato, algo que não se observa no Brasil. As origens históricas do controle de constitucionalidade jurisdicional preventivo in abstrato remontam constituições promulgadas após Segunda Grande Guerra como na Itália, em 1948; na Alemanha, em 1949; na França, em 1946 e em 1958. Em Portugal, surge expressamente na Constituição de 1976, no art. 278, em capítulo específico intitulado “Fiscalização preventiva de constitucionalidade”.

Conforme o item 4 do referido dispositivo da Constituição lusitana,

“Podem requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de decreto que tenha sido enviado ao Presidente da República para promulgação como lei orgânica, além deste, o Primeiro-Ministro ou um quinto dos Deputados à Assembleia da República em efetividade de funções” (PORTUGAL, 1976, art. 278, número 4).

O modelo português foi replicado em constituições de países lusófonos; consta da Constituição espanhola de 1978; e em constituições de Estados francófonos. É possível constatar que o sistema de controle de constitucionalidade preventivo in abstrato é mais comum em países que adotam o sistema de governo parlamentarista, aliado à presença de Cortes Constitucionais.


A ANÁLISE CONSTITUCIONAL DAS ALTERAÇÕES DA LEI N.º 32/2006

No preâmbulo da Constituição promulgada aos 2 de Abril de 1976, assim se manifestou o poder constituinte:

“A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno” (PORTUGAL, 1976, preâmbulo).

Um dos casos envolvendo potencial confronto a direitos fundamentais que mais tem demandado o posicionamento do Tribunal Constitucional português, desde sua instituição, é a Procriação Medicamente Assistida (PMA), tendo a lei que versa sobre o tema passado por seis[1] alterações legislativas. A. Segundo o art. 2º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, serão por ela reguladas as seguintes técnicas de PMA:

“a) Inseminação artificial;

b) Fertilização in vitro;

c) Injeção intracitoplasmática de espermatozoides;

d) Transferência de embriões, gâmetas ou zigotos;

e) Diagnóstico genético pré-implantação;

f) Outras técnicas laboratoriais de manipulação gamética ou embrionária equivalentes ou subsidiárias” (PORTUGAL, 2006, art. 2º).

A referida lei também versa sobre a gestação de substituição, em seu artigo 8.º. Este pode ser considerado o tema mais polêmico, já que suscitou dois pronunciamentos do Tribunal Constitucional, nos últimos dois anos, na forma dos Acórdãos n.º 465/2019 e n.º 225/2018.

Para facilitar o entendimento dos itens (números) do art. 8º que foram considerados inconstitucionais, é mister a reprodução do texto do dispositivo, com todos os seus respectivos números:

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“1 - Entende-se por “gestação de substituição” qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade.

2 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição só é possível a título excecional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem. (Declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, em sede do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018 - Diário da República n.º 87/2018, Série I de 2018-05-07)

3 - A gestação de substituição só pode ser autorizada através de uma técnica de procriação medicamente assistida com recurso aos gâmetas de, pelo menos, um dos respetivos beneficiários, não podendo a gestante de substituição, em caso algum, ser a dadora de qualquer ovócito usado no concreto procedimento em que é participante. (Declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, em sede do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018 - Diário da República n.º 87/2018, Série I de 2018-05-07)

4 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição carece de autorização prévia do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, entidade que supervisiona todo o processo, a qual é sempre antecedida de audição da Ordem dos Médicos e apenas pode ser concedida nas situações previstas no n.º 2. (Declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, em sede do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018 - Diário da República n.º 87/2018, Série I de 2018-05-07)

5 - É proibido qualquer tipo de pagamento ou a doação de qualquer bem ou quantia dos beneficiários à gestante de substituição pela gestação da criança, exceto o valor correspondente às despesas decorrentes do acompanhamento de saúde efetivamente prestado, incluindo em transportes, desde que devidamente tituladas em documento próprio.

6 - Não é permitida a celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição quando existir uma relação de subordinação económica, nomeadamente de natureza laboral ou de prestação de serviços, entre as partes envolvidas.

7 - A criança que nascer através do recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários. (Declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, em sede do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018 - Diário da República n.º 87/2018, Série I de 2018-05-07)

8 - No tocante à validade e eficácia do consentimento das partes, ao regime dos negócios jurídicos de gestação de substituição e dos direitos e deveres das partes, bem como à intervenção do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e da Ordem dos Médicos, é aplicável à gestação de substituição, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 14[2].º da presente lei. (Declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, em sede do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018 - Diário da República n.º 87/2018, Série I de 2018-05-07)

9 - Os direitos e os deveres previstos nos artigos 12.º e 13.º são aplicáveis em casos de gestação de substituição, com as devidas adaptações, aos beneficiários e à gestante de substituição.

10 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de contrato escrito, estabelecido entre as partes, supervisionado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, onde devem constar obrigatoriamente, em conformidade com a legislação em vigor, as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez. (Declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, em sede do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018 - Diário da República n.º 87/2018, Série I de 2018-05-07)

11 - O contrato referido no número anterior não pode impor restrições de comportamentos à gestante de substituição, nem impor normas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade. (Declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, em sede do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018 - Diário da República n.º 87/2018, Série I de 2018-05-07)    12 - São nulos os negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, de gestação de substituição que não respeitem o disposto nos números anteriores” (Declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, em sede do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018 - Diário da República n.º 87/2018, Série I de 2018-05-07) (PORTUGAL, 2006, art. 8º, grifo e negrito do autor).

O texto do art. 8º, com seus doze números, assim como os números 5 e 6 do art. 14, foram introduzidos pela Lei n.º 25/2016, de 22 de Agosto. Antes dessa alteração legislativa, a lei vedava negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituição. Mas esta situação já era entendida como aquela em que a mulher se dispusesse a suportar a gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando, assim, aos poderes e deveres próprios da maternidade.

Porém, a lei, a despeito de apresentar a referida definição do que seria maternidade/gestação de substituição, dispunha que a mulher que suportasse tal condição seria dada, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que viesse a nascer.

O Acórdão n.º 225/2018

As alterações promovidas pela Lei n.º 25/2016 implicaram em pedido de declaração de inconstitucionalidade, feito sob a modalidade abstrata repressiva, por um grupo de trinta deputados.

Diferentemente do sistema brasileiro, em que não é possível que parlamentar, individualmente ou em grupo, proponha Ação de Direta de Inconstitucionalidade (ADI) (art. 103 da Constituição Federal de 1988), em Portugal, o é. Um décimo dos Deputados da Assembleia da República poderá exercer tal prerrogativa, na forma do artigo 281.º, n.º 1, alínea a, e n.º 2, alínea f da Constituição da República Portuguesa.

Em análise sobre as referidas alterações legislativas, invocou-se, da parte do TC, violação do princípio da dignidade da pessoa humana (resguardado pelos arts. 1.º e 67, n.º 2, alínea e, da Constituição Portuguesa); do dever do Estado de proteção da infância (resguardado pelo art. 69.º, n.º 1, da Constituição Portuguesa); do princípio da igualdade (resguardado pelo art. 13.º da Constituição Portuguesa); e do princípio da proporcionalidade (resguardado pelo art. 18.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa).

Também foram invocados pelo TC entendimentos já expressos no Acórdão n.º 101/2009, cujo objeto foram vários outros dispositivos da Lei n.º 32/2006.  Com base neste acórdão, fora firmado entendimento de que o constituinte não se limitou a impor dever de regulamentar a procriação medicamente assistida. O constituinte fez questão de deixar expresso no texto da Lei Maior princípio ao qual o legislador ordinário deveria se submeter, sendo este o da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, complementarmente ao posicionamento do Egrégio lusitano, é mister citar a alínea “e” do artigo 67 da Constituição:

“1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.

2. Incumbe, designadamente, ao Estado para proteção da família:

(...)

e) Regulamentar a procriação assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana” (PORTUGAL, 1976, art. 67, negrito do autor).

Importante frisar que, antes do pronunciamento TC na forma do Acórdão n.º 225/2018, o n.º 8 do artigo 8.º da  Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, em conjugação com o n.º 5 do seu artigo 14.º, não admitia a revogação do consentimento da gestante de substituição após o início dos processos terapêuticos de reprodução assistida. Cabe esclarecer que n.º 8 do artigo 8.º dispunha que a validade e eficácia do consentimento das partes e o regime dos negócios jurídicos de gestação de substituição seriam aplicáveis à gestação de substituição. Assim, em síntese, seria também válida para a gestão de substituição a seguinte disposição do art. 14: “O consentimento dos beneficiários é livremente revogável por qualquer deles até ao início dos processos terapêuticos de PMA” (PORTUGAL, 2006, art. 14, número 4).

Nesse sentido, em julgamento que reverberou no Acórdão n.º 225/2018, há menção ao Parecer n.º 63, de 2012, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV). Conforme este, a gestação de substituição seria aceita, excepcionalmente, desde que a lei garantisse a observância de treze condições postas. Entre estas, haveria a de que o consentimento pudesse ser revogado pela gestante de substituição em qualquer momento até ao início do parto. Nessas condições, a criança deveria ser considerada para todos os efeitos sociais e legais como filha de quem lhe deu à luz.  

Ao declarar a inconstitucionalidade do n.º 8 do artigo 8.º e de sua conjugação com o n.º 5 do artigo 14.º, o Tribunal firmou entendimento de que a limitação do poder de revogação implicaria para a gestante a impossibilidade de se exonerar da obrigação de suportar a gestação até o fim, bem como da de entregar a criança após o parto. Ou seja, a ela não seria permitido se arrepender da decisão inicial de dispor da sua integridade física, tampouco lhe seria franqueada a liberdade geral de ação e o seu direito de constituir família a partir da criança que gerasse.

Ainda quanto ao arrependimento sobre o compromisso de entregar a criança, o TC entendeu que seria uma violação excessiva dos seus direitos a constituir família e ao livre desenvolvimento da personalidade impedir que a gestante seguisse com um projeto parental próprio que ela houvesse desenvolvido durante a gravidez em relação à criança. Por tais razões também se fulminou de inconstitucionalidade critério legal do n.º 7 do artigo 8.º da Lei nº 32/2006, segundo o qual os beneficiários seriam sempre tidos como pais da criança.

O Acórdão n.º 465/2019

O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 465/2019, por sua vez, foi exarado em consequência de o Presidente da República ter suscitado processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade do Decreto n.º 383/XIII da Assembleia da República (AR), que procurava reintroduzir o n.º 8 do artigo 8.º da Lei n.º 32/2006.

Em Portugal, o processo legislativo também se difere consideravelmente do brasileiro. Lá, denomina-se o texto final de uma iniciativa legislativa aprovado em plenário de Decreto da Assembleia da República. No caso de promulgação pelo Presidente da República e concordância do Primeiro-Ministro, o texto é publicado como Lei em Diário Oficial - Diário da República.

Na forma do artigo 278 da Constituição Portuguesa, é possível que o Presidente da República requeira ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de Decreto da AR que lhe tenha sido enviado para promulgação como lei. Por sua vez, o Tribunal Constitucional deve pronunciar-se em prazo de vinte e cinco dias, que pode ser abreviado pelo Presidente da República, por motivo de urgência.

No Decreto da AR 383/XIII, aprovado em 19 de julho de 2019, o texto do inconstitucional número 8 do artigo 8.º receberia o n.º 13. Também, por instrumento desse Decreto, procurava-se resgatar os critérios para revogação do consentimento prestado pela gestante. Este foi o conteúdo de análise pelo TC:

“Artigo 2.º

Alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho

Os artigos 8.º e 39.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, passam a ter a seguinte redação:

Artigo 8.º

(...)

13 - (Anterior n.º 8.)

(...)

15 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de contrato escrito, estabelecido entre as partes, supervisionado pelo CNPMA, onde consta, obrigatoriamente, entre outras, cláusulas tendo por objeto:

(...)

j) Os termos de revogação do consentimento ou do contrato em conformidade com a presente lei;

(...)” (PORTUGAL, 2019, art. 2º, negrito do autor).

Assim, em consonância ao posicionamento do Acórdão n.º 225/2018, o TC pronunciou-se pela inconstitucionalidade dos dispositivos em análise, por violação do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, analisado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família.

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Sobre o autor
Leonardo de Vargas Marques

Servidor público federal, integrante de carreira de gestão da Secretaria Especial de Tesouro e Orçamento (SETO) do Ministério da Economia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Leonardo Vargas. Lições do constitucionalismo lusitano: o caso da reprodução assistida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 6000, 5 dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78167. Acesso em: 18 abr. 2024.

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