Judicialização da saúde suplementar no Brasil:

a intervenção e a regulamentação do Estado e do Poder Judiciário no funcionamento dos planos de saúde

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28/01/2020 às 12:06
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RESUMO: No Brasil, a Saúde Suplementar assumiu um papel de grande relevância na sociedade contemporânea, principalmente pela precariedade no atendimento e nos serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde – SUS. Assim, torna-se previsível que os beneficiários de planos privados de saúde suplementar busquem a tutela específica perante o Poder Judiciário, quando estão diante de negativas de coberturas, notadamente daquelas não previstas no Rol de Procedimentos Médicos da Agência Nacional de Saúde e/ou contrárias às disposições contratuais. Trata-se de um tema de grande importância e abrangência, pois a manutenção e a sustentabilidade das empresas que atuam no mercado da saúde suplementar é de interesse de toda a sociedade brasileira e mundial. O estudo enfoca a análise da intervenção e a regulamentação do Estado no mercado de saúde suplementar, ou seja, na constante alteração das condições contratuais, que imputa aos planos de saúde responsabilidades imprevistas no âmbito de sua atuação, como também lhes confere atribuições que supostamente poderiam pertencer ao Estado.

Temas: A judicialização no Brasil em números. A Responsabilidade objetiva dos planos de saúde. A prevalência do direito fundamental à saúde de forma ampla, somados às normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto do Idoso. Os reflexos da judicialização da saúde suplementar na atividade das operadoras de planos de saúde e na própria sociedade. O direito fundamental à saúde e (des)respeito dos planos de saúde. O inadimplemento contratual por parte dos planos e a possibilidade de incidência de danos morais. A responsabilidade dos planos de saúde de autogestão, na qual a própria empresa ou outro tipo de organização institui e administra, sem finalidade lucrativa. Os critérios mais recentes do STJ e STF para fornecimento de tratamentos e medicamentos pelos planos.

Palavras-chave: Judicialização. Saúde suplementar. Plano de saúde.


O direito à saúde é um direito essencial ao ser humano, previsto constitucionalmente como um direito fundamental de segunda geração. Mesmo sendo um dever do Estado a efetivação desse direito, o mesmo também é prestado por entidades privadas.

Apesar de o SUS ser um modelo mundialmente conhecido e também admirado, o mesmo possui deficiências, o que faz, muitas vezes, com que a efetivação do direito a saúde seja precária. Nesse vértice surge a saúde suplementar.

A saúde suplementar é compreendida como a atividade que envolve a operação de planos e seguros privados de assistência médica à saúde. Seu surgimento se deu na década de 1960, e a atividade só veio a ser regulamentada com a lei 9656/98, que dispõe sobre os planos de saúde. Atualmente, a regulação da saúde suplementar é feita pela Agência de Saúde Suplementar, a ANS[1].

No plano público, quando não há a efetiva prestação do direito à saúde ao cidadão, o mesmo pode ingressar em juízo para a garantia do seu direito. Tal possibilidade se deve à inafastabilidade da jurisdição, que significa, em linhas gerais, que o Estado não pode se negar a solucionar conflito posto à apreciação da justiça.

Da mesma forma, na saúde suplementar existe a possibilidade de acesso à justiça no caso de negativa ou omissão no que se refere à cobertura da saúde. A judicialização visando o respeito a esse direito é essencial para que não haja graves prejuízos ao paciente.

O estudo enfoca a análise da intervenção e a regulamentação do Estado no mercado de saúde suplementar, ou seja, na constante alteração das condições contratuais, que imputa aos planos de saúde responsabilidades algumas vezes não previstas no âmbito de sua atuação, como também lhes confere atribuições que supostamente poderiam pertencer ao Estado.

O objetivo geral consiste em compreender, em linhas gerais, a saúde suplementar no Brasil. Inicialmente tratou-se a respeito do direito a saúde e a sua disposição na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Posteriormente, iniciou-se um estudo a respeito do plano de saúde, de forma a compreender o seu funcionamento.

Por fim, foi analisada a responsabilidade objetiva do plano de saúde e a aplicação do código do consumidor. Delimitou-se a responsabilidade objetiva e a possibilidade de indenização por danos morais no caso de inadimplemento contratual e a base teórica para o estudo foram decisões judiciais e a doutrina. Posteriormente o texto foi finalizado com a tratativa da judicialização da saúde suplementar.

A justificativa para a escolha do tema é a necessidade de aprofundamento teórico a respeito do tema, de forma a contribuir para a comunidade acadêmica e para a sociedade. O trabalho utilizou o método dedutivo, a metodologia de pesquisa é do tipo bibliográfica, e, portanto, os fundamentos são buscados em livros de grandes autores do direito, em artigos em meio eletrônico e em documentos legais.


1 DO DIREITO A SAÚDE

O direito à saúde é um direito fundamental social, previsto no segundo capítulo do Título II da Constituição Federal, em seu artigo 6º, sendo classificado como um direito de segunda dimensão, que exige que o Poder Público atue em favor dos cidadãos, devido ao seu caráter prestacional. Contudo, já resta entendido que os direitos sociais não somente exigem uma atuação positiva e intervencionista do Estado, como também exigem uma atuação negativa. Nessa linha, Afonso da Silva entende que o direito à saúde, assim como os direitos sociais, requerem prestações positivas e negativas dos Entes[2].

Ainda, convém registrar que o reconhecimento universal do direito à saúde, consignado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, sendo considerada o mais importante documento normativo celebrado no Século XXI, cujo conteúdo descreve os direitos humanos básicos, estabelecendo, em seu art. 25, “que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar”. Desse modo, conclui-se que o direito à saúde pode ser dotado de dupla função:

Tanto como um direito de defesa (proteção do Estado à integridade corporal das pessoas contra agressões de terceiros, por exemplo), quanto como um direito positivo (impondo ao Estado a realização de políticas públicas buscando sua efetivação, tais como atendimento médico e hospitalar, por exemplo), e ambas as dimensões demandam o emprego de recursos públicos para a sua garantia.[3]

Deve-se lembrar, contudo, que o dever estatal não exclui o dever de cada cidadão, da sociedade, da família, ou até mesmo das empresas, conforme parágrafo segundo do artigo 2º da Lei 8080/90[4]. Ou seja, a saúde não é só um direito do indivíduo, da coletividade, é, também, um dever deles.

A Constituição da OMS assegura que o direito à saúde tem reconhecimento em documento solene e corresponde a um direito universal. O melhor estado de saúde que uma pessoa pode alcançar compõe um dos direitos fundamentais de todo o ser humano. Cabe destaque o seguinte trecho do diploma em questão:

[…] A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.

A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estado.[5]

Ainda, há uma íntima ligação do direito à saúde com o direito à vida e a dignidade humana, por sua vez, ocorre porque é através da proteção da saúde que se garante uma qualidade de vida digna e até mesmo a própria sobrevivência, combatendo, tratando e prevenindo doenças que acometem os cidadãos.

Percebe-se que o direito à vida é o primeiro elemento objeto de tutela no artigo 5º, caput da Constituição Federal. Isso se deve ao fato de que a vida é a base estrutural de toda ordem jurídica, já que, sem ela, os direitos não podem existir e nem ser exercidos – página 117 do livro. 

Kimura entende que “o direito à vida envolve dois enfoques: (a) Direito à existência – refere-se ao direito de sobreviver, de defender, de permanecer vivo. (b) Direito à dignidade – Corolário do direito à existência – figura o direito de desfrutar a vida com dignidade”. [6]

A vida é o bem principal do ser humano, sendo seu primeiro valor moral. Junto com a vida, nasceria a dignidade. O direito à vida está amparado no caput do artigo 5º da Constituição da República: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. [...]”. Canotilho destaca que:

[…] O direito à vida é o primeiro dos direitos fundamentais constitucionalmente enunciados. É, logicamente, um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais. […] O conteúdo jurídico objectivo da proteção do bem da vida humana implica, de forma incontornável, o reconhecimento do dever de proteção do direito à vida, quer quanto ao conteúdo e extensão, quer quanto às formas e meios de efectivação desse dever.[7]

A saúde é componente da vida, estando umbilicalmente ligada à dignidade da pessoa humana. Dessa forma, pode-se dizer que o direito à vida e à saúde são consequências da dignidade humana. Assim, conclui-se que o ser humano tem direito a uma vida digna, não podendo ser sacrificada.


2 DOS PLANOS DE SAÚDE

A priori, cumpre salientar que a Constituição de 1988 assegura à iniciativa privada o direito de atuar na assistência à saúde. A participação das instituições privadas nesse campo deverá ocorrer de forma complementar ao sistema único de saúde, mas seguindo as diretrizes por este estabelecidas.

Os contratos oferecidos pelos planos de assistência privada à saúde são atípicos, mistos, de prestação de serviços, de adesão e caráter aleatório, sinalagmático, onerosos, formais e de execução diferida por prazo indeterminado.

Uma vez que se trata de um contrato de consumo, verifica-se que a prestação de serviços de assistência à saúde é oferecida, no mercado, aos consumidores, por meio de um contrato de adesão, padronizado, em que todas as cláusulas são preestabelecidas pelo fornecedor.

Essa contratação sinalagmática gera obrigações recíprocas, em que o consumidor assume o compromisso de pagar periodicamente as prestações pecuniárias correspondentes aos serviços oferecidos pelo fornecedor, ao passo que a este cabe prestar o serviço de cobertura dos procedimentos médicos, hospitalares ou odontológicos, quando o consumidor deles necessitar.

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O conceito de plano de saúde está previsto no artigo 1º da Lei 9.656/1998, sendo que a sua transcrição se faz necessária como forma de exposição técnica do tema:

Plano Privado de Assistência à saúde: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente, escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor.[8]

Vê-se que a lei define os planos de saúde como um serviço que garante a cobertura dos custos relativos à prestação de assistência à saúde a um conjunto de pessoas que são filiadas a esses planos através do pagamento de prestações com valores estabelecidos em contrato.

Ressalte-se que o dispositivo estabelece, de maneira clara, que a finalidade do contrato é garantir a assistência à saúde, por prazo indeterminado e sem limite financeiro, mediante o atendimento efetivado por profissionais ou serviços de saúde, que podem ser livremente escolhidos pelo contratante.

O marco regulatório do país para as operadoras de planos de saúde é a Lei n.º 9.656/98, a chamada Lei dos Planos de Saúde, que, em seu art. 1.º, determina a submissão das empresas que operam planos de assistência à saúde (também conhecidos na doutrina como planos de assistência médico-hospitalar) às disposições estabelecidas em seu texto, definindo o seu campo de abrangência.

O serviço médico-assistencial prestado pela área privada possui extrema relevância social, tendo em vista que, para a concreção do princípio da dignidade humana, previsto no artigo 1.º, III, da Constituição Federal, faz-se necessário estabelecer garantias mínimas de saúde ao indivíduo.

De acordo com dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar, o setor encerrou o ano de 2018 com 47.37 milhões de beneficiários de planos médico-hospitalares,com 747 operadoras ativas com beneficiários[9].

Diante da ineficácia da prestação do serviço público ligado à saúde a todos os membros da sociedade, cresce a cada ano o número de consumidores ligados a planos privados de assistência à saúde. Para Marilise Baú são os contratos de planos de saúde:

[...] revestidos de características especiais que envolvem um feixe de relações, com prestação de serviços contínuos, massificados, prestados por pequeno grupo de empresas, no geral, com a utilização de terceiros para a realização do verdadeiro objetivo contratual, ou seja, a prestação direta do serviço ao consumidor. Para a realização de tal desiderato, ocorre uma cadeia invisível de fornecedores direitos e indiretos, isto é, médicos, paramédicos, prepostos dos hospitais, laboratórios etc.[10]

Insta destacar que o contrato de plano privado de assistência à saúde caracteriza-se por ser um contrato cativo de longa duração, pois a relação contratual se perpetua no tempo, em face do interesse do consumidor em que a relação havida entre as partes seja contínua e duradoura, para que esteja coberto de riscos futuros com assistência à saúde.

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Sobre o autor
Pedro Barasnevicius Quagliato

Mestre em Direito Comercial Internacional - LL.M. (Universidade da Califórnia). Especialista em Direitos do Consumidor (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). MBA Executivo Internacional em Direito da Economia e da Empresa e Pós MBA em Inteligência Empresarial (Fundação Getúlio Vargas). Graduado em Direito (Universidade Paulista de Campinas). Advogado sócio e fundador do Quagliato Advogados. E-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo apresentado pelo autor no IV Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra de 2019.

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