3 DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DOS PLANOS DE SAÚDE E DA APLICAÇÃO DO CÓDIGO DO CONSUMIDOR
A relação jurídica contratual que existe por advento dos contratos de planos de saúde é entendida como sendo relação de consumo, pois existe a figura dos consumidores, que são as pessoas físicas ou jurídicas, destinatárias finais do serviço de plano de saúde, e do fornecedor, pessoa jurídica de direito privado, prestador de serviços na área de saúde suplementar, de acordo com o disposto nos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor, desta feita, se torna indiscutível a aplicabilidade do Estatuto Consumerista.
Nesta toada, agir de boa-fé significa também não abusar do direito de contratar, inserindo cláusulas contratuais em condições gerais que sabe ou deveriam saber contrárias as normas, princípios e regras do ordenamento jurídico.Paulo de Tarso Sanseverino ao tratar da classificação e da função de controle da boa-fé assinala que ela:
Limita o exercício dos direitos subjetivos, estabelecendo para o credor, ao exercer o seu direito, o dever de ater-se aos limites traçados pela boa-fé, sob pena de uma atuação antijurídica, consoante previsto pelo art. 187 do Código Civil brasileiro de 2002. Evita-se assim, o abuso de direito em todas as fases da relação jurídica obrigacional, orientando a sua exigibilidade (pretensão) ou o seu exercício coativo (ação).[11]
Podemos caracterizar esta boa-fé como um patamar de respeito, lealdade, clareza, coerência e fidelidade do fornecedor com relação ao consumidor contratante, visando assegurar segurança ao seu patrimônio, bem como fornecer informação adequada, adquirindo, ainda, o dever moral de não prejudicar ou enganar a parte contratante.
Ao celebrar um contrato de plano de saúde, o consumidor confia na contratada, a ponto de esperar ser atendido com dignidade quando necessitar de uma assistência médico-hospitalar. Prefere pagar uma mensalidade a uma pessoa jurídica administradora, a poupar o mesmo valor e utilizá-lo quando de uma eventualidade. Assim, caso haja prejuízo ao contratante por ato do plano de saúde, haverá a devida responsabilização civil.
De acordo com Carlos Roberto Gonçalves[12], denomina-se objetiva a responsabilidade que independe de culpa. A culpa pode ou não existir, mas será sempre irrelevante para a configuração do dever de indenizar. Indispensável será a relação de causalidade entre a ação e o dano, uma vez que, mesmo no caso de responsabilidade objetiva, não se pode acusar quem não tenha dado causa ao evento. Nessa classificação, os casos de culpa presumida são considerados hipóteses de responsabilidade subjetiva, pois se fundam ainda na culpa, mesmo que presumida. Para o autor:
Uma das teorias que procuram justificar a responsabilidade objetiva é a teoria do risco. Para esta teoria, toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco de dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua conduta seja isenta de culpa. A responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a ideia de risco, ora encarada como “risco-proveito”, que se funda no princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em consequência de uma atividade realizada em benefício do responsável (ubiemolumentum, ibionus); ora mais genericamente como “risco criado”, a que se subordina todo aquele que, sem indagação de culpa, expuser alguém a suportá-lo.[13]
Corroborando, destaca o seguinte julgado proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo:
RESPONSABILIDADE CIVIL – PLEITO AJUIZADO CONTRA SOCIEDADE QUE EXPLORA ATIVIDADE EMPRESARIAL NO RAMO DE ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR. CONFIGURAÇÃO DE RELAÇÃO DE CONSUMO. Responsabilidade objetiva da operadora de saúde quanto aos defeitos do serviço prestado por hospital por ela mantido, na conformidade do art. 14 do CDC. Demonstração inequívoca do defeito do serviço. Configuração manifesta de dano moral. Recurso provido (TJSP – 6ª Câm. de Direito Privado; AC nº 300.707-4/9-00-SP; Rel. Des. Sebastião Carlos Garcia; j. 17/6/2004) (sem grifo no original).[14]
No que se refere a possibilidade de ensejar danos morais pelo inadimplemento contratual no plano de saúde, O Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que o mero inadimplemento não enseja o pagamento de indenização por danos morais ao consumidor. Ou seja, a negativa de cobertura, por si só, não autoriza a condenação:
AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. RECUSA DE CUSTEIO. MERO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, o mero inadimplemento contratual não enseja condenação por danos morais. 2. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ, AgInt no REsp 1772938/CE, Relator Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, Julgamento 25/06/2019, Publicação DJe 01/07/2019).[15]
É sabido que, para que haja a condenação por danos morais, deve haver a efetiva comprovação de dano ou risco de dano. Nesse sentido, é possível compreender que o mero inadimplemento não enseja danos morais. Ademais, o plano de saúde pode ser responsabilizado objetivamente caso haja comprovação do dano.
4 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
A judicialização da saúde é um fenômeno muito presente atualmente e trata-se das situações em que os cidadãos buscam no Judiciário a garantia de seus direitos constitucionalmente previstos, quando o Poder Público ou o plano de saúde se eximem de cumprir com a sua obrigação, ficando inerte e obrigando o Poder Judiciário a intervir para assegurar a efetividade do direito pleiteado, o direito à saúde.
A Constituição assegura à população o direito de acesso à Justiça como um direito fundamental, sendo certo que, atualmente, uma das formas mais efetivas de garantir o direito à saúde é através das demandas judiciais, que fazem o Poder Judiciário intervir nas funções dos outros Poderes, cumprindo um papel que não é de sua competência.
Nessa linha, traz-se o princípio da inafastabilidade jurisdicional, que se liga diretamente com o acesso à justiça ou de recorrer ao Poder Judiciário, sendo previsto como um direito fundamental pela Constituição.
Nessa baila, Gilmar Mendes e Gonet Branco[16] aduzem que o direito à saúde possui tanto um caráter coletivo quanto um caráter individual. Gervasoni e Leal relembram que no Estado Liberal o Judiciário somente tinha a função de aplicar a lei ao caso concreto, inclusive as de status constitucional. Assim segundo as autoras “o Judiciário foi, por muito tempo, o menos relevante dos poderes estatais”.[17]
Nessa linha, elas discorrem que foi com o surgimento do Estado Social e dos direitos fundamentais de segunda dimensão, - lembrando que esses direitos buscam uma ação positiva do estado-, que o foco do Poder passou a ser desempenhado pelo Executivo.
Para Barroso:
A primeira grande causa da judicialização foi a redemocratização do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes.[18]
Foi com o surgimento do Estado Democrático de Direito e com a constitucionalização das garantias fundamentais de segunda geração que o judiciário passou a ter mecanismos para buscar a concretização desses direitos. Nesse contexto histórico, o foco do poder desloca-se para o Judiciário.
Para Barroso, “um dos traços mais marcantes do constitucionalismo contemporâneo é a ascensão institucional do Poder Judiciário”. O autor entende que essa ascensão decorre do aumento da jurisdição constitucional.[19]
Ademais, o que deve ser analisado é que boa parte da população não tem acesso ao judiciário para pleitear seu direito à saúde, ou seja, não tem acesso a um Tribunal. Assim, Nunes e Scaff entendem que recorrer aos Tribunais para fazer valer os direitos individuais não só não gera efetividade para todos, como acentua as desigualdades e injustiças que resultam de diversos fatores[20].
Krell dispõe que “a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como consequência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos”.[21]
O fenômeno da judicialização tem grande responsabilidade no que tange à efetivação dos direitos fundamentais, não podendo o Judiciário se abster de assegurar esses direitos quando pleiteados pelos cidadãos.
As estatísticas sobre a judicialização da saúde no Brasil são alarmantes. Se contemplarmos todas as demandas envolvendo a matéria (de natureza cível, não criminal), considerando os processos ajuizados até 31/12/2018 e em trâmite no 1º grau, no 2º grau, nos Juizados Especiais, no Superior Tribunal de Justiça, nas Turmas Recursais e nas Turmas Regionais de Uniformização, chegamos ao estrondoso número de 2.228.531demandas[22].
Se compararmos com os anos anteriores, houve um significativo aumento em 2019: (i) 1.778.269 em 2018; (ii) 1.346.931 em 2017; (iii) 854.506 em 2016; (iv) 392.921 em 2014 e (v) 240.980 em 2011[23][24].
Figueiredo acredita que existe um novo locus institucional, que se torna acessível a todos na busca da garantia dos direitos sociais.
[...] a crescente busca dos tribunais por uma sociedade interessada na concretização de direitos individuais e coletivos, também, constitui uma forma de participação no processo político, tanto em virtude dos tribunais estarem mais acessíveis ao cidadão do que os demais poderes constituídos, quando em razão da obrigação de, mediante provocação apresentem alguma resposta às contendas que lhes são demandas legitimando garantias e direitos por meio de sentenças. Essa nova concepção participativa não representa, por conseguinte, qualquer incompatibilidade com um regime político democrático porque estabelece uma relação de compromissos entre o poder judiciário e a soberania popular pouco influenciada por decisões adotadas pelas representações majoritárias que se alternam com relativa frequência.[25]
Para Marques (2008), o Poder Judiciário não pode deixar sem resposta um caso onde o cidadão clama por serviço de urgência, tendo em vista que uma vida pode ser salva pela intervenção judicial.
O certo é que, especificamente nas questões de saúde, se percebe um judiciário mais próximo do que Alexy[26] chama de “ponderação de bens”, que é o mesmo que utilizar de argumentos e justificações capazes de fazer prevalecer o que se propõe alcançar quando há um conflito de princípios. E nesse caminho utilizar das interpretações constitucionais significa aplicá-las no caso concreto, não dando margens para distorções semânticas e subjetivismo.
No que se refere a saúde suplementar, de acordo com Mota:
A intervenção judicial, principalmente na seara da saúde suplementar, é compreendida como uma externalidade do negócio, vez que o juiz ao decidir atua como um terceiro cujos atos trarão consequências para a relação entre a operadora e o usuário previamente firmada. O problema envolvendo essa externalidade é a impossibilidade de ela ser internalizada pelas partes, vez que a relação já se encontra devidamente formalizada.[27]
A seguinte decisão concisa tudo que fora exposto no presente trabalho:
PLANO DE SAÚDE. OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. Autora portadora de hérnia discal cervical. Necessidade de realização de procedimento cirúrgico. Negativa da operadora. Sentença de procedência. Conduta abusiva. Relativização do princípio do 'pacta sunt servanda', diante dos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos. Necessidade da cirurgia devidamente comprovada por relatório médico. Cobertura que se impõe. Inteligência da Súmula nº 102 deste E. Tribunal. DANO MORAL. Nem toda negativa de cobertura contratual por plano de saúde tem o condão de causar dano extrapatrimonial indenizável. Não ocorrência de grave ofensa a direito da personalidade. Não demonstração de prejuízo à saúde. Mero dissabor do cotidiano, nas circunstâncias. Sucumbência da operadora do plano de saúde. Pleito indenizatório suplementar à pretensão principal. Sentença mantida. RECURSOS DESPROVIDOS. (TJSP; Apelação 0048138-30.2012.8.26.0114; Relator (a): Paulo Alcides; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito.[28]
Na decisão em contento, fora proposta uma ação de indenização por danos morais devido à negativa da operadora de plano de saúde na realização de procedimento cirúrgico. Houve a judicialização da saúde suplementar, figurando no polo passivo a própria operadora de plano de saúde. Ainda, houve pedido de danos morais e, como consta na decisão, nem toda negativa de cobertura contratual por plano de saúde tem o condão de causar dano extrapatrimonial indenizável. Ademais, deve ser considerada a responsabilidade objetiva do plano de saúde, devendo o mesmo arcar com a sua responsabilidade contratual.