Vivemos momentos de insegurança e incertezas. A pandemia criada pelo vírus COVID-19 tem movimentado os mais diversos setores da sociedade, afetando o campo econômico, social, político, médico e, também, as relações de trabalho.
Diante do quadro que se apresenta, os efeitos decorrentes do coronavírus serão sentidos por muito tempo, gerando consequências mesmo após superada a contaminação.
Todos os segmentos estão sendo atingidos, sendo importante a intervenção do Poder Público para amenizar os impactos financeiros/econômicos sentidos pelas empresas, responsáveis pela geração de emprego e renda.
Em 03 de fevereiro de 2020, o Ministério de Estado da Saúde declarou estado de emergência em razão do coronavírus, sendo que em 20 de março de 2020, por meio do Decreto Legislativo nº 6, foi reconhecido o estado de calamidade pública. Tais eventos levaram o Governo Federal a editar a Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, apresentando medidas na esfera laboral para enfrentamento das crises geradas pelo COVID-19.
Medida Provisória é o instrumento legal que dispõe o Executivo para regulamentar matéria de urgência e relevância nacional, aqui enquadrada a situação criada pelo coronavírus. Tem validade de 60 dias, podendo ser prorrogada por igual período uma única vez e, não sendo votada nesse período, perde validade.
Independentemente disso, a MP 927 estabelece, no parágrafo único do artigo primeiro, que sua duração está condicionada ao período do estado de calamidade pública declarado; porém, caso este seja mantido por período superior aos 120 dias sem sua conversão em lei, a medida provisória perderá efeitos, como dito anteriormente. Por outro lado, caso o estado de calamidade pública seja inferior ao período de duração da medida provisória, não haverá necessidade de sua manutenção, visto que ausente o requisito de urgência e relevância.
O parágrafo único, artigo 1º da MP 927, também deixa evidente que a situação criada pelo COVID-19 se trata de força maior, instituto bastante discutido na seara trabalhista, visto ser comum empregadores buscarem enquadrar como força maior eventuais colapsos financeiros. No presente caso, porém, a crise que se avizinha tem uma justificativa mais do que fundamentada: a pandemia gerada pelo coronavírus.
O artigo segundo da MP 927 estabelece que durante o estado de calamidade pública (limite temporal), apenas para preservação do vínculo empregatício, portanto, com finalidade específica, empregado e empregador poderão firmar acordo individual escrito, o qual, segundo texto legal, “terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais”, desde que respeitados os limites constitucionais.
Referido dispositivo traz para o âmbito da negociação individual, entre patrão e empregado, a adoção de medidas paliativas para manutenção do emprego e enfrentamento da crise, permitindo que as partes definam, de comum acordo, formas para superar o momento enfrentado.
A possibilidade de acordo individual certamente encontrará resistência junto à classe trabalhadora e o Judiciário Trabalhista[2], visto que no Brasil impera a premissa de que o empregador dita as regras de maneira arbitrária e unilateral. Contudo, diante do quadro de crise enfrentado, a negociação individual tem por finalidade, como diz o próprio texto da Medida Provisória, manter os empregados contratados: afinal, melhor estar empregado do que ter o contrato de trabalho rescindido e não receber os haveres trabalhistas. Muitos serão os empregadores que alegarão nos tribunais a impossibilidade de pagamento diante da crise causada pelo coronavírus.
São medidas temporárias que, além de alterar o andamento das sociedades empresárias, igualmente afetam a classe trabalhadora. Porém, não podemos deixar que as empresas cerrem as portas e, consequentemente, acabem com os postos de trabalho.
Acreditamos (e assim se espera!) que a iniciativa do Poder Público não se restrinja às medidas de cunho trabalhista, devendo ampliar sua atuação para regulamentar a isenção e/ou parcelamento de obrigações fiscais e previdenciárias, fornecimento de linhas de crédito, especialmente para micro, pequenos e médios empregadores, bem como alívio na cobrança de juros e encargos moratórios junto às instituições financeiras, notadamente no que diz respeito a cartões de crédito e limites de cheque especial.
Nesse sentido, a MP 927 estabelece no artigo 3º algumas alternativas para preservação do emprego e renda, quais sejam: a) teletrabalho; b) antecipação de férias individuais; c) concessão de férias coletivas; d) aproveitamento e antecipação de feriados; e) banco de horas; f) suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; g) o direcionamento do trabalhador para qualificação e h) o diferimento do recolhimento do FGTS.
Entre as medidas apresentadas, o teletrabalho já é realidade no Brasil, estando regulado na CLT nos artigos 75-A a 75-E. Todavia, necessário atentar para o fato de que é imprescindível aditivo contratual para sua validação e que a MP 927 dispensou o prazo de 15 dias para que o trabalhador retorne ao regime anteriormente contratado (presencial), independente da existência de acordos individuais ou coletivos de trabalho. Oportuno frisar, ainda, que, no tocante ao teletrabalho, o empregado deverá ser notificado da mudança de regime laboral com antecedência de 48 horas, no mínimo, de forma eletrônica ou por escrito.
Quanto aos equipamentos, o artigo 75-D, CLT, já versava sobre sua aquisição e manutenção, tendo a MP 927 caminhado no mesmo sentido, porém, estabelecendo que o ajuste entre empregado e empregador sobre o tema deverá ser celebrado antes da data da mudança do regime de trabalho ou trinta dias após.
A Medida Provisória ainda estabelece que na hipótese de o empregado não possuir os equipamentos tecnológicos necessários, “o empregador poderá fornecer os equipamentos em regime de comodato e pagar por serviços de infraestrutura, que não caracterizarão verba de natureza salarial” ou, sendo impossível essa hipótese (fornecimento de equipamento em comodato), “o período da jornada normal de trabalho será computado como tempo de trabalho à disposição do empregador” (art. 4º, parágrafo 4º, I e II, MP 927/20).
O texto legal editado pelo Executivo ainda estende aos aprendizes e estagiários, estes sem vínculo empregatício, a possibilidade de teletrabalho.
Oportuno registrar, ainda, que a MP 927 nada falou a respeito do controle de jornada, prevalecendo a regra do artigo 62, III, CLT, introduzido pela Lei 13.467/17 (Reforma Trabalhista), que determina estarem dispensados do controle de jornada os empregados submetidos ao regime de teletrabalho.
No que diz respeito à antecipação de férias individuais e concessão de férias coletivas, essa possibilidade já vinha sendo objeto de negociações e acordos coletivos, visto a necessidade de liberação do pré-aviso de trinta e quinze dias, respectivamente.
Com a MP 927, durante o período de calamidade, as férias podem ser concedidas desde que informadas ao trabalhador com antecedência mínima de 48 horas, sendo dispensada a comunicação aos sindicatos da categoria e órgão local do Ministério da Economia quanto às férias coletivas.
As férias individuais não poderão ser inferiores a cindo dias corridos e podem ser concedidas mesmo que não atingido o período aquisitivo. Empregado e empregador também poderão, mediante acordo individual expresso, negociar a antecipação de períodos de férias futuros, sendo que “os trabalhadores que pertençam ao grupo de risco do coronavírus (covid-19) serão priorizados para o gozo de férias, individuais ou coletivas” (artigo 6º, parágrafo 3º, MP 927/20).
O texto legal também estabelece que o adimplemento do terço de férias poderá, a critério do empregador, ser pago até o prazo limite do pagamento do 13º salário (natalinas), sendo que eventual requerimento do empregado para conversão do terço constitucional de férias em abono pecuniário, estará necessariamente submetido à aprovação do empregador.
Já os profissionais da área de saúde ou que desempenhem funções essenciais, caso em férias, poderão ter as mesmas suspensas e devem retornar ao trabalho desde que comunicados, por escrito ou através de meio eletrônico, com 48 horas de antecedência.
No que tange ao aproveitamento de feriados, poderão estes ser antecipados pelo empregador mediante comunicação prévia de, no mínimo 48 horas, devendo os respectivos feriados estar devidamente especificados no comunicado. Podem ser utilizados para compensação em saldo de banco de horas e, no tocante aos feriados religiosos, será necessária manifestação do empregado mediante acordo individual por escrito.
Quanto ao banco de horas, pode ser celebrado mediante acordo individual com compensação em até dezoito meses contados da data de encerramento do estado de calamidade pública. Vale relembrar que, segundo artigo 2º da MP 927, o acordo individual prevalecerá sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, desde que respeitados os limites previstos na Constituição Federal.
Já em relação à suspensão das exigências administrativas atinentes à saúde e à segurança do trabalhador, entre outras disposições, merece destaque o fato de que durante o período de calamidade está suspensa a realização de exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares durante o período respectivo, à exceção do exame demissional, que permanece obrigatório, podendo, porém, ser dispensado caso o exame médico ocupacional mais recente tenha sido realizado há menos de cento e oitenta dias (art. 15, parágrafo 3º, MP 927/20).
A Medida Provisória ainda estabeleceu que uma das alternativas para enfrentamento da crise é direcionar o trabalhador para cursos de qualificação.
Referida possibilidade causou revolta imediata de diversos segmentos da sociedade, porém, não é novidade no meio jurídico.
Trata-se do chamado “Lay-Off”, previsto no artigo 476-A, CLT[3]. Contudo, a MP 927 trouxe significativa alteração ao dispositivo, qual seja, a possibilidade de sua implantação mediante acordo individual de trabalho.
A repercussão foi tão grande que o Presidente da República, via twitter, no dia seguinte à publicação o texto legal, informou que revogaria o artigo 18 da MP 927 para impedir a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional ofertado pelo empregador.
Vale destacar que suspensão do contrato de trabalho é diferente de interrupção do contrato de trabalho, visto que na suspensão não há o pagamento de salários, sendo que para os casos de “Lay-Off” apenas é fornecida ao trabalhador um benefício voluntariamente concedido pelo empregador, porém, sem qualquer natureza salarial ou remuneratória, mas sim compensatória.
De toda sorte, ainda que revogada essa possibilidade junto a MP 927/20, o “Lay-Off” previsto no texto consolidado permanece válido, sendo uma excelente alternativa para enfrentamento da crise econômica, porém, desde que realizado mediante acordo ou convenção coletiva.
Por fim, há o diferimento do pagamento do FGTS, que nada mais representa que a possibilidade de depósito parcelado dos valores referentes às competências de março, abril e junho de 2020, sem incidência de atualização, multa e demais encargos, a partir de julho de 2020, desde que observadas as regras previstas nos artigos 19 a 25 da Medida Provisória nº 927/20.
Além dos pontos acima destacados, oportuno ressaltar que a MP também permite que estabelecimentos de saúde prorroguem a jornada de trabalho e aditem escalas de horas suplementares, definindo como sendo de 180 dias o prazo para apresentação de defesa e recurso administrativos decorrentes de autos de infração trabalhistas e notificações de débitos de FGTS.
Além disso, estabelece que os casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal, fato que terá repercussão não apenas na esfera trabalhista, mas, também, previdenciária.
Enfim, verifica-se pela Medida Provisória que o Governo Federal demonstra preocupação com a manutenção dos empregos, buscando, em meio, ao caos vigente, formas que possibilitem o enfrentamento da crise, cujas consequências ainda estão por vir.
Por maiores que sejam as críticas, atravessamos um período de sacrifício, seja pelo isolamento social, seja pela dificuldade em honrar compromissos profissionais e financeiros. Em situações como esta, a solidariedade deve prevalecer, não podendo, por se tratar de caso de força maior, recair exclusivamente sobre a iniciativa privada o encargo de sobreviver em meio à pandemia.
A desordem atravessada merece a atenção de todos. Cada um deve fazer a sua parte, em especial o governo, que não deve ficar de mãos atadas esperando que o pior aconteça. Entre erros e acertos, devemos tentar equilibrar a balança que envolve empregados e empregadores. Como já disse Cora Coralina, “mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros”.
Seguimos em frente!
Notas
[2] Em nota a ANAMATRA afirmou que “a MP nº 927, de forma inoportuna e desastrosa, simplesmente destrói o pouco que resta dos alicerces históricos das relações individuais e coletivas de trabalho, impactando direta e profundamente na subsistência dos trabalhadores, das trabalhadoras e de suas famílias, assim como atinge a sobrevivência de micro, pequenas e médias empresas, com gravíssimas repercussões para a economia e impactos no tecido social” (in https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/29459-anamatra-se-manifesta-sobre-o-teor-da-mp-927-2020, acesso: 23/03/202, 14:57h)
[3] Art. 476-A. O contrato de trabalho poderá ser suspenso, por um período de dois a cinco meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador, com duração equivalente à suspensão contratual, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo de trabalho e aquiescência formal do empregado, observado o disposto no art. 471 desta Consolidação.
§ 1o Após a autorização concedida por intermédio de convenção ou acordo coletivo, o empregador deverá notificar o respectivo sindicato, com antecedência mínima de quinze dias da suspensão contratual.
§ 2o O contrato de trabalho não poderá ser suspenso em conformidade com o disposto no caput deste artigo mais de uma vez no período de dezesseis meses.
§ 3o O empregador poderá conceder ao empregado ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial, durante o período de suspensão contratual nos termos do caput deste artigo, com valor a ser definido em convenção ou acordo coletivo.
§ 4o Durante o período de suspensão contratual para participação em curso ou programa de qualificação profissional, o empregado fará jus aos benefícios voluntariamente concedidos pelo empregador.
§ 5o Se ocorrer a dispensa do empregado no transcurso do período de suspensão contratual ou nos três meses subseqüentes ao seu retorno ao trabalho, o empregador pagará ao empregado, além das parcelas indenizatórias previstas na legislação em vigor, multa a ser estabelecida em convenção ou acordo coletivo, sendo de, no mínimo, cem por cento sobre o valor da última remuneração mensal anterior à suspensão do contrato.
§ 6o Se durante a suspensão do contrato não for ministrado o curso ou programa de qualificação profissional, ou o empregado permanecer trabalhando para o empregador, ficará descaracterizada a suspensão, sujeitando o empregador ao pagamento imediato dos salários e dos encargos sociais referentes ao período, às penalidades cabíveis previstas na legislação em vigor, bem como às sanções previstas em convenção ou acordo coletivo.
§ 7o O prazo limite fixado no caput poderá ser prorrogado mediante convenção ou acordo coletivo de trabalho e aquiescência formal do empregado, desde que o empregador arque com o ônus correspondente ao valor da bolsa de qualificação profissional, no respectivo período.