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A MP 966:

isenção da responsabilidade de agentes públicos durante a pandemia

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19/05/2020 às 19:15
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IV – A DISTINÇÃO ENTRE AGENTE PÚBLICO E AGENTE POLÍTICO

Há que se distinguir agente público de agente político.

A expressão agente público designa um gênero, do qual são espécies distintas o agente político e o agente administrativo. E a distinção entre essas duas espécies é de fundamental importância quando se trata da questão de saber se aquele que se sente prejudicado por um ato estatal pode, ou não, promover ação cobrando a indenização correspondente diretamente contra o agente público que tenha agido com culpa ou dolo, ou se tal responsabilidade só pode ser cobrada pela entidade pública em ação regressiva. Por isso mesmo vamos explicar em que consiste essa distinção, que infelizmente não tem sido apontada pelos que cogitam da responsabilidade desses agentes, seja para pleitear indenização, seja para julgar esses pleitos, inclusive no Supremo Tribunal Federal.

O agente político é aquele que tem deveres de conteúdo eminentemente político, como o presidente da República, os governadores, senadores, deputados, prefeitos e outros, que exercem atividade política. Tais agentes não dispõem de autoridades superiores às quais estejam subordinados e possam consultar para saber o que devem fazer em face de determinadas situações, e, por isso mesmo, precisam de maior liberdade para agir.


V – OS LIMITES DO DOLO E DA CULPA NA AÇÃO DO FUNCIONÁRIO QUE CAUSE PREJUÍZO A TERCEIRO

Ora, a MP noticiada fala em dolo ou erro grosseiro. Ela não fala em culpa, daí sua inconstitucionalidade.

Ensinou Hely Lopes Meirelles (obra citada, 2006,pág. 470):

“A comprovação do dano e da culpa do servidor é comumente feita através do processo administrativo, findo o qual a autoridade competente lhe impõe a obrigação de repará-lo, através de indenização em dinheiro, indicando a forma de pagamento. Os estatutos costumam exigir a reposição de uma só vez quando o prejuízo decorrer de alcance, desfalque, remissão ou omissão de recolhimento ou entrada no prazo devido”.

Em uma decisão unânime, o STF fortificou seu entendimento quanto à questão, firmando a distinção entre responsabilidade objetiva do Estado decorrente da ação de seus agentes (objetiva) e a verificada nas situações de danos causados pela omissão do Poder Público, conforme se destaca no trecho do acórdão abaixo transcrito:

A posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, perfilhando a doutrina, entre outros, de Celso Antônio Bandeira de Mello. Com efeito, do voto vencedor do Ministro Sepúlveda Pertence, consoante citado pelo autor (Curso de direito administrativo. 15. Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. P. 871 -872):

“Na doutrina brasileira contemporânea, a teoria subjetiva, derivada da culpa, torna admissível imputar ao Estado a responsabilidade pelos danos possibilitados por sua omissão.

Adiante, em uma decisão unânime, o STF fortificou seu entendimento quanto à questão, firmando a distinção entre responsabilidade objetiva do Estado decorrente da ação de seus agentes (objetiva) e a verificada nas situações de danos causados pela omissão do Poder Público, conforme se destaca no trecho do acórdão abaixo transcrito:

I — A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, ocorre diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. II — Essa responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, admite pesquisa em torno da culpa da vítima, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público ou da pessoa jurídica de direito privado prestadora do serviço público. III — Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, numa de suas três vertentes, negligência, imperícia ou imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta de serviço dos franceses.”

Fica nítido que a culpa vem, portanto, de negligência, imperícia ou imprudência. Basta comprová-las para que o agente tenha o dever de ressarcir.

Mas haverá limites com relação ao nexo causal: a culpa reciproca, entre a ação do Estado e do particular. Será o caso do caso fortuito ou da força maior.

A força maior é o acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, por exemplo, uma tempestade ou um raio. Este tipo de evento não pode ser imputado ao Estado, pois independe de sua vontade. Ademais, não há nexo de causalidade entre as ocorrências.

Para Sérgio Cavalieri Filho (Programa de responsabilidade civil. 8. Ed. São Paulo: Atlas, 2008):

“O caso fortuito e a força maior excluem o nexo causal por constituírem também causa estranha à conduta do aparente agente, ensejadora direta do evento. Eis a razão pela qual a jurisprudência tem entendido que o defeito mecânico em veículo, salvo em caso excepcional de total imprevisibilidade, não caracteriza caso fortuito, por ser possível prevê-lo e evita-lo através da periódica e adequada manutenção. O mesmo entendimento tem sido adotado no caso de derrapagem em dia de chuva, porquanto, além de previsível, pode ser evitado pelo cuidadoso dirigir do motorista.”


VI – A LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS JURÍDICAS

Os artigos 20 a 24 instauraram um novo corolário do princípio do devido processo legal, qual seja, o princípio do devido processo decisório. Apesar de o legislador almejar a segurança jurídica, percebeu-se que ele foi além, uma vez que traduziu nuances de certeza jurídica. Paulo Nader (Introdução ao estudo do direito) trata da questão estabelecendo a diferença entre a segurança jurídica e a certeza jurídica, a saber:

“Os conceitos de segurança jurídica e de certeza jurídica não se confundem. Enquanto o primeiro é de caráter objetivo e se manifesta concretamente através de um Direito definido que reúne algumas qualidades, a certeza jurídica expressa o estado de conhecimento da ordem jurídica pelas pessoas. Pode-se dizer, de outro lado, que a segurança possui um duplo aspecto: objetivo e subjetivo. O primeiro corresponde às qualidades necessárias à ordem jurídica e já definidas, enquanto o subjetivo consiste na ausência de dúvida ou de temor no espírito dos indivíduos quanto à proteção jurídica”.

De acordo com a doutrina de Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras de Freiras citada pelo Ministro Edson Fachin, o artigo 20 da LINDB é erigido para compatibilizar as decisões administrativas, controladoras e judiciais à ordem constitucional vigente, inaugurando um “devido processo legal decisório”.

O Ministro Edson Fachin, em decisão interlocutória, dissertou sobre o art. 20, afirmando que tal dispositivo homenageia o consequencialismo jurídico como corolário do princípio da segurança jurídica. Leciona também, citando Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras de Freiras que o dispositivo em questão instaura um devido processo legal decisório. Confira:

“A despeito disso, na qualidade de Estado-Juiz, impende apontar que art. 20 do Decreto-Lei 4.657/1942, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, consolidou, em algum grau, no ordenamento jurídico o dever de obediência a prescrições emanadas do consequencialismo jurídico como corolário necessário do princípio da segurança jurídica e do interesse social.

Eis o teor do dispositivo supracitado:

“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

De acordo com Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras de Freiras, essa norma vincula ao Poder Judiciário e significa o seguinte:

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‘A prescrição é um tanto mais sofisticada. Estabelece um devido processo legal decisório, mais interessado nos fatos, por intermédio do qual os decisores terão de explicitar-se: (i) dispõem de capacidade institucional para tanto, ou se, excepcionalmente, estão exercendo uma função que lhe é atípica, mas por uma necessidade pragmática, porém controlável; (ii) a decisão que será proferida é a mais adequada, considerando as possíveis alternativas e o seu viés intrusivo; e (iii) se as consequencias de suas decisões são predicadoras de medidas compensadoras, ou de um regime transição. Cuida-se de uma motivação para além da exigida pelo disposto no artigo 50 da Lei 9.784/1999. Não se trata de um dever de utilização de uma ‘retórica das consequências’, como já se cogitou, nem, tampouco, tem o propósito de tornar o controle mais lasso. Quem exerce o controle não pode descurar o seu autocontrole.

Na verdade, trata-se de dispositivo que visa estabilizar e a conferir exequibilidade às decisões do controlador. E, de outro bordo, estabelecer parâmetros a partir dos quais tais decisões poderão ser controladas. Assim é que, caso se trate de decisão na esfera administrativa, a inobservância dessa exigência poderá importar na sua invalidação, por ausência de motivos, como determina o disposto no artigo 2º, d e parágrafo único, d, ambos da Lei 4.717/1965 (Lei da Ação Popular). De outro lado, caso tal inobservância seja observada em provimento jurisdicional, tratar-se-á de decisão considerada sem fundamentação, nos termos do artigo 489, parágrafo 1º, do CPC 2015, o que pode ensejar a sua nulidade (nos termos do artigo 1.013, parágrafo 3º, I, do CPC 2015). O dispositivo, portanto, não só é compatível com sistema normativo já vigente como, de resto, com ordenamento constitucional brasileiro’.” (Disponível em: . Acesso em 13.09.2018)

Em 2018, a Lei de introdução às normas brasileiras foi modificada com acréscimo de dois artigos, relativos ao direito administrativo:

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. (Regulamento)

§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.

Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A MP 966:: isenção da responsabilidade de agentes públicos durante a pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6166, 19 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82177. Acesso em: 25 nov. 2024.

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