3 DO LEVANTAMENTO DO SIGILO DO VÍDEO DA REUNIÃO INTERMINISTRIAL.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, se posicionou contrário a divulgação integral do vídeo da reunião interministerial, defendendo tão somente a degravação dos trechos que diziam respeito ao inquérito que apura suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Alegou ainda que a divulgação integral da reunião poderia configurar “palanque eleitoral precoce”.
Por sua vez, a AGU se manifestou favorável a todas as falas do presidente Bolsonaro, à exceção daquelas que se relacionassem a outros países, e também dos demais ministros.
Não obstante, o ministro Celso de Melo decidiu autorizar a divulgação integral da gravação da reunião ministerial, concluindo (STF):[3]
“[...] Ao concluir a presente decisão, ressalto, em síntese, os fundamentos que lhe dão suporte e que me levam a determinar o levantamento da nota de sigilo incidente sobre a gravação da reunião ministerial de 22/04/2020, realizada no Palácio do Planalto: (a) reconhecimento da plena legitimidade da requisição judicial de atos e documentos da Presidência da República, por ser inoponível ao Poder Judiciário, especialmente ao seu órgão de cúpula, a cláusula do privilégio executivo (“executive privilege”), ainda mais quando se atribuir ao Chefe de Estado suposta prática criminosa, valendo referir, nesse sentido, importante precedente da Suprema Corte dos EUA, verdadeiro “landmark ruling”, firmado no julgamento do caso “Watergate” (United States v. Nixon, 1974); (b) a entrega, pelo Senhor Presidente da República, da mídia digital que lhe foi requisitada pelo Supremo Tribunal Federal, contendo o registro audiovisual da reunião ministerial em questão, representou, na perspectiva do dogma da separação de poderes, ato de respeito presidencial ao dever geral de fiel cumprimento e de indeclinável obediência a ordens judiciais, pois a ninguém é dado – nem mesmo ao Chefe de Estado (CF, art. 85, inciso VII) – transgredir, por mero voluntarismo ou por puro arbítrio, decisões judiciais, eis que o inconformismo com elas tem no sistema recursal o meio legítimo de impugnação dos atos emanados do Poder Judiciário; (c) respeito ao direito dos cidadãos que, fundado no princípio da transparência, traduz consequência natural do dogma constitucional da publicidade, que confere, em regra, a qualquer pessoa a prerrogativa de conhecimento e de acesso às informações, aos atos e aos procedimentos que envolvam matéria de interesse público; (d) reconhecimento de que não deve haver, nos modelos políticos que consagram a democracia, “espaço possível reservado ao mistério” (Bobbio), pois o vigente estatuto constitucional brasileiro – que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta (RTJ 139/712-732, Red. p/ o acórdão Min. CELSO DE MELLO) – erigiu a publicidade dos atos, das informações e das atividades governamentais à condição de valor fundamental a ser fielmente observado; (e) inexistência, no caso, de qualquer restrição ao direito público subjetivo do cidadão quanto ao conhecimento geral dos procedimentos e informações estatais relevantes que veiculem matéria de interesse público, porque a gravação da reunião ministerial em causa (que não tratou de temas sensíveis nem de assuntos de segurança nacional) não sofreu a classificação administrativa de “ultrassecreta, secreta ou reservada” (Lei nº 12.527/2011, art. 24, “caput”), circunstância que torna essa reprodução audiovisual inteiramente aberta ao acesso público, conferindo-se, desse modo, real efetividade ao postulado da transparência administrativa (que constitui regra geral), assim viabilizando o pleno controle social da administração pública e do exercício do poder estatal; (f) a recusa de liberação total, ressalvadas, tão somente, as menções a dois Estados estrangeiros, constituiria indevida sonegação de informações relevantes não só a quem sofre a presente investigação penal, mas, igualmente, aos magistrados do Supremo Tribunal Federal, que deverão julgar a causa, se oferecida denúncia (CF, art. 102, I, “b”), e aos Senhores Deputados Federais, que dispõem do poder de outorgar, ou não, a esta Corte autorização para a válida instauração de processo penal contra o Senhor Presidente da República (CF, art. 51, I, c/c o art. 86, “caput”); (g) preservação do exercício do direito de defesa, que deve ser amplo (CF, art. 5º, LV), em ordem a tornar efetivas as prerrogativas que derivam do postulado constitucional do devido processo legal, entre as quais aquela que ampara o direito à prova (RT 542/374 – RT 676/300 – RT 723/620), a significar que não se pode comprometê-lo nem frustrá-lo, mediante indevida exclusão dos elementos probatórios e informativos considerados relevantes e essenciais à prática da liberdade de defesa (RTJ 92/371 – RT 415/80 – RT 555/342-343 – RT 639/289), sob pena de inqualificável transgressão ao sistema e aos valores que regem, em nosso modelo jurídico, o processo penal democrático; e (h) a “disclosure” do conteúdo do que se passou na reunião ministerial de 22/04/2020 – além de revelar absoluta falta de “gravitas” de alguns de seus participantes, consideradas as expressões indecorosas, grosseiras e constrangedoras por eles pronunciadas – ensejou a descoberta fortuita ou casual de aparente crime contra a honra dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, supostamente perpetrado pelo Ministro da Educação e que, por qualificar-se como prova inteiramente lícita (RTJ 193/609- -610 – RT 888/618 – RT 894/635, v.g.), constituirá objeto de comunicação aos destinatários de tal possível delito.
Sendo assim, e tendo presentes as razões expostas, determino o levantamento da nota de sigilo imposta em despacho por mim proferido no dia 08/05/2020 (Petição nº 29.860/2020), liberando integralmente, em consequência, tanto o conteúdo do vídeo da reunião ministerial de 22/04/2020, no Palácio do Planalto, quanto o teor da degravação referente a mencionado encontro de Ministros de Estado e de outras autoridades. Assinalo que o sigilo que anteriormente decretei somente subsistirá quanto às poucas passagens do vídeo e da respectiva degravação nas quais há referência a determinados Estados estrangeiros. Transmita-se, pelo meio mais rápido possível, cópia da presente decisão aos eminentes Senhores Procurador-Geral da República e Advogado-Geral da União, bem assim à Excelentíssima Senhora Chefe do Serviço de Inquéritos da Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal (SINQ/DICOR), Dra. CHRISTIANE CORREA MACHADO, dando-se ciência imediata, ainda, aos ilustres Senhores Advogados do Senhor Sérgio Fernando Moro.
Determino, finalmente, às ilustres autoridades policiais federais a entrega imediata aos Senhores Advogados de Sérgio Fernando Moro, bem assim aos eminentes Senhores Procurador-Geral da República e Advogado-Geral da União, de cópias da gravação da reunião ministerial de 22/04/2020 e, também, de sua respectiva degravação, ambas objeto do Laudo nº 1.242/2020-INC/DITEC/PF, observadas, porém, as exclusões por mim indicadas – já efetuadas e constantes do Laudo em questão – no despacho que exarei, em 20/05/2020, dirigido à Polícia Federal, mediante o Ofício nº 02/2020-GMCM[...]”
GRECO e SANCHES (2020, pág. 252) ensinam:
Além da garantia constitucional, o Brasil é signatário de tratados internacionais, que igualmente protegem a vida privada do cidadão e a inviolabilidade da correspondência. O Pacto de São José da Costa Rica (art.11) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 17) garantem que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, de sua família, em seu domicílio ou sem sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.[4]
4 DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O princípio da publicidade é previsto na Constituição da República pelo menos em três importantes passagens. Como direito fundamental, artigo 5º, inciso LX, CF/88, prevê que a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigir.
Encontra-se previsto, também, no artigo 37, em conjunto com outros princípios, sendo que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
E, por fim, assegura a Carta Magna a publicidade no artigo 93, inciso IX, quando se deflui que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
Urge salientar que a publicidade deve guardar harmonia com outros princípios também previstos no mesmo rol do artigo 5º, CF/88, e aqui, torna-se importante mencionar os incisos X, segundo o qual, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
O ministro Celso de Melo, em sua decisão, também lança os argumentos acerca do princípio da publicidade, a saber:
“[...] Daí a lição magistral de NORBERTO BOBBIO sobre o tema (“O Futuro da Democracia”, 1986, Paz e Terra), que assinala – com especial ênfase – não haver, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério. Esse magistério de NORBERTO BOBBIO tem orientado os sucessivos julgados que venho proferindo no Supremo Tribunal Federal (Inq 4.827/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), pois há que se ter presente que o novo estatuto político brasileiro – que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta – consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucional a ser observado (RTJ 139/712-732, Red. p/ o acórdão Min. CELSO DE MELLO), inscrevendo-a, em face de sua alta significação, na própria declaração de direitos e garantias fundamentais reconhecidos e assegurados pela Constituição da República aos cidadãos em geral. Na realidade, os estatutos do poder, em uma República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério, porque a supressão do regime visível de governo – que tem na transparência a condição de legitimidade de seus próprios atos e resoluções – sempre coincide com os tempos sombrios em que declinam as liberdades e transgridem-se os direitos fundamentais dos cidadãos. Daí o autorizado magistério da eminente Professora e Ministra CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA (“Princípios Constitucionais da Administração Pública”, p. 242/243 e 249, itens ns. 1 e 3.2, 1994, Del Rey):
“A Democracia moderna, e, em especial, aquela idealizada no Estado Contemporâneo, estabelece como princípio fundamental o da transparência, pois a relação política somente pode ser justificada pelo respeito ao outro e a todos, solapada como foi a tese e a prática de supremacia da vontade do governante sobre os governados.
Tendo adotado o princípio democrático e, ainda, o republicano, não se poderia pensar no afastamento do princípio da publicidade administrativa no Direito brasileiro. A Constituição não deixou que o princípio emergisse daqueles outros e o fez expresso. Não o restringiu a princípio concernente à atividade administrativa, mas a todas as funções e atividades estatais (arts. 5º, incisos XXXIII, LX, LXXII, 37, 93, IX, dentre outros). Tornou-o assegurado aos indivíduos, que o têm como direito fundamental dotado de garantia específica constitucionalmente instituída[...]”
5 A TIPICIDADE PENAL DE ABUSO DE AUTORIDADE – ARTIGO 28 DA LEI Nº 13.869/2019
A Lei de abuso de autoridade, Lei nº 13.869, de 2019, entrou em vigor recentemente no Brasil, depois de inúmeras discussões em torno da construção dos tipos penais.
Voltando ao tema da autorização para divulgação integral do vídeo da reunião interministerial, do dia 22 de abril de 2020, coube ao ministro do STF, Celso de Melo, a decisão sobre o levantamento do sigilo e sua consequente decisão acerca das partes da reunião que pudessem ser divulgadas sem comprometer supostas informações estratégicas de soberania nacional e motivos de segurança nacional. Antes, é claro, o ministro Celso de Melo assistiu ao vídeo antes de sua decisão, já sabendo que a Advocacia Geral da União e a Procuradoria Geral da República haviam opinado pela divulgação parcial.
O ministro do STF, Celso de Melo, decidiu autorizar a divulgação integral do vídeo da reunião interministerial, quando vieram à tona inúmeras revelações, algumas de interesse público, outras de cunho particular, expondo a intimidade ou a vida privada, e, mais que isso, ferindo a honra ou a imagem do presidente da República e de participantes da reunião que não eram objeto de investigações, alcançando pronunciamento de ministros, presidentes de bancos e outros.
É certo que a Lei de Abuso de Autoridade prevê dispositivo penal a quem divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado, com pena de detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, consoante artigo 28 da Lei nº 13.869/2019, in verbis:
Art. 28. Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
A questão chave aqui é saber se o ministro do STF, Celso de Melo violou ou não as normas do artigo 28 da Lei de Abuso de Autoridade.
Analisando as elementares do tipo em apreço, percebe-se que o delito é essencialmente doloso, não prevendo a excepcionalidade da forma culposa, traduzido no verbo uninuclear de divulgar que quer dizer difundir, espalhar, disseminar, publicar, propagar, revelar algo, sendo como objeto material, a gravação de alguma coisa. A conduta ilícita consiste justamente em divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se presente produzir.
Além de divulgar no todo em parte a gravação, sem nenhuma relação com a prova que se queira produzir, deve a revelação da gravação causar desnecessária exposição da intimidade ou vida privada ou ainda ferindo a honra ou a imagem .do investigado ou acusado, este na fase processual e aquele na fase investigativa.
Trata-se de delito de médio potencial ofensivo, cuja pena mínima não é superior a 01(um) ano, sendo hipótese de cabimento da suspensão condicional do processo, artigo 89 da Lei nº 9.099/95, se preenchidas, é claro, as demais condições exigidas por lei.
Trata-se de crime próprio. Só pode ser praticado por agente público que tenha o dever de assegurar o sigilo do conteúdo da gravação ou trechos da gravação. Sujeito passivo é a pessoa física ou jurídica atingida pela ação criminosa do agente público. O bem juridicamente protegido são os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, em especial, a honra, a intimidade, a imagem e a dignidade da pessoa humana, artigo 5º, inciso X, da CF/88.
O momento consumativo ocorre com a realização do núcleo do tipo, ou seja, com a divulgação da gravação ou trechos da gravação, independentemente da efetiva lesão dos direitos à intimidade ou imagem do indivíduo. Portanto, trata-se de crime formal. Admite-se a tentativa, em face da possibilidade do fracionamento da conduta do autor.
Quanto à competência para o processo e julgamento, cabe via regra à Justiça estadual, salvo se presente alguma das hipóteses do artigo 109 da CF/88, quando a competência será da Justiça Federal.