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Trabalho infanto-juvenil: proteção e inserção no mercado de trabalho

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O adolescente precisa ser introduzido gradativamente no mercado de trabalho através de políticas que garantam o seu crescimento como ser social. Do contrário, qual será a carreira de um menor marginalizado pelo Estado e pela sociedade?

1. INTRODUÇÃO

O trabalho infanto-juvenil é de extrema relevância na construção de uma sociedade mais digna, justa, solidária e igualitária. A Lei confere às crianças e adolescentes o direito fundamental de não trabalhar, o qual é reconhecido na Constituição da República e amparado pelo Princípio da Proteção Integral. Contudo, mesmo assim, o trabalho precoce permanece como uma realidade na sociedade brasileira, presa aos tentáculos da necessidade de busca pela sobrevivência.

Sabe-se que é direito das crianças e adolescentes o acesso à educação, alimentação, proteção, saúde, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária, colocando-os a salvo de toda violência, discriminação, exploração e crueldade. Por essas razões a eliminação da exploração do trabalho infanto-juvenil e sua correta inserção no mercado de trabalho se faz tão importante e está entre as prioridades da sociedade atual.

Porém, a ausência de políticas de inserção social e, principalmente, econômica, referente a essa faixa etária, infelizmente faz com que se cresça a miséria e a pobreza, levando crianças e adolescentes à marginalidade no âmbito do mercado de trabalho. Tais situações são geradas em razão da necessidade que esses pequeninos possuem de ajudarem suas famílias a sobreviverem, incrementando ganhos financeiros na renda familiar total através de atividades laborais.

Vale dizer que o fenômeno da globalização dos mercados contribui para agravar essa situação no país, somado aos altos índices de estratificação social. Isso porque a globalização trouxe o acirramento nas disputas por mercados com grandes reflexos na redução de postos de trabalho no mundo e aumento de mão de obra barata.

Sendo assim, é no universo da análise dos abusos nas condutas dos empregadores e suas respectivas responsabilidades diante das políticas de inclusão de crianças e adolescentes na população economicamente ativa que este estudo se faz presente.

Desta forma, esta pesquisa tem por escopo analisar o trabalho infanto-juvenil a partir de uma abordagem histórico-predatória da mão de obra de crianças e adolescentes, identificando práticas abusivas e ilegais do ingresso desses indivíduos no setor privado.

Objetiva-se, ainda, relacionar as políticas e ações públicas, planos e programas governamentais desenvolvidos no intuito de prevenir, combater e erradicar a exploração da mão de obra infanto-juvenil, bem como o papel e atuação dos operadores do Direito na repressão da inclusão ilegal desses jovens no mercado de trabalho. Assim, utilizar-se-á de pesquisas bibliográficas, legislações, doutrinas e decisões judiciais sobre o tema em questão para embasar a discussão.


2. DA CONTEXTUALIZAÇÃO DO TRABALHO INFANTO-JUVENIL

A exploração do trabalho do menor de idade é fato vivenciado não somente na sociedade atual, mas é prática corriqueira desde tempos mais antigos. Porém, a exploração do trabalho infantil só ganhou relevância a partir do período da Revolução Industrial.

No Brasil, desde o seu “descobrimento” em 1.500 d.C., é possível verificar o abuso na exploração do trabalho infantil. Nas caravelas portuguesas, crianças e adolescentes entre 9 e 16 anos eram submetidas a trabalhos perigosos, conhecidos como “pequenos grumetes”, ocasião em que iniciavam a carreira na Armada. Estima-se que 10% da frota de Cabral era formada por estes pequenos marinheiros, que trabalhavam no convés, fazendo faxina nos porões e remendando velas (RIBEIRO, 2009).

Além disso, sabe-se, que os escravos não eram vistos como pessoas e sim como coisas, estando sujeitos aos mandos de seus senhores que os forçavam a trabalhar desde a tenra idade. Essa realidade é mencionada por Erotilde Ribeiro dos Santos Minharro:

Aos quatro anos de idade os escravos desempenhavam tarefas domésticas leves nas fazendas; aos oito anos poderiam pastorear gado; as meninas aos onze anos costuravam; e, aos quatorze anos, tanto os meninos quanto as meninas, já laboravam como adultos (MINHARRO, 2003, p. 22).

No mesmo sentido, José Ribeiro Dantas Oliva (2006, p. 84-85) em sua crítica sobre a sociedade atual, alerta que "[...] mais de um século depois, trabalhadores brasileiros ainda são reduzidos à condição análoga a de escravos, de diversas formas, inclusive, crianças e adolescentes".

Vale dizer, por fim, que a primeira norma brasileira que tratou de proteger o trabalhador infanto-juvenil ocorreu por meio do Decreto nº 1.313 de 1891, no qual proibia-se o trabalho de crianças e adolescentes nas fábricas (BRASIL, 1891).

2.1. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DE PROTEÇÃO AO TRABALHADOR INFANTO-JUVENIL NO BRASIL

No estudo realizado por Evaristo de Moraes, exposto na obra 'A escravidão africana no Brasil', consta que a primeira "fumaça" de intenção de se estabelecer uma norma com escopo de dispor sobre a utilização de mão-de-obra infanto-juvenil escrava surgiu em 1825, por meio de um projeto de lei assinado por José Bonifácio de Andrada e Silva, no qual, dentre outras disposições, vedava-se trabalhos insalubres e demasiados a escravos menores de 12 anos e velava-se pela saúde da escrava grávida e depois do parto (LIMA apud PEREZ, 2008, p. 46).

Após a abolição da escravatura, surgiu outro problema social no país. As famílias, constituídas por escravos libertos e sem trabalho, não tinham como sustentar seus filhos, cujos filhos de escravas de pais desconhecidos ficavam perambulando pelas ruas. Conforme Viviane Matos González Perez (2008, p. 40), "[...] iniciava-se, assim, o processo de marginalização das crianças pobres, ainda presente em nossa sociedade atual".

Por sua vez, Jose Ribeiro Dantas Oliva (2006, p. 42) pondera que, em decorrência desse fenômeno social, os governantes começaram a se preocupar com a criminalidade, propondo como solução para o abandono e delinquência juvenil o trabalho infanto-juvenil, em que os pequenos trabalhadores eram explorados livremente sob o argumento ao estimulo e aceitação do trabalho desde a tenra idade.

Assim, primeira legislação pátria a tratar do tema foi o Decreto nº 1.313 de 1891, no qual se regulamentou o trabalho das crianças e adolescentes nas fábricas. Porém, esta Lei, não permitia que menores de 12 anos trabalhassem, exceto para fins de aprendizagem, nas fábricas de tecidos, aos maiores de 8 anos de idade (OLIVA, 2006).

Segundo Erotilde Ribeiro dos Santos Minharro (2003, p. 24), a primeira tentativa parlamentar com o propósito de regular o trabalho industrial se deu com com o Projeto nº 4-A de 1912. Nele se proibia o trabalho de menores de 10 anos e se limitava o tempo de trabalho, dos 10 aos 15 anos, a 6 horas diárias.

Até 1919, as discussões sobre o referido projeto ainda perduravam, cuja exploração de menores em fábricas chegou a ser denunciada por Nicanor Nascimento, no seguinte trecho: "[...] em 100 infantes de uma fábrica, um médico achou 80% de homens perdidos. Todas as formas de depauperamento, de desnutrição, dos vícios orgânicos e vícios morais invalidaram esses infantes" (SÜSSEKIND et al., 2000, p. 915).

Somente em 1927, promulgou-se o Código de Menores Brasileiro, através do Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, o qual recebeu a alcunha de “Código de Mello Matos”, que, dentre outras questões, dedicou-se a tratar do trabalho das crianças e dos adolescentes. Em seu Capítulo IX (arts. 101 a 125), o decreto supramencionado trouxe a proibição do trabalho aos menores de 12 anos e do trabalho noturno aos menores de 18. Além disso, vedava-se, aos menores de 14 anos, o exercício de emprego em praças públicas (SUSSEKIND et al., 2000, p. 915).

Já em 1979, o Decreto nº 6.679 aprovou uma nova codificação, ocasião em que fora revogado o diploma anterior. Contudo, a nova legislação não trouxe muita inovação em relação a matéria. Segundo Aldaíza Sposati (1998 apud NASCIMENTO, 2003, p. 81), manteve-se a mesma concepção do código revogado, "[...] dedicando-se exclusivamente ao menor em situação irregular, ou seja, àquele que não possuía o essencial para sua subsistência, dada a falta de condições econômicas do responsável".

Após a Constituição Federal de 1988, foi editada a Lei nº 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em que se buscou adequar a realidade vivida por crianças e adolescentes ao princípio da intangibilidade da dignidade humana, pautando-se no princípio da proteção integral, importante instrumento de proteção e relevante vetor interpretativo (COSTA, 2004).

É possível observar que somente após a Carta Cidadã que o legislador pátrio agiu de forma coerente com o texto constitucional e com documentos internacionais nos quais o Brasil era signatário – Convenções 138, 146, 182 e 190 da OIT/ONU (ONU, 2020).

Assim denota-se, no contexto histórico de tratamento ao trabalho infanto-juvenil, uma vasta e irregular legislação que demonstra uma postura omissiva do legislador estatal, tanto na proteção do menor, quanto na inserção desses no mercado de trabalho.

2.2. O TRABALHO INFANTO-JUVENIL NO ÂMBITO DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO (CLT)

O Decreto-lei nº 5.452/43, que dispõe sobre a Consolidação das Leis do Trabalho e regula as relações jurídicas estabelecidas entre empregador e trabalhador, trata em seu Capítulo IV, especificamente, sobre a “PROTEÇÃO AO TRABALHO DO MENOR”, tratando da referida matéria no art. 402 ao artigo 441 (BRASIL, 1943).

Para efeito desta legislação, considera-se menor o trabalhador de quatorze até dezoito anos de idade (art. 402). Esta norma traz, nos dispositivos seguintes, a proibição do trabalho para menores de 14 anos; a condição de aprendiz para menores de 14 a 16 anos; e a vedação total, ao menor de 18 anos, do exercício de atividades à noite ou em locais que lhe prejudique a formação e desenvolvimento físico, psíquico, moral e social (BRASIL, 1943).

Tal condição possui caráter protetivo, na medida em que o trabalho gera efeitos no mundo jurídico pela impossibilidade de devolução das partes ao status quo ante, pois não há como devolver ao infanto juvenil a força de trabalho despendida. Assim, nos termos da legislação trabalhista, havendo prestação de serviços por menor de idade de forma ilegal, este fará jus a todos os direitos trabalhistas do trabalho que fora prestado. Nesse sentido, salienta Ari Pedro Lorenzetti: 

(...) não significa que o início da execução do contrato sane todos os vícios relativos à capacidade do trabalhador. Embora destinatário da norma protetiva, o fato de já estar em curso o contrato não lhe garante o direito de mantê-lo, mas apenas de obter a contraprestação referente ao trabalho já desenvolvido. Assim, ainda que a nulidade não prejudique o direito do obreiro, isso não significa que, pelo só fato de ter firmado o contrato, o menor adquira o direito de dar-lhe prosseguimento. Contudo, embora o contrato tenha sido firmado durante o período da menoridade, adquirindo, posteriormente, o trabalhador capacidade laboral plena, o vício inicial resta sanado, pelo trato sucessivo que marca a relação de emprego, já não havendo razão para pretender rescindir o contrato, por não mais haver óbice algum à sua manutenção (LORENZETTI, 2008, p. 20).

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Portanto, o trabalho realizado por crianças e adolescentes, ainda que proibido, deve ser compensado, sendo-lhe devido todos os direitos trabalhistas inerentes ao contrato de trabalho ora firmado. Tal interpretação visa proteger o trabalho infanto-juvenil e evitar o enriquecimento ilícito por parte do tomador dos serviços.

2.3. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL AO INFANTO-JUVENIL NAS RELAÇÕES TRABALHISTAS

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, antecipando-se à Declaração dos Direitos da Criança de 1989, contemplou, de modo explícito, em seu artigo 227, § 3º, o direito à proteção especial. Surgiu, assim, o Princípio da Proteção Integral, que fora ratificado, posteriormente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 (BRASIL, 1988).

Convém frisar que o termo "integral" não é despropositado. Isso porque, nos termos do artigo 227, impõe-se à família, ao Estado e à sociedade, o dever conjunto e prioritário de cumprir com os objetivos lançados, quais sejam: assegurar as crianças e aos adolescentes uma vida digna com saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura e respeito, protegendo-os de qualquer discriminação, violência, exploração, negligência, crueldade e/ou opressão (BRASIL, 1988).

À família cabe a tutela de garantir a integridade física, moral, psíquica e emocional do menor, bem como o seu sustento, até que ele alcance o desenvolvimento completo. À sociedade compete o dever de facilitar a integração dos jovens no âmbito comunitário, respeitando sua individualidade e ajudando-os a desenvolver suas potencialidades. E, ao Estado, o dever de elaborar e fazer cumprir, nos três níveis de governo (federal, estadual e municipal), leis e ações que protejam e proporcionem o necessário amparo aos menores, especialmente, políticas públicas de inclusão social e educação (BRASIL,1988).

Na seara trabalhista, o princípio da proteção integral soma-se ao princípio da proteção específica do Direito do Trabalho, a fim de reforçá-lo em todos os seus aspectos, tais como na compreensão da proteção do direito à profissionalização e do direito a treinamentos para o trabalho, visando, por exemplo, a inclusão social do deficiente e a garantia do acesso à escola, e, principalmente, o combate e repúdio ao trabalho do menor de 16 anos de idade (BRASIL,1988).

 O princípio da proteção integral, teoricamente, tem fácil compatibilização com as relações de trabalho, uma vez que o próprio direito do trabalho é protecionista em relação ao empregado, o qual é considerado hipossuficiente na seara jurídica. Esse princípio, ao ser aplicado no direito trabalhista, inspira-se em um propósito de igualdade, tendo por objetivo o amparo preferencial do trabalhador. Nas palavras de Alfredo Ruprecht (1995, p. 09), o princípio da proteção integral é "[...] uma violação do tradicional princípio da igualdade jurídica das partes, inclinando-se a favor de uma delas para compensar certas desvantagens".

Por sua vez, Jose Ribeiro Dantas Oliva acrescenta a este pensamento, que a proteção é imanente ao princípio da isonomia.

Ora, mas se o trabalhador em geral, por ser considerado social e economicamente hipossuficiente, tem constitucionalmente assegurada essa proteção, o que deveria ocorrer - particularmente no que pertine ao trabalho - em relação às crianças e adolescentes? - A resposta é de obviedade ululante: referida proteção deve, necessariamente, ser reforçada. E por isto que a proteção conferida a esses seres humanos, em peculiar condição de desenvolvimento (como define o art. 6º do ECA), tem um plus: ela é integral e absolutamente prioritária (OLIVA, 2006, p. 107).

Nesse diapasão, a Constituição Federal, ao traçar os princípios básicos dos Direitos Sociais, refletiu a preocupação estatal em normatizar a idade mínima para que crianças e adolescentes comecem a laborar. No art. 7º, inciso XXXIII, há expressa proibição do trabalho infantil, possibilitando ao menor de idade somente a condição de aprendiz a partir dos 14 anos. Jose Ribeiro Dantas Oliva (2006, p. 108) afirma que "[...] àquelas (referindo-se às crianças), devem ser assegurados os sagrados direitos de brincar, estudar, de não trabalhar, de viver, enfim, à infância”.

Insta destacar que as restrições legais ao trabalho infanto-juvenil devem ser analisadas sempre de modo critico, à luz do princípio da proteção integral, a fim de assegurar plenas condições de materialização do princípio da dignidade humana. A proteção integral às crianças e adolescentes é, pois, um axioma que somente será aplicado efetivamente se houver um esforço conjunto das famílias, da sociedade e do estado, isto é, na situação em que cada segmento assuma o seu papel legalmente atribuído pelas diversas leis contidas no ordenamento jurídico brasileiro.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNEGUNDE, Juvercina Lina Pereira. Trabalho infanto-juvenil: proteção e inserção no mercado de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6224, 16 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83710. Acesso em: 23 abr. 2024.

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