Uma das formas de se estabelecer a competência criminal para o processo e julgamento de determinados casos se dá em razão da função (ou cargo), exercida pelo sujeito ativo. É o que se verifica na competência ratione funcionae, ou, para alguns, ratione personae[1] ou, ainda, ratione muneris.
Nestes casos, em regra, foge-se do trivial para se desconsiderar as demais regras de fixação de competência criminal, passando-se a respeitar o foro específico, que se refere à função exercida pelo autor do crime. Gize-se, por pertinente, que o foro por prerrogativa de função se limita às ações criminais[2], não abrangendo as ações civis e de improbidade administrativa.
O foro por prerrogativa de função[3], assim, se relaciona a certos cargos que, diante da sua natureza e relevância, devem ser julgados originariamente por um órgão superior do Poder Judiciário, não por um magistrado de primeiro grau. Refere-se às chamadas ações originárias dos tribunais.
Historicamente, o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca do foro por prerrogativa de função era ampliativo, no sentido de abranger todas as autoridades referidas na Constituição Federal e, em alguns casos, nas Constituições Estaduais (dada a redação do art. 125, §1°, da CF), ainda que o crime tivesse sido praticados antes da investidura no cargo e que não guardasse qualquer relação com o seu exercício.
O entendimento até então adotado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi muito bem descrito e, ao mesmo tempo, criticado pelo ministro Luís Roberto Barroso, que, em seu voto, na QO da Ação Penal 937[4], ressaltou:
(...) O Supremo Tribunal Federal pratica, há muito tempo, uma linha de entendimento de que todo e qualquer crime praticado por qualquer pessoa que desfrute de foro por prerrogativa deve ser julgado aqui, ainda que o delito tenha sido praticado anteriormente ou ainda que o delito não guarde qualquer relação com o exercício do mandato. Eu acho que é uma boa hora de nós repensarmos essa interpretação, penso que para dar uma interpretação que se tornou mais consentânea com a Constituição. (...) Todos nós somos testemunhas de que esse sistema não está funcionando bem, logo é preciso repensá-lo. E os resultados negativos são muito óbvios para nós desmentirmos, que são a impunidade e o desprestígio que isso traz para o Supremo. É tão ruim o modelo que a eventual nomeação de alguém para um cargo que desfrute de foro por prerrogativa é tratado como obstrução de justiça, em tese. É quase uma humilhação para o Supremo o fato de alguém estar sob a jurisdição do Supremo ser considerado obstrução de justiça. Acho que não é preciso dizer mais nada para documentar a falência desse modelo. (...)
Na mesma oportunidade, ficou estabelecido que o modelo que vinha sendo adotado acarretou um quadro disfuncional do instituto que acabou por impedir a efetividade da justiça criminal. Veja-se:
(...) O atual modelo de foro por prerrogativa de função acarreta duas consequências graves e indesejáveis para a justiça e para o Supremo Tribunal Federal. A primeira delas é a de afastar o Tribunal do seu verdadeiro papel, que é o de suprema corte, e não o de tribunal criminal de primeiro grau. Como é de conhecimento amplo, o julgamento da Ação Penal 470 (conhecida como Mensalão) ocupou o STF por 69 sessões. Tribunais superiores, como o STF, foram concebidos para serem tribunais de teses jurídicas, e não para o julgamento de fatos e provas. (...) A segunda consequência é a ineficiência do sistema de justiça criminal. O Supremo Tribunal Federal não tem sido capaz de julgar de maneira adequada e com a devida celeridade os casos abarcados pela prerrogativa. O foro especial, na sua extensão atual, contribui para o congestionamento dos tribunais e para tornar ainda mais morosa a tramitação dos processos e mais raros os julgamentos e as condenações.
Tendo-se por base essas constatações, as regras para a fixação da competência em razão da função foram sensivelmente modificadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da questão de ordem da Ação Penal 937, sendo possível afirmar-se que a nova ordem jurisprudencial impõe à competência ratione funcionae uma interpretação restritiva, pois, agora, o instituto da prerrogativa de foro somente se aplica aos crimes cometidos durante o exercício do cargo, considerando-se como início a data da diplomação, ou nomeação, e, ainda, apenas se aplica aos crimes relacionados às funções do sujeito ativo.
Sintetizando bem o julgamento do Supremo Tribunal Federal, Fábio Roque e Klaus Negri[5] referem que “a regra básica será a seguinte: somente tem foro por prerrogativa de função a pessoa que está ‘no exercício’ do respectivo cargo público e pratica a infração penal ‘em razão’ deste”.
Na avaliação de Rogério Sanches[6]:
(...) a proposta de redução do foro por prerrogativa é harmoniosa com restrições interpretativas que o próprio STF impõe até mesmo à imunidade material dos parlamentares, como ocorreu no Inq. 3.932/DF. Se, portanto, o tribunal admite a restrição da imunidade dita absoluta, com mais razão deve se permitir interpretar restritivamente a imunidade relativa, especialmente diante dos efeitos deletérios que sua aplicação incondicional tem causado.
A questão objeto deste estudo, que nos parece não estar sendo bem trabalhada pela doutrina, refere-se à extensão de efeitos da decisão proferida, i.e., o novo entendimento do STF vale apenas para os parlamentares federais, a quem a AP 937 se referia diretamente, ou vale para as demais autoridades abarcadas pelo foro por prerrogativa de função? Uma parte da doutrina tem lecionado que a decisão não deve atingir as demais autoridades, pois não teria havido manifestação nesse sentido, o que havia sido proposto pelo ministro Dias Toffoli durante o julgamento da QO na AP 937.
Nesse sentido, concatena-se a lição de Vladimir Passos[7]:
O ministro Dias Toffoli acompanhou os votos divergentes de Moraes e Lewandowski, mas foi além, pois “propôs que, além de deputados e senadores – objeto da análise da corte –, a limitação ao foro atinja também ministros de estado, magistrados de cortes superiores e detentores de cargos estaduais e municipais, como governadores, secretários e prefeitos”.
Aqui se revelam necessários alguns comentários. O STF não é corte de apelação, seus julgamentos vão muito além do caso concreto julgado. Por tal razão, suas conclusões devem ser debatidas à exaustão e ditar a política judiciária sobre o assunto.
No caso em análise, parece-me que o acórdão lavrado perdeu uma oportunidade de solucionar a questão do foro privilegiado, pois deixou várias perguntas sem resposta. Poderia ter feito considerações nos votos e incluí-las, ainda que de forma incidental, na motivação (obiter dictum). Uma a uma, poderiam ser submetidas a votação. Claro que seria trabalhoso, tomaria horas. Mas dispensaria longas discussões posteriores, na própria corte superior e nos outros 66 tribunais do Brasil com competência originária para julgar tais crimes.
Portanto, tinha razão o ministro Dias Toffoli quando pediu a extensão do julgado a outras autoridades. É que, da forma como foi lavrado o voto condutor, as outras autoridades ficaram fora do alcance do que foi decidido.
Com a devida vênia ao posicionamento divergente, acreditamos que, por mais que as demais autoridades que gozam de foro especial tenham ficado fora do voto condutor, as razões axiológicas que acarretaram a mutação constitucional sobre o foro por prerrogativa de função não podem atingir apenas os parlamentares federais. Aliás, nos parece que o STF “ditou nova política judiciária sobre o assunto”.
Para tanto, apresentamos quatro razões como fundamento.
Em primeiro lugar, porque a decisão analisou o instituto do foro por prerrogativa de função de modo geral, ainda que o objeto específico da AP 937 fosse o foro especial dos parlamentares federais. Em segundo lugar, porque o estabelecimento de regramento diferente onde se tem a mesma causa afrontaria o princípio da igualdade.
Em terceiro lugar, porque a decisão embasou-se na necessidade de mutação constitucional, i.e., mudança na interpretação adotada acerca das regras do foro por prerrogativa de função para evitar-se o excessivo retardamento provocado pelo modelo adotado até então, que fomentava a prescrição e a impunidade, incompatíveis com os ideais da República.
E, em quarto lugar, porque, ainda que o Supremo Tribunal Federal não tenha estendido expressamente a nova interpretação aos ocupantes dos demais cargos com prerrogativa de foro, não há nenhum impeditivo de que seus termos sejam imediatamente adotados nos demais casos; aliás, ao contrário, nos parece que há um estímulo para que isso ocorra para dissipar a insegurança jurídica.
Sobre a mutação constitucional, o ministro Luís Barroso referiu:
Eu acho e o Ministro Celso tem defendido o que eu identificaria como uma mutação constitucional em sentido técnico, que é quando uma corte constitucional muda um entendimento consolidado, não porque o anterior fosse propriamente errado, mas porque a realidade fática mudou, ou porque a percepção social do Direito mudou, ou porque as consequências práticas de uma orientação jurisprudencial revelaram-se negativas. E penso que as três hipóteses que justificam a alteração de uma linha de interpretação constitucional estão presentes aqui.
Ora, se a mutação constitucional foi implementada no julgamento da Ação Penal 937, ainda que tenha por objeto o foro especial de parlamentar federal, seus fundamentos devem ser aplicados a todo e qualquer agente público abrangido pelo foro por prerrogativa de função. É questão de razoabilidade. Se a interpretação sobre o instituto mudou, ela deve atingir a todas as situações da espécie.
Diante das regras que sustentam a hermenêutica jurídica, não pode haver exclusão discricionária da nova interpretação se, baseada no critério histórico-evolutivo, entendeu-se como razão de decidir que o modelo antigo levou à falência o sistema de justiça criminal, já que não expressava o melhor direito.
Ademais, na conclusão do julgamento, o Supremo Tribunal Federal não fez qualquer ressalva ou restrição à extensão dos efeitos da decisão proferida, no sentido de se aplicar apenas aos parlamentares federais. Aliás, foi registrado que “a decisão deve ser aplicada imediatamente aos processos em curso[8]. Veja-se:
Conclusão 6. Resolução da questão de ordem com a fixação das seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. 7. Aplicação da nova linha interpretativa aos processos em curso. Ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e demais juízos com base na jurisprudência anterior.
Atente-se que, na mesma decisão, o Supremo Tribunal Federal fixou ainda a necessidade de se estabelecer o momento a partir do qual a competência do órgão especial seja fixada de maneira imodificável, a fim de evitar a modificação de competência que, muitas vezes, se mostra como verdadeira gangorra no processo penal. Nesse sentido, o ministro Luís Barroso, brilhantemente, aludiu:
(...) é preciso definir um determinado momento processual (como o fim da instrução processual) a partir do qual se dá a prorrogação da competência para julgamento da ação penal, independentemente da mudança de status do acusado, em razão, por exemplo, de ter deixado de ser Deputado Federal para se tornar Prefeito ou vice-versa. A esse propósito, o caso em exame é exemplo emblemático de como o “sobe e desce” processual frustra a aplicação do direito, gerando prescrição de eventual punição, quando não em razão da pena em abstrato, ao menos tendo em conta a pena aplicada em concreto.
Registre-se que a modificação da competência, algumas vezes, não ocorria por má-fé do sujeito ativo. Todavia, como bem referido por Fábio Roque e Klaus Negri[9], em alguns casos, ficava evidente a chamada fuga de foro por meio da renúncia do cargo ocupado, operando-se verdadeira fraude processual, de modo que o autor do crime utilizava-se do instituto como melhor lhe conviesse, o que não é admissível[10].
E, a partir desse entendimento, a ementa da AP 937 expressa que:
A partir do final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais – do STF ou de qualquer outro órgão – não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. A jurisprudência desta Corte admite a possibilidade de prorrogação de competência constitucional quando necessária para preservar a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional. (grifamos)
Na utilização da expressão “qualquer outro órgão”, nos parecer estar implícito que, embora a Ação Penal 937 se refira apenas ao foro por prerrogativa de parlamentar federal no STF, o entendimento firmado estende-se aos demais órgãos (tribunais), nos quais são julgadas outras autoridades com foro igualmente especial.
Nesse sentido, Fábio Roque e Klaus Negri[11] lecionam que embora a AP 937 tenha se referido especificamente à limitação do foro por prerrogativa de função no STF em relação aos parlamentares federais, “esta mesma razão, embora não explicitada no julgado, poderá servir de parâmetro para os demais tribunais quanto as suas respectivas funções de autoridade com foro privativo”.
Assentada essa premissa, cumpre registrar que é exatamente essa linha de raciocínio que vem sendo desenhada no cenário da jurisprudência nacional, já que o Supremo Tribunal Federal, de forma clara, indicou na AP 937 a sua nova visão restritiva quanto ao foro privativo, tendo afirmado em julgamento posterior que o entendimento vale também para Ministros de Estado[12].
Na sequência, várias decisões foram tomadas pelo Superior Tribunal de Justiça, no mesmo sentido da proferida pelo Supremo Tribunal Federal na AP 937, homenageando-se, a nosso ver, os princípios da igualdade, da razoabilidade, da simetria e da mutação constitucional.
Nessa linha, o STJ já decidiu que “é incompetente para examinar o recebimento de denúncia por crime supostamente praticado durante mandado anterior de governador, ainda que atualmente ocupe referido cargo por força de nova eleição”[13]. O mesmo entendimento foi adotado em outra ação penal contra governador por supostos crimes praticados antes de assumir o cargo[14].
Nesta última decisão, pelo brilhantismo da lição, colacionamos:
Inicialmente cumpre salientar que, em atenção ao princípio ou à regra da Kompetenz-Kompetenz, esta Corte superior deve exercer o controle da própria competência, máxime em se tratando de ações originárias, porquanto atua, nesses casos, não como corte de revisão ou de superposição, mas como primeiro julgador da causa. O caso em tela limita-se a determinar, diante do enunciado normativo do art. 105, I, "a", da Constituição Federal, qual é o sentido e o alcance que se lhe deve atribuir, isto é, qual é, de acordo com a exegese sistemática e teleológica do ordenamento jurídico nacional, a norma jurídica que se deve extrair do referido dispositivo constitucional. A Corte Suprema, no julgamento na QO na AP 937, fixou o entendimento de que "o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas", aplicando tal entendimento ao caso então em análise, que se referia a Deputados Federais e Senadores. Impõe-se conferir ao art. 105, I, "a", que trata da competência penal originária desta Corte Superior, interpretação simétrica àquela conferida pelo Supremo Tribunal Federal, ao art. 102, I, "b" e "c", sob pena de se quebrar a coerência, a integridade e a unidade da Constituição, máxime tendo em vista que ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio ("onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de direito"). Depreende-se de uma simples leitura dos referidos dispositivos constitucionais que ambos possuem redação simétrica, isto é, ambos estabelecem competências penais originárias, distinguindo-se, tão somente, no que diz respeito aos sujeitos ali elencados. Ademais, fixada a tese segundo a qual o foro por prerrogativa de função se aplica apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas, impende assestar o marco temporal para fins de prorrogação da competência do STJ. Nesse diapasão, o critério do fim da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, parece adequado como marco temporal para a prorrogação da competência desta Corte superior para julgamento das ações penais originárias, visto constituir referência temporal objetiva, privilegiando, ainda, o princípio da identidade física do juiz, ao valorizar o contato do magistrado julgador com as provas produzidas na ação penal[15].
Portanto, no que se refere às hipóteses de foro privativo perante o Superior Tribunal de Justiça, o entendimento é de que se restringem àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo, nos mesmos moldes do que restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a restrição do foro por prerrogativa de função alcança conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais[16]. Nesta ocasião, restou decidido que:
A prerrogativa de foro é outorgada ratione muneris a determinadas autoridades em razão da natureza de certos cargos ou ofícios titularizados por aquele que sofre persecução penal. Originalmente pensado como uma necessidade de assegurar a independência de órgãos e garantir o livre exercício de cargos constitucionalmente relevantes, esse foro atualmente, dada a evolução do pensamento, provocada por situações inexistentes no passado, impõe a necessidade de que normas constitucionais que o estabelecem sejam interpretadas de forma restritiva[17].
Veja-se que o mesmo entendimento foi esboçado no que se referia ao julgamento de ação penal movida contra desembargador, onde o STJ entendeu por prorrogar a sua competência, excepcionando o entendimento adotado apenas para evitar a prescrição[18]. Nesse caso, assentou-se que:
Inicialmente cumpre salientar que o voto condutor do acórdão proferido pelo STF na QO na APn 937 considerou que a cláusula constitucional que confere prerrogativa de foro a agentes públicos deve ser compreendida à luz dos princípios constitucionais estruturantes da igualdade e da República. Isto porque, tal como qualquer outro cidadão, os agentes públicos devem responder comumente pela prática de delitos que não guardem relação com o desempenho das funções inerentes ao
cargo que ocupam. Como o foro por prerrogativa de função é uma exceção ao princípio republicano, concluiu o STF que ele deve ser interpretado restritivamente, de modo a funcionar como instrumento para o livre exercício de certas funções públicas, mas não de modo a acobertar agentes públicos da responsabilização por atos estranhos ao exercício de suas funções. Na sessão de julgamento de 20/06/2018, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça finalizou o julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 857 e efetuou o julgamento de Agravos Regimentais na Ação Penal 866, fixando o entendimento de que as razões de decidir adotadas pelo STF no julgamento da QO na AP 937 se impunham igualmente na interpretação da extensão da prerrogativa de foro que a Constituição (art. 105, I, "a") confere aos Conselheiros de Tribunais de Contas e aos Governadores. Na hipótese, situação em que o réu é Desembargador, em que, como visto, a extensão da prerrogativa de foro é questão a ser ainda enfrentada pela Corte Especial, e o cumprimento da pena pelo crime cometido pode restar prejudicado pela iminente ocorrência da prescrição, o processamento da ação penal permanecerá no Superior Tribunal de Justiça[19].
Outra decisão interessante e digna de referência foi a adotada em ação penal movida contra desembargador, na qual o STJ entendeu por prorrogar a sua competência, excepcionando o entendimento sedimentado pela Corte, apenas para evitar que o desembargador fosse julgado pelo juiz vinculado ao seu tribunal[20].
É que, neste caso, o desembargador seria julgado por magistrado vinculado ao seu tribunal, i.e., um magistrado que lhe era hierarquicamente inferior e diretamente vinculado, o que acarretaria certa pressão à autoridade incumbida do julgamento, podendo romper-se a imparcialidade. Veja-se:
(...) A partir desta forma de colocação do problema, pode-se argumentar que, caso desembargadores, acusados da prática de qualquer crime (com ou sem relação com o cargo de Desembargador) viessem a ser julgados por juiz de primeiro grau vinculado ao Tribunal ao qual ambos pertencem, se criaria, em alguma medida, um embaraço ao juiz de carreira. Isso porque, consoante a disciplina jurídica aplicável, os Tribunais locais (por meio de seus desembargadores) promovem sua própria gestão (art. 96, I, "a", e art. 99 da Constituição) e correicionam as atividades dos juízes de primeiro grau de jurisdição (art. 96, I, "b"), além de deliberarem sobre o vitaliciamento e efetuarem a movimentação dos juízes na carreira, por antiguidade ou merecimento (art. 93, II e III) e, até, autorizarem ou não o juiz a residir fora da comarca (art. 93, VII) e mesmo a fruição de licença, férias ou outros afastamentos (art. 96, I, "f"). Neste contexto normativo constitucional, é de se questionar se resultaria em credibilidade ou, eventualmente, em descrédito à justiça criminal a sentença penal prolatada por juiz de primeiro grau que estivesse a apreciar se o desembargador que integra seu tribunal há de ser considerado culpado ou não culpado pela infração a ele imputada[21]. (grifamos)
Neste caso, o min. Herman Benjamin ponderou que “para um juiz, a carreira é o fundamento da sua existência profissional. E não vejo como um juiz possa julgar o corregedor do seu Tribunal. Ora, por mais que acredite na lisura do magistrado, seria muito constrangedor para ele condenar um superior hierárquico, que sabidamente votam nos magistrados de piso nas promoções.
No entanto, sublinhe-se, caso o crime praticado pelo desembargador tivesse como local outro Estado da Federação, que implicasse o julgamento por juiz de primeiro grau não vinculado ao mesmo tribunal onde o réu desempenha as suas funções, seria aquele competente para o julgamento do caso, pois a razão de decidir da AP 878 pelo STJ foi o embaraço eventualmente criado ao juiz de carreira, não ao destinatário do foro privativo. Neste caso, não haveria um risco à imparcialidade, caso o juiz de 1º grau julgasse o desembargador, pois agora o réu não estaria em uma posição hierarquicamente superior ao juiz responsável pelo julgamento.
Ainda, registramos, existem outras situações em que a exceção que se estabeleceu na AP 878 do STJ não se justificaria, como, por exemplo, o caso de um desembargador da justiça do trabalho que pratique um crime. Neste caso, como a justiça do trabalho não tem jurisdição criminal, ele seria julgado por um juiz federal, o qual não teria risco de ser parcial no seu julgamento já que o desembargador da Justiça do Trabalho não possui qualquer atividade correicional nas atividades do juiz federal.
Inclusive, o min. João Otávio de Noronha, em seu voto na QO da AP 878, fez referência a esse entendimento quando pontuou que “a questão envolvendo o Judiciário tem que ser caso a caso. Não há problema nenhum de um juiz do Trabalho, por exemplo, ser julgado por um juiz de primeiro grau. Mas há problema um juiz de primeiro grau julgar um desembargador que o promoveu ou que reforma suas decisões”.