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Tema 210 do STF: modulação de precedente e o princípio da reparação civil integral

O Direito por quem o faz: decisão do Supremo reconhece princípio da reparação civil integral no transporte aéreo internacional de carga e entende que fatura comercial e outros documentos declaram valores e dispensam o frete ad valor

Leia nesta página:

Amparados em recente decisão do Ministro Fux, defendemos que documentos como a fatura comercial servem para a exigência do chamado frete "ad valorem" e a garantia da reparação civil integral no transporte aéreo internacional de carga.

“A verdade é pesada. Por isso, poucos se dispõem a carregá-la”

Sir Winston Churchill


Desde que a decisão do Supremo Tribunal Federal que deu origem ao Tema 210 de repercussão geral foi publicada, temos feito estudos que se encaminharam para as seguintes conclusões:

  1. A decisão não alcança todos os casos de transportes aéreos internacionais, mas somente os de passageiros e com extravios de bagagens;
  2. O transporte aéreo internacional de carga não se submete, necessária e automaticamente, aos seus fundamentos;
  3. Há necessidade de aplicação da técnica de modulação de precedentes.

Além disso, antes mesmo da decisão de repercussão geral, defendemos que a limitação tarifada, também chamada de limitação de responsabilidade do transportador aéreo, é norma anacrônica, sem razão de ser no tempo atual.

Anacrônica porque bisa a antiga Convenção de Varsóvia que, por sua vez, remonta ao início do século passado, quando a indústria da navegação aérea mal havia nascido, era envolta em muitos riscos e necessitava de especial proteção jurídica e econômica.

Hoje é uma indústria forte, robusta, que trabalha com o conceito de risco zero e não mais necessita de proteções especiais.

Atualmente, a navegação aérea não é mais sujeita aos riscos, e em vez disso se mostra protagonista, fonte de riscos, razão pela qual seus atores principais, os transportadores, não podem ser beneficiados com normas (contratuais, legais ou convencionais) que tenham por finalidade a redução de suas responsabilidades.

Quem assume obrigações de resultado e maneja fonte de riscos tem de responder integralmente pelos danos causados, tenham ou não agido com culpa.

Reduzir a responsabilidade do transportador aéreo é, para dizer o mínimo, danar a vítima duas vezes e prejudicar substancialmente a sociedade.

Quando o assunto é tratado segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a norma da limitação tarifada é, mais do que anacrônica, ilegal e inconstitucional, aos menos em relação ao transporte de cargas, porque fere o princípio de reparação civil integral, de que trata o art. 944 do Código Civil, e a garantia fundamental de mesma natureza prevista no rol exemplificativo do art. 5º da Constituição Federal, mais precisamente nos incisos V e X.

Os defensores da limitação tarifada alegam que ela é devida porque o dono da carga pode pagar um valor maior de frete e, com isso, garantir a reparação civil integral em caso de dano.

A alegação parece correta, mas não é. É, no máximo, uma meia verdade.

O chamado frete ad valorem não é tão simples de se operar e, além disso, configura um dirigismo contratual inegável. Seria uma espécie de “taxa de eficiência”, em vista da qual se paga um valor muito maior para que o devedor da obrigação de resultado simplesmente cumpra com fidelidade o seu dever. Existe até certo comprometimento moral na defesa obstinada do frete ad valorem, espécie de chantagem disfarçada de opção mercadológica.

Alegar desconhecimento do valor do bem confiado para transporte, como transportadores aéreos costumam fazer, também não é correto, eis que o valor de carga é perfeitamente conhecido por meio das fatura comercial e outros documentos.

A fatura comercial, em especial, declara e prova o valor da carga confiada ao transportador aéreo, pondo pá de cal na alegação de desconhecimento.

Sempre defendemos isso como advogados das seguradoras de cargas e, mesmo depois da decisão de repercussão geral, temos conseguido, entre alguns poucos insucessos, muitas vitórias judiciais em favor da reparação civil integral.

No último dia 5 de agosto conseguimos uma especialmente importante, no Supremo Tribunal Federal (Apelação 9218307-50.2009.8.26.0000 – São Paulo - Voto nº 35412 – Relator: Ministro Fux). No mesmo dia, comunicamos a vitória por carta aberta ao mercado segurador, e o fizemos nos seguintes termos (ora parcialmente reproduzidos).

Abrimos aspas:

“Transporte aéreo internacional de carga | Princípio da reparação civil integral | Afastamento da limitação tarifada da Convenção de Montreal | Circunstâncias especiais do caso concreto | Teoria da modulação dos Precedentes | Não aplicação automática do Tema de Repercussão Geral do STF | Vitória judicial emblemática no STF

Com enorme satisfação, informamos nova vitória judicial em caso em que atuamos como advogados em importante matéria de Direito de Transportes e Direito do Seguro.

Mais uma vez, conseguimos afastar a limitação de responsabilidade da Convenção de Montreal e a condenação do transportador aéreo internacional ao ressarcimento integral do dano contratual.

Vitória no Supremo Tribunal Federal que reconheceu que sua Decisão de Repercussão Geral, Tema 210, não se aplica a todo e qualquer caso de transporte aéreo internacional.

Ajuda-memória: desde a publicação do Tema 210, temos defendido exatamente isso, diferenciando o transporte aéreo internacional de cargas e o de passageiros com extravios de bagagens.

Felizmente, notamos que nossa tese têm conseguido muito tônus muscular e amparo pela jurisprudência. A teoria da modulação dos Precedentes é mais um elemento no cadinho da alquimia da defesa do princípio da reparação civil integral que agregamos com absoluta convicção.

(...)

Repetimos: importante decisão que consagra os princípios da equidade, da isonomia, da proporcionalidade e, sobretudo, o da reparação civil integral, que é legal (art. 944, Código Civil) e, também, constitucional, já que previsto no rol exemplificativo do art. 5º., que trata dos direitos e garantias fundamentais.

O único aspecto que ousamos discordar é que o fato de o autor da ação ser segurador sub-rogado não é irrelevante, mas também exige especial atenção.

Nesse sentido, insistimos nos fundamentos do Ministro Alexandre de Moraes, proferidos em outra ocasião (ARE 1.146.801): “No caso dos autos, inaplicável o referido precedente paradigma, pois não se trata de transporte de passageiros e de bagagem, mas de vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria e o consequente reconhecimento do direito de regresso da parte recorrida decorrente de contrato de seguro.”

Importante destacar isso porque se não se distinguir o segurador sub-rogado do dono da carga, o Supremo Tribunal Federal poderá criar imbróglio jurídico fundamental: conflito interno entre a Súmula 188 e o Tema 210.

De todo o modo, este detalhe em nada diminui a alegria da vitória e a importância da decisão, que certamente será utilizada por nós em todos os litígios, em curso e futuros, sob nosso patrocínio, em defesa do mercado segurador (carteira de seguro internacional de Transportes).

 Nunca deixamos de acreditar na tese, até porque entendemos que a reparação civil é, antes de tudo, assunto de ordem moral.

Quem causa o dano, tem o dever de repará-lo integralmente, e não pode se esconder por trás de normas convencionais que se revelam anacrônicas e injustas.

Limitar a responsabilidade do danador é danar a vítima duas vezes; é, em primeira e última análise, premiar o ato ilícito.

E se o prejudicado for segurador sub-rogado, o dano atinge também todo o colégio de segurados, por força do mutualismo, e de certa maneira, a sociedade toda, haja vista a função social do negócio de seguro e a necessidade de se proteger sua saúde econômico-financeira.

Era o que tínhamos a compartilhar no momento.”

Fechamos aspas

Vitória emblemática porque, entre as teses que defendemos contra a limitação de responsabilidade no transporte aéreo de carga, uma ganhou especial ênfase: a possibilidade de se reconhecer declaração de valor da carga, independentemente do frete ad valorem.

Segundo o próprio Supremo Tribunal Federal, a documentação acostada aos autos do processo da ação regressiva de ressarcimento faz prova da declaração de valor, nos termos do art. 22. 3 da Convenção de Montreal.

Podemos interpretar e considerar que os documentos que mencionam valores — faturas comerciais (invoices), atas e certificados de vistorias, instrumentos fiscais, cartas-protesto, entre outros — são verdadeiras declarações de frete, até porque de pleno e prévio conhecimento dos transportadores aéreos.

São, pois, documentos que atestam o valor da mercadoria confiada para transporte em um determinado caso, e afastam assim, perfeitamente, a alegada necessidade de declaração especial de valor no corpo do conhecimento de transporte (AWB), que nada mais é do que ato de dirigismo contratual a implicar enriquecimento sem causa.

Entendimento correto, de sublinhar, considerando a enorme dificuldade na negociação dos termos de transporte com as empresas aéreas, em razão da emissão de contrato de adesão (AWB).

Situação ainda mais dramática, para não dizer aterradora, quando a parte que pleiteia o ressarcimento integral é seguradora legalmente sub-rogada na pretensão da vítima original do dano, o dono da carga.

Normalmente, litígios envolvendo inadimplemento de obrigação de transportador aéreo internacional de carga são deflagrados por seguradoras sub-rogadas, por força da indenização paga e à vista do contrato de seguro.

A seguradora não é parte no contrato de transporte nem pode obrigar seu segurado, o dono da carga, a pagar o absurdo frete maior que o transportador pretende receber, sob pena de ela mesma incidir em abuso de direito, em dirigismo contratual.

Daí a importância de se repetir o que acima se expôs, quando da reprodução parcial da carta aberta ao mercado segurador, de 5 de agosto último:

“(...), insistimos nos fundamentos do Ministro Alexandre de Moraes, proferidos em outra ocasião (ARE 1.146.801): “No caso dos autos, inaplicável o referido precedente paradigma, pois não se trata de transporte de passageiros e de bagagem, mas de vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria e o consequente reconhecimento do direito de regresso da parte recorrida decorrente de contrato de seguro.”

Importante destacar isso porque se não se distinguir o segurador sub-rogado do dono da carga, o Supremo Tribunal Federal poderá criar imbróglio jurídico fundamental: conflito interno entre a Súmula 188 e o Tema 210.”

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Mais do que nunca nos sentimos confortáveis em afirmar que o Tema 210 não encerrou a polêmica sobre a limitação de responsabilidade da Convenção de Montreal. Cada sinistro de transporte aéreo internacional de carga tem que ser tratado segundo as particularidades que contém, observando-lhe os aspectos fundamentais e a própria teoria da modulação dos precedentes.

Em especial nos agrada muito a decisão comentada, porque reconheceu a tese desta equipe de advogados, segundo a qual o valor da carga é declarado por muitos documentos, especialmente a invoice, sendo sua expressividade econômico-financeira amplamente conhecida pelo transportador aéreo.

Abaixo, destacamos alguns trechos do acórdão original e da decisão do Ministro Fux, os quais merecem especial atenção e que serão muito usados por nós em peças forenses e comentários acadêmicos:

Apelação 9218307-50.2009.8.26.0000 – São Paulo - Voto nº 35412:

“O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até o limite previsto no contrato de seguro.”

Demais disso, o valor da carga restou comprovado pela documentação carreada com a petição inicial (fls. 88 e segs.) e a vistoria realizada por empresa contratada pela segurada, não impugnada especificadamente pela apelante, constatou avaria em 10 dos 35 volumes recepcionados pela segurada (fls. 101/104), o que representou um prejuízo de R$12.622,43 ou US$7.166,95, em 10.12.2007 (fls. 109), sendo inaplicável, portanto, a limitação tarifária imposta na primeira parte do artigo 22.3 da Convenção de Montreal de 28.05.1999.

Decisão do Ministro Fux:

“... Nada obstante, in casu, o Tribunal a quo concluiu que teria havido a declaração do valor da carga transportada, circunstância que, nos termos das referidas Convenções, afasta a limitação da responsabilidade do transportador.

Nesse contexto, divergir do entendimento do Tribunal a quo demandaria o reexame do conjunto fático-probatório dos autos. Não se revela cognoscível, em sede de recurso extraordinário, a insurgência que tem como escopo a incursão no contexto fático-probatório presente nos autos.

“... O juiz dá a valoração mais conveniente aos elementos probatórios, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes.

Por fim, ressalto que o presente recurso foi interposto sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, razão pela qual não se lhe aplica o disposto no artigo 85, § 11, do Código de Processo Civil de 2015. Ex positis, (i) RECONSIDERO a decisão agravada (Doc. 7), (ii) julgo PREJUDICADO o agravo interno interposto por ITAÚ UNIBANCO SEGUROS CORPORATIVOS S/A (Doc. 8) e (iii) DESPROVEJO o recurso extraordinário interposto por LAN AIRLINES S/A (Doc. 2, p. 171-187), com fundamento no artigo 932, VIII, do Código de Processo Civil de 2015 c/c o artigo 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

Publique-se. Brasília, 4 de agosto de 2020.

Ministro LUIZ FUX Relator

Vemos que o próprio Supremo Tribunal Federal calibrou sua decisão de repercussão geral ao entender que o Tema 210 não se aplica a todo e qualquer caso indistintamente.

Consideramos essa decisão paradigmática, capaz de reforçar tudo aquilo que defendíamos antes da decisão de repercussão geral e que continuamos a defender depois dela, não se admitindo o esvaziamento da responsabilidade civil do danador e homenageando o direito da vítima ou de quem legalmente lhe fizer as vezes.

Por fim, nunca deixamos de lembrar que a reparação civil integral é, antes de tudo, um princípio de natureza moral e que não deve ser mitigado de modo algum, por qualquer razão, especialmente quando quem a pleiteia é seguradora sub-rogada, defensora que é não apenas dos seus próprios e legítimos direitos e interesses, mas, por força do mutualismo, os do enorme colégio de seus segurados e, reflexamente, os da sociedade toda, a quem muito interessa a saúde do negócio de seguro, o que mais se ajusta ao conceito de função social dos contratos.

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Sobre os autores
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Rubens Walter Machado Filho

Advogado, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados e administrador de empresas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique ; MACHADO FILHO, Rubens Walter. Tema 210 do STF: modulação de precedente e o princípio da reparação civil integral: O Direito por quem o faz: decisão do Supremo reconhece princípio da reparação civil integral no transporte aéreo internacional de carga e entende que fatura comercial e outros documentos declaram valores e dispensam o frete ad valor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6559, 16 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84590. Acesso em: 16 abr. 2024.

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